27 de fevereiro de 2016

Espaços hostis, corpos insubmissos

Regina Dalcastagnè


Foto: Regina Dalcastagnè

Os espaços urbanos são lugares habitados por narrativas. Nos pontos de ônibus ou nos palcos, nas livrarias ou nas bancas de revistas, nos muros das cidades ou nas galerias, nos cafés ou nos supermercados elas circulam, se expandem e se desfazem, muitas vezes, sem merecer atenção. Ao mesmo tempo em que se constituem na fricção com esses espaços, elas nos dizem deles e daqueles que os frequentam, ou dos que não estão autorizados a frequentá-los. Acompanhar esses deslocamentos pode nos ajudar a entender melhor tanto o surgimento de algumas temáticas urbanas na produção literária recente quanto a sua visibilização e legitimação dentro de nossa sociedade. Isso porque pensar o espaço implica pensar a maneira como os sujeitos o praticam, observando suas hierarquias e seus constrangimentos.

A escritora Carolina Maria de Jesus tinha uma percepção aguda dessa relação já nos anos 1960, em seu Quarto de despejo: “Quando estou na cidade tenho a impressão de que estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão de que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. É especialmente reveladora, aqui, a aproximação entre espaço e corpo. O fato de ser obrigada a morar num lugar feio e sujo faz com que ela se perceba como um trapo descartado. Talvez porque, como dizia Pierre Bourdieu, em La misère du monde, “as imposições mudas dos espaços arquitetônicos se dirigem diretamente ao corpo, obtendo dele a reverência e o respeito que nascem do distanciamento”.

Em nossa literatura é comum que os contatos entre personagens de diferentes estratos sociais sejam apenas episódicos. Quando representados, quase sempre estão marcados pela violência – mas, aí, costuma-se privilegiar a violência aberta com que por vezes se expressam integrantes das classes subalternas, em detrimento da violência silenciosa, estrutural, que é exercida sobre os dominados. Desaparecem as humilhações sofridas pelas personagens pobres, que saem da periferia tomando vários ônibus para chegar a uma cidade que não lhes pertence, nem as acolhe. Desaparecem os constrangimentos diários, as ofensas miúdas, o embate com as autoridades, a necessidade constante de explicações para a sua simples presença.

Daí a importância de se observar tanto o desconforto vivido por essas personagens nesses espaços hostis quanto as respostas de corpos insubmissos que decidem ocupar lugares que não lhes são destinados. Afinal, o confronto entre corpos socialmente construídos para ocuparem espaços diferentes é um aspecto central estão em cena membros de grupos sociais – mulheres, negros, pobres, velhos, homossexuais, deficientes físicos – que costumam ser marcados pelo discurso dominante justamente por suas características corporais. Discurso que constrói esses corpos como o “diferente” e, a partir daí, os assinala como “feios, sujos, manchados, impuros, contaminados ou doentes”, forçando-os a lidar, muitas vezes em silêncio, com a aversão ou a condescendência dos grupos privilegiados, como lembrava Iris Marion Young em Justice and the politics of difference.

Um lugar interessante para se observar o impacto do espaço físico nos corpos de personagens pobres é o supermercado. Local de excessos, por onde os consumidores de classe média transitam com a desenvoltura que o dinheiro lhes oferece, ele se apresenta como acessível a todos, embora não passe de mais um território cercado, com regras rígidas e etiqueta própria, como todo estabelecimento comercial. Não é um lugar para quem não tem dinheiro – o que pode ser denunciado muito antes de se chegar ao caixa, seja pela forma como se está vestido(a), seja pelos gestos, demasiado expansivos ou excessivamente constrangidos. Mas também não é um espaço impermeável, como algumas lojas caras de um shopping center, por exemplo. Justamente por isso é o ambiente ideal para se analisar as inúmeras possibilidades de representação das experiências de inadequação vividas por personagens pobres em determinados espaços, nas poucas obras literárias que se detêm a narrá-las.

Em Guia afetivo da periferia (2009), Marcus Vinícius Faustini nos leva para o supermercado no fusca do seu padrasto, logo que chega o salário do mês. O autor conta da alegria que era para ele, menino, entrar no carro com o padrasto e a mãe, sair de Duque de Caxias e ir para a Casas da Banha na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, para fazer as compras. No caminho, o padrasto contava a mesma história, todas as vezes: “Eu vi a Avenida Brasil no barro”. É daí que se constrói a memória afetiva desse lugar para o narrador, uma memória que se soma à memória mais antiga do padrasto. A descrição do espaço do supermercado passa pela expectativa do leite condensado, que nem sempre era comprado, pelo passeio cauteloso com o carrinho pelos corredores, pelas dimensões gigantescas do prédio, pela quantidade de produtos e, principalmente, pela refeição feita na lanchonete do supermercado: macarrão com carne e catchup.

A cena é curta, mas compõe esse espaço como um lugar de lazer regrado. As possíveis ansiedades dos pais aparecem na contagem do dinheiro antes da saída, na declarada impossibilidade de comprar o que iria além do absolutamente essencial, na proibição do menino de subir no carrinho (para não amassar as compras). O supermercado aparece, em contraposição ao mercadinho perto de casa, como o espaço da fartura, com suas dimensões ampliadas, as várias marcas de produtos expostos. Espaço que o menino, de algum modo, parece poder dominar – ao menos em sua rememoração escrita muitos anos depois.

É bem diferente a situação do jovem trabalhador do supermercado no conto “Pão doce”, de Ferréz (no livro Ninguém é inocente em São Paulo, de 2006). Em vez de um espaço de lazer com a família, o lugar é fonte de desgaste e humilhação. Os longos corredores e a infinidade de produtos são o martírio do rapaz, que tem de percorrê-los ininterruptamente para fazer a reposição do que era levado pelas pessoas: “quanto mais eu repunha a mercadoria, mais as pessoas compravam. Acabava o macarrão, eu buscava o palete e, quando chegava, o arroz também estava no fim. Logo que repus o arroz, o feijão e o óleo estavam no fim também. Toda vez que eu tentava passar com o carrinho, as pessoas reclamavam. Estava incomodando todo mundo”.

Ao contrário do “não lugar” de Marc Augé – definido como um local de passagem, que ele, evidentemente, imagina apenas pela perspectiva dos consumidores –, o supermercado nos é apresentado pelo olhar dos que trabalham ali, como espaço de exploração e de hierarquias profundamente marcadas e todo dia reencenadas. O jovem que, como no outro livro, nos narra em primeira pessoa, precisa conviver com as humilhações diárias de gerentes e seguranças. Não só sobre si, mas também com os que frequentam o supermercado, uma vez que ele nos descreve a diferença entre o tratamento dado aos ricos que furtam e aos pobres. O tom da narrativa, que reflete, obviamente, os sentimentos do rapaz, é de constante revolta e cansaço, culminando com o momento em que o gerente se aproxima para reclamar do cheiro de suor de seu corpo. É quando ele joga tudo para o ar e vai embora – mais um desempregado pelas ruas de São Paulo, como o homem que entra no supermercado em Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato.

Ali, não há experiência de lazer possível, nem lugar para algum diálogo desaforado. O protagonista, descrito em terceira pessoa como o “negro franzino, ossudo, camisa de malha branca surrada calça jeans imundo tênis de solado gasto que empurrava um carrinho-de-supermercado havia cerca de meia hora”, é seguido nos corredores pelo “segurança, negro agigantado, espadaúdo, impecável dentro do terno preto”. A tensão vai crescendo enquanto o “negro franzino” coloca leite em pó, fraldas e mamadeira dentro do carrinho, depois retira, devolve à gôndola, volta e coloca tudo de novo no carrinho. Os gestos de desconforto e insegurança do homem diante dos produtos, e talvez das câmeras do supermercado, são interpretados pelo “negro espadaúdo” e pelo chefe de segurança como uma tentativa de camuflagem para um roubo. Daí a violência contra ele e o recurso direto à polícia, mesmo com o homem se explicando enquanto apanha: que estava ali porque lhe nascera o filho, que estava desempregado, que pensava em pedir que alguém lhe pagasse as compras, apesar da vergonha.

O supermercado, assim, muito mais do que um espaço com pé direito alto, longos corredores e uma imensidão de produtos a serem infinitamente levados e repostos, é o lugar da vigilância, das câmeras de segurança, sempre prontas a encontrar o gesto suspeito, o movimento indesejado. E a personagem de Ruffato, sem dinheiro, com roupas inadequadas e com um corpo que revela seu desconforto, está ocupando um espaço indevido; por isso o “negro franzino” será expulso e, mais do que isso, punido. É a ciência dessa possibilidade que torna alguns espaços proibidos, mesmo quando nos pareçam relativamente abertos a todos.

Nos três exemplos acima, as narrativas dessa relação do pobre com o espaço do supermercado, apesar de significativas, são muito breves. A situação é tratada com mais vagar, e muita sutileza, em Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo. Como no Guia afetivo da periferia, temos ali toda a preparação anterior para a ida ao supermercado. No lugar do menino e seus pais, um velho aposentado por invalidez e sua cunhada. Em vez do dinheiro contado, o vale de compras, arduamente conquistado num programa de assistência social do governo. No lugar do fusca, “o brasão masculino do padrasto”, eles vão a pé até o supermercado, para economizar as passagens do ônibus e poder voltar de táxi com as compras do mês. O homem chega a ficar excitado com a cena que visualiza: chegar em frente à casa e retirar do porta-malas, diante do olhar dos vizinhos, as sacolas de plástico cheias de produtos.

Dentro do supermercado, o velho e a cunhada ficam extasiados com a quantidade e variedade de produtos a que teriam acesso: “Havia uma satisfação, uma sensação de força, um alívio que passava para o corpo e que eles tratavam de aproveitar ao máximo”. Assim, “retardavam o passeio do carrinho, iam e voltavam pelos corredores, retiravam alguns produtos que já haviam apanhado e punham outros em seu lugar”, estavam “tão atentos às mercadorias, que ficavam mais vistosas por causa das luzes brancas e brilhantes lá do alto, que mal se davam conta da presença de outras pessoas”. Estão, até este momento, vivendo o prazer do menino de Guia afetivo da periferia, mas a situação muda quando eles chegam na fila do caixa e começam a ser olhados e se veem sendo vistos, com seu carrinho “irregularmente” cheio e sua aparência irremediavelmente pobre.

A ansiedade vai sendo construída de forma paulatina, num crescendo: o movimento impaciente das outras pessoas na fila, a cara feia da caixa, a certeza – reafirmada para si mesmos – de que podiam estar ali porque tinham como pagar. O ápice da tensão se dá quando a caixa do supermercado, tão mal humorada quanto o carregador do conto de Ferréz, não consegue passar o cartão do benefício e descobre que sua validade havia expirado no dia anterior. Então tudo desmorona em torno dos dois velhos, o corpo esfria, o ar lhes falta, eles são esmagados pela vergonha. É quando a moça do caixa, munindo-se de uma autoridade nova, que só pode ser exercida sobre aqueles que nada têm, exige em alto e bom tom que eles devolvam todos os produtos ao seu lugar nas prateleiras.

Com as pontas dos dedos, a senhora “empurrava de leve a mercadoria em seu lugar, fazia questão de alinhá-la de acordo com as outras. Cada produto de que se desfaziam causava mágoa. A garganta apertada. Nenhum, nem o mais barato deles, foi deixado para trás com indiferença. O tato, o manuseio dos frascos de vidro, dos potes de plástico, o formato das caixinhas na mão dos dois um momento antes de abandoná-los em seu lugar aumentavam a pena”. Angustiados com os olhares que os cercam, com a zombaria que pressentem, eles também são punidos por estarem em um lugar que não lhes cabe. E é só quando se veem do lado de fora, na rua, em meio ao movimento dos carros e ao lixo acumulado pela cidade, que podem expressar sua dor, e lembrar quem são.

Muitas representações da experiência dos pobres na sociedade brasileira privilegiam a exposição da violência aberta, na forma da criminalidade ou da brutalidade policial. Basta lembrar de um romance como Cidade de Deus, de Paulo Lins, dos contos de Rubem Fonseca, ou mesmo de filmes como Carandiru e Tropa de elite, por exemplo. Esse tipo de violência não é estranha aos grupos privilegiados. Eles sofrem, talvez, modalidades diferentes dela, possuem outras formas de proteção e mantêm outro tipo de relação com os poderes públicos; ainda assim, há uma identificação possível. Sobretudo, a violência aberta encontra uma condenação moral unânime – há uma resposta comum e sem maiores ambiguidades a ela.

Mas outras formas de violência convivem no mesmo espaço. O filósofo esloveno Slavoj Žižek, em Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, distingue três tipos de violência. O que chamei de violência aberta e ele chama de “violência subjetiva” é a mais evidente, aceita como tal, possui um perpetrador individual identificável, um “culpado” que podemos condenar. Mas há também uma violência simbólica (encarnada na linguagem) e uma violência sistêmica, que é fruto das estruturas sociais. Essas duas últimas determinam a vivência cotidiana, criando entraves e limitando possibilidades, impedindo as pessoas de decidir suas próprias vidas, constrangendo-as a privações e humilhações. Justamente por construírem o cotidiano, passam despercebidas, como algo próprio da natureza das coisas – e não são vistas como manifestações de violência. A condenação a elas não é automática, nem categórica; ao contrário, tem de ser disputada politicamente.

A violência simbólica e a violência sistêmica atingem de maneira muito mais específica os diferentes grupos sociais. O leitor de classe média bem estabelecida se encontra em situação de completa exterioridade em relação à experiência daquele que vai ao supermercado contando os trocados, que tem que devolver produtos no caixa ou que sabe que o segurança desconfia de sua presença ali. A literatura pode ser um espaço onde essa perspectiva tenha lugar, permitindo uma aproximação a realidades que são, reiteradamente, silenciadas. Pode ser um espaço de acolhimento, o que implicaria na construção de novas estruturas narrativas, mas pode ser também um lugar de reflexão, impulsionando os leitores a repensarem o modo como ocupam o mundo.

*Este texto é uma versão bastante resumida do artigo “Espaços possíveis: o lugar do pobre na literatura brasileira contemporânea”, publicado no livro Das luzes às soleiras, organizado por Ricardo Barberena e Vinícius Carneiro (Porto Alegre: Luminara, 2014).

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