tag:blogger.com,1999:blog-49868844307821655332024-03-13T11:04:54.006-07:00Grupo de Estudos em Literatura Brasileira ContemporâneaGrupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.comBlogger186125tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-89040085192010032832023-07-05T16:03:00.002-07:002023-07-05T16:03:17.002-07:00IX Simpósio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHoGxoYcU31RWikarGBv-gtBzecZHTI3zNPR7wPHcQ835S-NkKASWupJIWH8oICyRk-e_g-FsLkD6sMTzdEAF4VP9lstB2Ll6C1VOuOlvy-FW2hS3AWGQ-RVyK5zKEKY2RwWK8maGDWQnK8iARbtgL2IFa2fkLV3rqQmG58CdO9x67AMJVSiHBc_bglgs/s4928/banner%20evento%20BSB%202023.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2482" data-original-width="4928" height="322" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHoGxoYcU31RWikarGBv-gtBzecZHTI3zNPR7wPHcQ835S-NkKASWupJIWH8oICyRk-e_g-FsLkD6sMTzdEAF4VP9lstB2Ll6C1VOuOlvy-FW2hS3AWGQ-RVyK5zKEKY2RwWK8maGDWQnK8iARbtgL2IFa2fkLV3rqQmG58CdO9x67AMJVSiHBc_bglgs/w640-h322/banner%20evento%20BSB%202023.jpg" width="640" /></a></div><br /><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; tab-stops: 297.7pt;"><b><span style="background: white; font-size: 13pt;">IX Simpósio Internacional sobre Literatura Brasileira
Contemporânea: pensar e fazer a crítica<o:p></o:p></span></b></p><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; tab-stops: 297.7pt;"><span style="background: white; font-size: 12pt;">Universidade de Brasília, 23 a 26 de julho de 2023</span><span style="background-color: white; text-align: right;"> </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O ato de leitura de um texto ficcional dispara um
modo de pensar criticamente que envolve as visões de mundo do autor, do
narrador, das personagens e, sobretudo, de quem assina a crítica. Como alertou
Walter Benjamin, os valores do crítico devem estar explícitos e isso é tudo que
dele devemos saber. Essa tomada de posição de quem lê e comenta o texto literário
profissionalmente revela muito mais sobre o momento em que se vive que o
próprio texto ficcional. Por isso, de tempos em tempos é necessário olhar para
os campos em que se dá a produção crítica com o objetivo de compreender o que
tem sido feito, afinal, com a literatura. Entre a redução do espaço para a
literatura nos veículos de imprensa, a expansão de um campo novo de repercussão
dos lançamentos nas mídias digitais e as disputas políticas na pesquisa sobre
literatura feita a partir da universidade, a crítica literária segue sua
história de transformações nos espaços que ocupa, nos métodos que adota e nos
objetivos que assume para si. O IX Simpósio Internacional sobre a Literatura
Brasileira Contemporânea, organizado pelo GELBC, e que acontecerá entre os dias
23 a 26 de julho de 2023 na Universidade de Brasília, tem como objetivo tanto
analisar a própria crítica literária na contemporaneidade quanto explorar os
diferentes modos de fazê-la a partir da leitura da literatura brasileira
contemporânea. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; tab-stops: 297.7pt; text-align: justify;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-font-family: Calibri; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Organização</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-ascii-font-family: Calibri; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-hansi-font-family: Calibri; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea<o:p></o:p></span></p><p>
</p><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; tab-stops: 297.7pt; text-align: justify;"><b><span style="background: white; font-size: 12pt;">Coordenação</span></b><span style="background: white; font-size: 12pt;">: Anderson Luís Nunes da Mata (UnB), Pedro Mandagará (UnB),
Regina Dalcastagnè (UnB), Lucia Tormin Mollo <o:p></o:p></span></p><p>As inscrições serão feitas no local, no dia do evento. Confira a <a href="https://gelbcunb.blogspot.com/p/atividades.html">Programação</a>.</p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-24045368427288812062022-10-31T15:41:00.001-07:002022-10-31T15:41:17.884-07:00Discurso à nação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva<p> <table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiArJPtmdLqP6EvYSPWUHBItvjWOw3gbvKSlIRWJwR4DDXj6S6QFAAGU87msQPsWyXJxU1tKvCCOL67Px2bAJqtI_vc1M11iVlZsPSVyxbw3hx_q-M_piY7lxBzhfYcgTiZ3z3NSRMH6LiQ09CbMiaiYF4pUecwcEneAbZd2T-0WgEyt6AKVAU-1Crk/s1200/discurso%20de%20Lula.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1200" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiArJPtmdLqP6EvYSPWUHBItvjWOw3gbvKSlIRWJwR4DDXj6S6QFAAGU87msQPsWyXJxU1tKvCCOL67Px2bAJqtI_vc1M11iVlZsPSVyxbw3hx_q-M_piY7lxBzhfYcgTiZ3z3NSRMH6LiQ09CbMiaiYF4pUecwcEneAbZd2T-0WgEyt6AKVAU-1Crk/w400-h266/discurso%20de%20Lula.jpg" width="400" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Fotografia: Nelson Almeida</td></tr></tbody></table><br /></p><p><br /></p><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">“Meus amigos e minhas
amigas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Chegamos ao final de uma
das mais importantes eleições da nossa história. Uma eleição que colocou frente
a frente dois projetos opostos de país, e que hoje tem um único e grande
vencedor: o povo brasileiro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Esta não é uma vitória
minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nessa campanha. É a vitória
de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos,
dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse
vencedora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Neste 30 de outubro
histórico, a maioria do povo brasileiro deixou bem claro que deseja mais – e
não menos democracia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Deseja mais – e não menos
inclusão social e oportunidades para todos. Deseja mais – e não menos respeito
e entendimento entre os brasileiros. Em suma, deseja mais – e não menos
liberdade, igualdade e fraternidade em nosso país.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O povo brasileiro mostrou
hoje que deseja mais do que exercer o direito sagrado de escolher quem vai
governar a sua vida. Ele quer participar ativamente das decisões do governo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O povo brasileiro mostrou
hoje que deseja mais do que o direito de apenas protestar que está com fome,
que não há emprego, que o seu salário é insuficiente para viver com dignidade,
que não tem acesso a saúde e educação, que lhe falta um teto para viver e criar
seus filhos em segurança, que não há nenhuma perspectiva de futuro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O povo brasileiro quer
viver bem, comer bem, morar bem. Quer um bom emprego, um salário reajustado
sempre acima da inflação, quer ter saúde e educação públicas de qualidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Quer liberdade religiosa.
Quer livros em vez de armas. Quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos
os bens culturais, porque a cultura alimenta nossa alma.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O povo brasileiro quer
ter de volta a esperança.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">É assim que eu entendo a
democracia. Não apenas como uma palavra bonita inscrita na Lei, mas como algo
palpável, que sentimos na pele, e que podemos construir no dia-dia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Foi essa democracia, no
sentido mais amplo do termo, que o povo brasileiro escolheu hoje nas urnas. Foi
com essa democracia – real, concreta – que nós assumimos o compromisso ao longo
de toda a nossa campanha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">E é essa democracia que
nós vamos buscar construir a cada dia do nosso governo. Com crescimento
econômico repartido entre toda a população, porque é assim que a economia deve
funcionar – como instrumento para melhorar a vida de todos, e não para
perpetuar desigualdades.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">A roda da economia vai
voltar a girar, com geração de empregos, valorização dos salários e renegociação
das dívidas das famílias que perderam seu poder de compra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">A roda da economia vai
voltar a girar com os pobres fazendo parte do orçamento. Com apoio aos pequenos
e médios produtores rurais, responsáveis por 70% dos alimentos que chegam às
nossas mesas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Com todos os incentivos
possíveis aos micros e pequenos empreendedores, para que eles possam colocar
seu extraordinário potencial criativo a serviço do desenvolvimento do país.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">É preciso ir além.
Fortalecer as políticas de combate à violência contra as mulheres, e garantir
que elas ganhem o mesmo salários que os homens no exercício de igual função.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Enfrentar sem tréguas o
racismo, o preconceito e a discriminação, para que brancos, negros e indígenas
tenham os mesmos direitos e oportunidades.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Só assim seremos capazes
de construir um país de todos. Um Brasil igualitário, cuja prioridade sejam as
pessoas que mais precisam.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Um Brasil com paz,
democracia e oportunidades.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Minhas amigas e meus
amigos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">A partir de 1º de janeiro
de 2023 vou governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para aqueles
que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somo um único país, um único povo,
uma grande nação.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Não interessa a ninguém
viver numa família onde reina a discórdia. É hora de reunir de novo as
famílias, refazer os laços de amizade rompidos pela propagação criminosa do
ódio.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">A ninguém interessa viver
num país dividido, em permanente estado de guerra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Este país precisa de paz
e de união. Esse povo não quer mais brigar. Esse povo está cansado de enxergar
no outro um inimigo a ser temido ou destruído.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">É hora de baixar as
armas, que jamais deveriam ter sido empunhadas. Armas matam. E nós escolhemos a
vida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O desafio é imenso. É
preciso reconstruir este país em todas as suas dimensões. Na política, na economia,
na gestão pública, na harmonia institucional, nas relações internacionais e,
sobretudo, no cuidado com os mais necessitados.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">É preciso reconstruir a
própria alma deste país. Recuperar a generosidade, a solidariedade, o respeito
às diferenças e o amor ao próximo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Trazer de volta a alegria
de sermos brasileiros, e o orgulho que sempre tivemos do verde-amarelo e da
bandeira do nosso país. Esse verde-amarelo e essa bandeira que não pertencem a
ninguém, a não ser ao povo brasileiro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Nosso compromisso mais
urgente é acabar outra vez com a fome. Não podemos aceitar como normal que
milhões de homens, mulheres e crianças neste país não tenham o que comer, ou
que consumam menos calorias e proteínas do que o necessário.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Se somos o terceiro maior
produtor mundial de alimentos e o primeiro de proteína animal, se temos
tecnologia e uma imensidão de terras agricultáveis, se somos capazes de
exportar para o mundo inteiro, temos o dever de garantir que todo brasileiro
possa tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Este será, novamente, o
compromisso número 1 do nosso governo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Não podemos aceitar como
normal que famílias inteiras sejam obrigadas a dormir nas ruas, expostas ao
frio, à chuva e à violência.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Por isso, vamos retomar o
Minha Casa Minha Vida, com prioridade para as famílias de baixa renda, e trazer
de volta os programas de inclusão que tiraram 36 milhões de brasileiros da
extrema pobreza.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O Brasil não pode mais
conviver com esse imenso fosso sem fundo, esse muro de concreto e desigualdade
que separa o Brasil em partes desiguais que não se reconhecem. Este país
precisa se reconhecer. Precisa se reencontrar consigo mesmo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Para além de combater a
extrema pobreza e a fome, vamos restabelecer o diálogo neste país.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">É preciso retomar o
diálogo com o Legislativo e Judiciário. Sem tentativas de exorbitar, intervir,
controlar, cooptar, mas buscando reconstruir a convivência harmoniosa e
republicana entre os três poderes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">A normalidade democrática
está consagrada na Constituição. É ela que estabelece os direitos e obrigações
de cada poder, de cada instituição, das Forças Armadas e de cada um de nós.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">A Constituição rege a
nossa existência coletiva, e ninguém, absolutamente ninguém, está acima dela,
ninguém tem o direito de ignorá-la ou de afrontá-la.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Também é mais do que
urgente retomar o diálogo entre o povo e o governo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Por isso vamos trazer de
volta as conferências nacionais. Para que os interessados elejam suas
prioridades, e apresentem ao governo sugestões de políticas públicas para cada
área: educação, saúde, segurança, direitos da mulher, igualdade racial,
juventude, habitação e tantas outras.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Vamos retomar o diálogo
com os governadores e os prefeitos, para definirmos juntos as obras
prioritárias para cada população.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Não interessa o partido
ao qual pertençam o governador e o prefeito. Nosso compromisso será sempre com
melhoria de vida da população de cada estado, de cada município deste país.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Vamos também
reestabelecer o diálogo entre governo, empresários, trabalhadores e sociedade
civil organizada, com a volta do Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Ou seja, as grandes
decisões políticas que impactem as vidas de 215 milhões de brasileiros não
serão tomadas em sigilo, na calada da noite, mas após um amplo diálogo com a
sociedade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Acredito que os principais
problemas do Brasil, do mundo, do ser humano, possam ser resolvidos com
diálogo, e não com força bruta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Que ninguém duvide da
força da palavra, quando se trata de buscar o entendimento e o bem comum.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Meus amigos e minhas
amigas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Nas minhas viagens
internacionais, e nos contatos que tenho mantido com líderes de diversos
países, o que mais escuto é que o mundo sente saudade do Brasil.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Saudade daquele Brasil
soberano, que falava de igual para igual com os países mais ricos e poderosos.
E que ao mesmo tempo contribuía para o desenvolvimento dos países mais pobres.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O Brasil que apoiou o
desenvolvimento dos países africanos, por meio de cooperação, investimento e
transferência de tecnologia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Que trabalhou pela
integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe, que fortaleceu o
Mercosul, e ajudou a criar o G-20, a UnaSul, a Celac e os BRICS.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Hoje nós estamos dizendo
ao mundo que o Brasil está de volta. Que o Brasil é grande demais para ser
relegado a esse triste papel de pária do mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Vamos reconquistar a
credibilidade, a previsibilidade e a estabilidade do país, para que os
investidores – nacionais e estrangeiros – retomem a confiança no Brasil. Para
que deixem de enxergar nosso país como fonte de lucro imediato e predatório, e
passem a ser nossos parceiros na retomada do crescimento econômico com inclusão
social e sustentabilidade ambiental.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Queremos um comércio
internacional mais justo. Retomar nossas parcerias com os Estados Unidos e a
União Europeia em novas bases. Não nos interessam acordos comerciais que
condenem nosso país ao eterno papel de exportador de commodities e matéria
prima.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Vamos re-industrializar o
Brasil, investir na economia verde e digital, apoiar a criatividade dos nossos
empresários e empreendedores. Queremos exportar também conhecimento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Vamos lutar novamente por
uma nova governança global, com a inclusão de mais países no Conselho de
Segurança da ONU e com o fim do direito a veto, que prejudica o equilíbrio
entre as nações.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Estamos prontos para nos
engajar outra vez no combate à fome e à desigualdade no mundo, e nos esforços
para a promoção da paz entre os povos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O Brasil está pronto para
retomar o seu protagonismo na luta contra a crise climática, protegendo todos
os nossos biomas, sobretudo a Floresta Amazônica.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Em nosso governo, fomos
capazes de reduzir em 80% o desmatamento na Amazônia, diminuindo de forma
considerável a emissão de gases que provocam o aquecimento global.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Agora, vamos lutar pelo
desmatamento zero da Amazônia<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O Brasil e o planeta
precisam de uma Amazônia viva. Uma árvore em pé vale mais do que toneladas de
madeira extraídas ilegalmente por aqueles que pensam apenas no lucro fácil, às
custas da deterioração da vida na Terra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Um rio de águas límpidas
vale muito mais do que todo o ouro extraído às custas do mercúrio que mata a
fauna e coloca em risco a vida humana.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Quando uma criança
indígena morre assassinada pela ganância dos predadores do meio ambiente, uma
parte da humanidade morre junto com ela.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Por isso, vamos retomar o
monitoramento e a vigilância da Amazônia, e combater toda e qualquer atividade
ilegal – seja garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária
indevida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Ao mesmo tempo, vamos
promover o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região
amazônica. Vamos provar mais uma vez que é possível gerar riqueza sem destruir
o meio ambiente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Estamos abertos à
cooperação internacional para preservar a Amazônia, seja em forma de
investimento ou pesquisa científica. Mas sempre sob a liderança do Brasil, sem
jamais renunciarmos à nossa soberania.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Temos compromisso com os
povos indígenas, com os demais povos da floresta e com a biodiversidade.
Queremos a pacificação ambiental.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Não nos interessa uma
guerra pelo meio ambiente, mas estamos prontos para defendê-lo de qualquer
ameaça.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Meus amigos e minhas
amigas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O novo Brasil que iremos
construir a partir de 1º de janeiro não interessa apenas ao povo brasileiro,
mas a todas as pessoas que trabalham pela paz, a solidariedade e a
fraternidade, em qualquer parte do mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Na última quarta-feira, o
Papa Francisco enviou uma importante mensagem ao Brasil, orando para que o povo
brasileiro fique livre do ódio, da intolerância e da violência.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Quero dizer que desejamos
o mesmo, e vamos trabalhar sem descanso por um Brasil onde o amor prevaleça
sobre o ódio, a verdade vença a mentira, e a esperança seja maior que o medo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Todos os dias da minha
vida eu me lembro do maior ensinamento de Jesus Cristo, que é o amor ao
próximo. Por isso, acredito que a mais importante virtude de um bom governante
será sempre o amor – pelo seu país e pelo seu povo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">No que depender de nós,
não faltará amor neste país. Vamos cuidar com muito carinho do Brasil e do povo
brasileiro. Viveremos um novo tempo. De paz, de amor e de esperança.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Um tempo em que o povo
brasileiro tenha de novo o direito de sonhar. E as oportunidades para realizar
aquilo que sonha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Para isso, convido a cada
brasileiro e cada brasileira, independentemente em que candidato votou nessa
eleição. Mais do que nunca, vamos juntos pelo Brasil, olhando mais para aquilo
que nos une, do que para nossas diferenças.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Sei a magnitude da missão
que a história me reservou, e sei que não poderei cumpri-la sozinho. Vou
precisar de todos – partidos políticos, trabalhadores, empresários,
parlamentares, govenadores, prefeitos, gente de todas as religiões. Brasileiros
e brasileiras que sonham com um Brasil mais desenvolvido, mais justo e mais
fraterno.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Volto a dizer aquilo que
disse durante toda a campanha. Aquilo que nunca foi uma simples promessa de
candidato, mas sim uma profissão de fé, um compromisso de vida:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O Brasil tem jeito. Todos
juntos seremos capazes de consertar este país, e construir um Brasil do tamanho
dos nossos sonhos – com oportunidades para transformá-los em realidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Maus uma vez, renovo
minha eterna gratidão ao povo brasileiro. Um grande abraço, e que Deus abençoe
nossa jornada.”<o:p></o:p></span></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">São Paulo, 30 de
outubro de 2022.<o:p></o:p></span></p><br /><p></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-89400158785879574522022-07-23T06:45:00.005-07:002022-07-23T14:22:46.267-07:00Gótico nordestino ou Nordestino gótico?<p style="text-align: right;"> <span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; text-align: justify;">Tomaz Amorim Izabel</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";"><o:p></o:p></span></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhy0qwg38Sex7FiKETCSfEs3FUlkiEUWIH9ttqpvkBCd_05M7ZeBBvge_OoteyMTas2VcfOY-tZbUTH3zUtY27oh_lvVqXIFsxFa2GPEyZh46RxRv1fykcQxsFrdnqe55JgRDO7WojEC9wei8BR02gq2_OPeiqoUZ9ILAGUpbaFWdbscdLHG62M6giz/s2016/samico3.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1534" data-original-width="2016" height="283" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhy0qwg38Sex7FiKETCSfEs3FUlkiEUWIH9ttqpvkBCd_05M7ZeBBvge_OoteyMTas2VcfOY-tZbUTH3zUtY27oh_lvVqXIFsxFa2GPEyZh46RxRv1fykcQxsFrdnqe55JgRDO7WojEC9wei8BR02gq2_OPeiqoUZ9ILAGUpbaFWdbscdLHG62M6giz/w373-h283/samico3.jpg" width="373" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Xilogravura de Gilvan Samico</td></tr></tbody></table><br /><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";">Gótico nordestino</span></i><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";">, último livro de contos de
Christiano Aguiar, publicado este ano pela Alfaguara, tem um apelo para o
público jovem e é indissociável de uma estética contemporânea ligada ao pop das
séries de televisão. O livro traz nove histórias curtas com enredos ligados ao
sobrenatural ou, no sentido literário mais tradicional, ao “estranho”. A
inovação do livro estaria na ambientação dos temas para cenários locais,
adaptando figuras do imaginário pop como zumbis e vampiros para as condições
sociais e psicológicas do Nordeste brasileiro. A exuberância “neo-armorial” que
poderia surgir daí (como sugerido na bela capa escolhida para a edição) acaba
pendendo mais para a repetição com pouco diferença típica da Indústria Cultural
e o resultado estético é como muitas das séries brasileiras dos serviços de
streaming: mantém uma estrutura narrativa gringa, com uma cor local. Isso não
impede que muitos leitores possam se divertir com o esforço imaginativo do
livro, que tem principalmente nas descrições mais plásticas um estranho efeito sedutor. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";"> A
reflexão sobre o livro pode nos levar a pensar sobre a literatura fantástica,
ou “especulativa”, em sentido amplo e a duas coisas que são fatais a ela: a
explicação total dos acontecimentos, de um lado, e sua gratuidade, do outro. As
melhores histórias fantásticas são aquelas em que o monstro nunca surge
completamente descrito, em que o mistério nunca se revela por completo. (É
conhecido o pedido de Franz Kafka a seu editor de que o terrível inseto nunca
fosse desenhado na capa!) As histórias mais instigantes são aquelas em que algo
do estranho está intimamente ligado ao lugar, às pessoas, ao cotidiano e nunca
é mesmo completamente separável deles. Para ter profundidade, para incomodar,
para se ligar ao leitor como uma ventosa que nunca mais se soltará de sua pele,
o novo do estranho precisa ser também um velho conhecido (como Freud argumenta
em seu conhecido ensaio sobre <i>O homem de areia</i> de E.T.A. Hoffmann). <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";"> Em
<i>Gótico nordestino</i>, há desde o título uma tentativa feliz de fazer o
horror surgir a partir das especificidades locais. O sucesso da tentativa é
bastante variado nas diferentes histórias. Embora o cenário seja declaradamente
o sertão de cangaceiros ou uma praia abandonada de uma cidadezinha do litoral,
as especificidades deste local nem sempre se ligam ao misterioso. A impressão é
de que as histórias permanecem mais fiéis ao gótico de origem do que ao
nordestino para onde são transplantadas. Isso dá um elemento de gratuidade a
algumas das narrativas, como se cenário e ação flutuassem um sobre o outro, sem
se ligar e sem interferir um no outro. A rica tradição oral de histórias de
assombrações e criaturas fantásticas brasileiras, seu modo específico de
indicar a presença conhecida daquele estranho, dá lugar a um misterioso
externo, que vem de fora (o que literalmente acontece, por exemplo, no caso na
maldição de “A mulher dos pés molhados”). Uma outra estratégia praticada no
livro, a de normalizar o estranho e com isso causar um espanto ainda maior (ao
modo de Cortázar, Calvino ou Borges), também não se concretiza por um excesso
de adjetivos e tons penumbrosos demais.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";">Assim, as histórias do livro
parecem ser concebidas mais a partir de um certo efeito visual sedutor que, ao
invés de servir de motor para a narrativa, acaba servindo de ponto de chegada,
como uma faca ou olhos ou um incêndio que brilham no escuro e que se quer
mostrar. Esse efeito não surge tanto da relação entre os personagens, de um
acontecimento infeliz do passado, acobertado pela razão, que ressurge novamente
no presente (como em tantas histórias de Edgar Allan Poe), mas fica desligado
deles. Abate-se sobre os personagens com uma certa arbitrariedade, que faz
também com que a construção narrativa perca em força. Em resumo, as histórias
parecem buscar mais uma exuberância visual do que narrativa, por assim dizer. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";">Isso não é tanto um problema
desse trabalho específico, quanto um sintoma das relações pendulares entre
cinema e literatura, e sua manifestação específica em nosso momento atual. O
último peso adicionado nessa balança em movimento (depois talvez dos
videoclipes de duas décadas atrás) são justamente as séries de streaming. No
caso de <i>Gótico nordestino</i>, vê-se as influências já consagradas do
audiovisual – a velocidade, o corte das cenas, o elemento visual como condutor
da construção das personagens –, mas também algo além. A narrativa privilegia
de tal maneira os elementos visuais e suspensão ao se confrontar com o estranho
(“Fim do episódio, desejar continuar assistindo a série?”), que acaba por abrir
mão da construção psicológica dos personagens. O último conto, “Vampiro”, é
exemplar disso. Toda a longa construção da personagem e de cenário é trocada
por um pequeno susto-revelação no final. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";">A adição de elementos
estranhos rumo a um rompante surpreendente (coisa já da estética romântica que
a Indústria Cultural repete <i>ad nauseam</i>)
é um procedimento tão recorrente no livro que o leitor às vezes tem a impressão
de estar lendo uma versão romantizada de uma série fantástica da Netflix. Ou,
dito pelo contrário, é como se lêssemos um livro de contos escrito para ser
roteirizado e transformado em série. A simplicidade vocabular e sintática,
voltada quase sempre para a ação ou para as impressões de um narrador colado no
protagonista, dá às histórias uma clareza de vídeo, o que dificulta justamente
a construção de uma ambientação de horror... A opção por estes mecanismos, ao
invés de técnicas narrativas da palavra ou da tradução de técnicas
cinematográficas em técnica literária, parece visar um leitor mais educado na
tradição do audiovisual do que na literária, ou seja, sem dúvida fala muito com
a maioria dos leitores brasileiros, o que talvez justifique sua inclusão no
polêmico gênero da “literatura de entretenimento”. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";">O conto mais interessante do
livro, “Anna e seus insetos”, funciona melhor justamente porque explica menos,
envolve a estranha presença dos insetos em questões pessoais da protagonista,
que é descrita em detalhes convincentes. A questão do “sobrenatural” quase não
se coloca. Podia ser tudo mergulho psicológico ao modo clariciano, ou seja, de
profundidade metafísica, assombrosa, já para muito além da mera física...<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-font-family: "EB Garamond";"> Uma
das dificuldades dessa empreitada do horror brasileiro (ou melhor, da ficção
especulativa como um todo) talvez seja a relação histórica específica de nossa
cultura com o chamado sobrenatural. Enquanto as histórias fantásticas europeias
e estadunidenses surgiam quase que em oposição à racionalização e à
secularização modernas (como, por exemplo, no <i>Drácula</i> de Bram Stoker ou
nas histórias do <i>Cthulhu</i> de H. P. Lovecraft), tratando dos vestígios do
encantado (locais ou trazidos das colônias) durante seu próprio processo de
extinção, aqui, nos territórios colonizados, mas com múltiplas matrizes
culturais vivas e atuantes como o nosso, o elemento fantástico não pode ser
simplesmente “folclorizado” e dissociado da vida cotidiana e das práticas
religiosas das pessoas. O fantástico aqui precisa ser tratado como elemento
ordinário, não extraordinário, e isso subverte o elemento de excepcionalidade
que até então definia o gênero nos territórios modernizados do norte. <o:p></o:p></span></p><p style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-language: PT-BR;">O
termo já paradoxal “realismo fantástico”, que se desenvolveu não por acaso na
América do Sul, foi uma tentativa de representação dessa configuração
específica. A ambivalência católica (que aqui também sempre tem algo de mágico)
e a indecidibilidade diante da existência do Diabo em <i>Grande sertão: veredas
</i>é outro grande exemplo. A literatura contemporânea também parece lidar de
maneira crítica com a questão. É difícil, por exemplo, chamar obras
contemporâneas como <i>Torto arado</i>, de Itamar Vieira, <i>Exu em Nova Iorque</i>, de Cidinha da
Silva, ou <i>O som do rugido da onça</i>, de Micheliny Verunschk, de literatura
fantástica ou de realismo mágico. A sobrevivência de certos elementos do
encantado resistentes à modernização colonizadora por todo o território são o
que existe de mais característico e fundamental para nossa riquíssima tradição
oral, e são fundamentais para uma literatura especulativa que se queira
brasileira. (Experimentações afrofuturistas, por exemplo, parecem seguir esta
trilha...) Lidar com isso pode abrir possibilidades excitantes para redefinir
os estatutos do real e do fantástico, ou melhor, pode oferecer representações
condizentes das relações únicas entre o real e o fantástico que se estabelecem
por aqui. Seria o caso talvez de imaginar depois do “Gótico nordestino”, também
um “Nordestino gótico".</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "EB Garamond"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "EB Garamond"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "EB Garamond"; mso-fareast-language: PT-BR;">* Este texto é uma versão modificada de uma resenha publicada no Jornal Rascunho.</span></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-33384537308873144642021-05-26T07:53:00.006-07:002021-05-26T07:53:40.357-07:00NOTA DOS EDITORES DA REVISTA ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 12.0pt;">A revista <i>Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea</i>, do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira
Contemporânea da Universidade de Brasília, comunica que está encerrando
definitivamente suas atividades devido à falta de financiamento. Em circulação
desde 1999, foram publicados 62 números até este ano, sem interrupções nem
atrasos. A revista é qualificada como A1 na avaliação da Capes e indexada no
Scielo, Scopus, Redalyc e em inúmeros outros indexadores nacionais e internacionais,
sendo reconhecida pelos pesquisadores da área, no Brasil e no exterior. Sempre
foi editada com recursos insuficientes, contando com a colaboração gratuita de
professores e estudantes, que roubavam tempo de seu descanso para produzi-la,
por acreditarem em um projeto de reflexão crítica e plural sobre a literatura e
o campo literário brasileiros atuais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 12pt;">Com o desaparecimento dos editais de
apoio a publicações no Brasil e sem suporte institucional </span><span style="background: white; color: #222222; font-size: 12pt;">(ainda que
a <i>Estudos</i> tenha sido um dos únicos três periódicos da UnB a
receber nota máxima na última rodada de avaliação da Capes)</span><span style="font-size: 12pt;">, não há como dar continuidade ao trabalho. Esta é uma
das consequências do desmonte da educação pública e da pesquisa no país,
especialmente na área de Humanas. Os reflexos do fechamento de uma revista
desse porte para os programas de pós-graduação em literatura são grandes. Só no
último ano, a revista publicou 50 textos, de pesquisadores ligados às mais
diferentes instituições brasileiras e também do exterior.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 12pt;">A inviabilização de uma revista como a </span><i style="font-size: 12pt;">Estudos
de Literatura Brasileira Contemporânea</i><span style="font-size: 12pt;">, que comunga dos ideais da ciência
aberta, não é uma situação isolada. Em nome da “sustentabilidade”, há uma
pressão imensa para que os periódicos acadêmicos cobrem dos autores a
publicação de seus artigos. Caso contrário, na ausência de outras formas de
apoio, teriam que repassar os custos aos leitores. Existem revistas
estrangeiras cobrando o equivalente a R$ 15.000,00 ou até mais para um
brasileiro publicar seu texto; revistas nacionais que já se submeteram à ideia
cobram valores também na casa dos milhares de reais. Uma vez que a publicação
em periódicos acadêmicos, além de garantir a circulação do conhecimento, é
importante para a formação do currículo do pesquisador e para a qualificação
dos programas de pós-graduação, cabe perguntar: quem pagará por isso?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 12pt;">Certamente não serão os pesquisadores
sem dinheiro ou as instituições mais periféricas. Recursos de universidades públicas,
que poderiam ser utilizados para financiar as revistas brasileiras, já estão
sendo empregados para pagar editoras acadêmicas comerciais que, na outra ponta,
cobram valores exorbitantes para que as bibliotecas universitárias possam
disponibilizá-las a seus professores e alunos (comprometendo o orçamento das
bibliotecas e, portanto, a atualização dos acervos de livros). Trata-se de um
negócio muito lucrativo. Não por acaso, nos últimos anos a </span><i style="font-size: 12pt;">Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea</i><span style="font-size: 12pt;"> recebeu – e rechaçou, evidentemente –
várias propostas de venda de sua “marca” para editoras predatórias.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 12pt;">Diante desse quadro, decidimos que não podemos
nos impor mais sacrifícios para continuar a editar a revista – um trabalho que
não “dá pontos” no currículo, não conta na carga horária, não é remunerado e
não recebe praticamente nenhum apoio ou mesmo reconhecimento. Juntaremos nossas
forças para resistir em outras frentes, em defesa da democracia, da justiça
social, da ciência e da educação pública. Agradecemos enormemente a colaboração
de centenas, talvez milhares de colegas pesquisadores nesses mais de 20 anos,
que nos enviaram artigos, deram pareceres, ajudaram na divulgação da revista.
Foi um lindo trabalho coletivo.</span></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: right;"><span style="font-size: 12.0pt;"><o:p> </o:p></span></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: right;"><span style="font-size: 12.0pt;">Brasília, 26 de maio de
2021.<o:p></o:p></span></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: right;"><span style="font-size: 12.0pt;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 12.0pt;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Regina
Dalcastagnè</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Universidade de Brasília (editora-chefe)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Patrícia
Trindade Nakagome</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">, Universidade de Brasília (editora científica)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Laeticia
Jensen Eble</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">, Universidade de Brasília (editora-executiva)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Leocádia
Aparecida Chaves</span></b><span style="background: white; color: black; font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin; mso-color-alt: windowtext;"> (secretária executiva)</span><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Paula Queiroz Dutra</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Instituto Federal de Brasília (editora da
seção temática)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Paulo
César Thomaz</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Universidade de Brasília (editor da seção
temática)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Sandra
Assunção</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Université Paris Nanterre (editora da seção
temática)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Anderson
da Mata</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Universidade de Brasília (editor da seção de
tema livre)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Igor
Ximenes Graciano</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (editor da seção de tema livre)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Leila
Lehnen</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Brown University (editora da seção de tema
livre)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Milton
Collonetti</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (editor da seção de resenhas)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0cm; margin-left: 14.2pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: -14.2pt;"><b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">Edma
Cristina Alencar de Góis</span></b><span style="font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;">, Universidade do Estado da Bahia
(editora da seção de resenhas)<o:p></o:p></span></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-56220558224938495582021-05-13T14:18:00.004-07:002021-05-14T08:05:24.346-07:00Pela liberdade e igualdade negras<h3 style="text-align: center;"> <span style="font-family: "Times New Roman", serif; text-align: right;">Maria Clara Machado</span></h3><div><span style="font-family: "Times New Roman", serif; text-align: right;"><br /></span></div><div><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-PmLeJM1zAvU/YJ2XKzTgBwI/AAAAAAAABvE/pVHZs2EUY9gVFPgMj7zU7jgGvxvxmEmMQCLcBGAsYHQ/s980/WhatsApp%2BImage%2B2021-05-13%2Bat%2B18.15.15.jpeg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="980" data-original-width="829" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-PmLeJM1zAvU/YJ2XKzTgBwI/AAAAAAAABvE/pVHZs2EUY9gVFPgMj7zU7jgGvxvxmEmMQCLcBGAsYHQ/w339-h400/WhatsApp%2BImage%2B2021-05-13%2Bat%2B18.15.15.jpeg" width="339" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Fotografia de Carolina Maria de Jesus</td></tr></tbody></table></div><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">No capítulo “Negros”, do livro <i>Diário de
Bitita</i>, de Carolina Maria de Jesus, a protagonista conta, entre outras
coisas, a história de seu avô, que tinha sido escravo: “O meu avô era um vulto
que saía da senzala alquebrado e desiludido, reconhecendo que havia trabalhado
para enriquecer seu sinhô português” (1986: 60).<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O trabalho escravo a que gerações de pessoas negras
foram submetidas durante três séculos no Brasil não fez jus a qualquer
reparação aos ex-cativos quando de sua libertação. Ao contrário, a Lei que
aboliu a escravidão há apenas 133 anos, a 13 de maio de 1888, instituiu
simplesmente: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no
Brasil”, sem qualquer previsão de medida de inserção socioeconômica para a
população de escravizados liberta. Cada um que seguisse seu caminho, um
percurso que começara no século XVI, quando os primeiros africanos escravizados
foram traficados para o Brasil.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Quando a abolição finalmente foi proclamada, um
domingo, a capital do Império, o Rio de Janeiro, entrou em festa. “Todos
respiravam felicidade, tudo era delírio”, relatou Machado de Assis (1893)
alguns anos depois em crônica publicada na <i>Gazeta de Notícias</i>. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Mais jovem que Machado, Lima Barreto, nascido
no mesmo 13 de maio, mas sete anos antes da abolição, lembrou na crônica “Maio”
o clima de festa e liberdade que experimentou quando criança: <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 70.9pt; margin-right: 70.9pt; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 70.9pt; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 11pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e
disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e
nós fomos esperar a assinatura no largo do Paço [...] Afinal a lei foi assinada
e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à
janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas... Fazia sol e o dia
estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e
os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da
vida inteiramente festa e harmonia (BARRETO, 4/5/1911).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">As comemorações na capital e em outras cidades uniram
em festa conhecidas figuras da época e toda a gente, entre os quais, muitas
pessoas negras que sustentaram na carne o regime escravista. Após os festejos,
no entanto, muitos continuaram trabalhando para os antigos proprietários como
conta Helena Morley em seu diário escrito entre 1893 e 1894:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 70.9pt; margin-right: 70.9pt; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 70.9pt; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 11pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Na chácara, moram ainda muitos negros e negras do tempo do
cativeiro, que foram escravos e não quiseram sair com a Lei de 13 de maio. Vovó
sustenta todos... As negras, as que não bebem, são muito boas e para terem seus
cobres fazem pasteis de angu, sonhos e acarajés para as festas de igreja e para
a porta do teatro (MORLEY, 1998: 52) .<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">O governo Republicano, proclamado no país um ano
após a abolição, adotara carta constitucional em 1891 que aparentemente ampliava
direitos, como o acesso ao voto. No entanto, a CF impedia o mesmo exercício a
mendigos e analfabetos que até 1881 podiam votar; assim como determinava que o
acesso aos cargos públicos deveria se dar por mérito, mas, novamente, sem
prever meios de acesso à educação formal à imensa população negra. Os avanços,
portanto, não ultrapassaram a letra constitucional. Em verdade, buscou-se
criar, na certeira interpretação de Luís Felipe de Alencastro (2010), “um
ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos”, numa
situação de “infracidadania”, só alterada em 1985. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">A extrema miséria, a falta de assistência à
saúde e o mínimo acesso à educação formal, se não impediam por completo,
dificultavam que negras e negros se libertassem de fato de todas as
consequências do regime da escravidão recém-abolida. Quatro décadas mais tarde,
Carolina Maria de Jesus revisita as consequências do pós-abolição. Neta de
escravos, a protagonista Bitita<i> </i>relata sua experiência no interior de
Minas Gerais: <a name="_Hlk71820139">“Nas fazendas não havia escolas, havia
enxadas em abundância” (1986: 112).<o:p></o:p></a></span></p>
<span style="mso-bookmark: _Hlk71820139;"></span>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Se pensarmos nos três séculos de escravidão
antes de a abolição ser proclamada no Brasil, e consideramos que a
independência de Portugal ocorrera em 1822, sem colocar fim ao sistema de
exploração escrava – que só ocorreria em 1888 –, concluímos que a liberdade e a
igualdade que se buscavam era apenas para os brasileiros brancos de posses, como
ficou institucionalizado com o texto constitucional de 1824. Os escravizados
permaneceram sem qualquer direito civil estabelecido e eram tidos como objetos
de direito, embora tivessem deveres. De modo que os pretos pareciam não fazer
parte do mesmo país que os brancos, conforme diz a protagonista Kehinde, em <i>Um
defeito de cor,</i> ao narrar o dia da independência:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 70.9pt; margin-right: 70.9pt; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 70.9pt; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 11pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Em uma manhã de primavera, e de setembro, primeiro chegou o
barulho de rojões e de tiros de canhão, e depois a notícia de que o Brasil
estava livre de Portugal... O sinhô José Carlos mandou também que o Cippriano
explicasse que nada tinha mudado para os escravos, que os pretos não eram um
país. (GONÇALVES, 2019: 164)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Assim como a independência do Brasil não ensejou
a emancipação dos escravizados, também a independência norte-americana em 1776
só levara inicialmente à abolição da escravidão em algumas das colônias do
Norte. No caso da Revolução Francesa, os revoltosos não somaram a suas demandas
os direitos das populações negras e mestiças escravizadas nas colônias, sequer
incluindo em sua Declaração os diretos das mulheres francesas, como denunciado
por Olympe de Gouges (1791) . Observar essas realidades torna mais fácil
compreender que as revoluções liberais europeias, bem como os ideais
iluministas que as inspiraram, não implicavam necessariamente em rupturas
estruturais do sistema de produção da época, mantido pela escravidão de
africanos negros não só no Brasil, mas na maior parte das Américas e do Caribe,
regiões invadidas e dominadas por ingleses, franceses, espanhois e portugueses.
<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Nesse contexto, a universalidade dos ideais
revolucionários de inspiração iluminista só foi largamente posta em questão
pela luta por liberdade de mulheres e homens escravizados no Caribe e na
América Latina, sobretudo em função de uma revolução que levaria à
independência da colônia francesa de São Domingos. O autoproclamado Haiti se
tornou, em 1804, a primeira nação livre da escravidão, do tráfico e do jugo
colonial por ação de negras e negros. Entre as figuras revolucionárias, Toussaint
Louverture emergiu como líder negro que finalmente derrotara as até então imbatíveis
tropas napoleônicas que fizeram tremer a Europa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Essa revolução de tamanha importância, no
entanto, ainda que tenha influenciado em certa medida as literaturas em línguas
francesa e inglesa, não chegou a povoar com força a literatura brasileira em
formação. É verdade que, segundo o crítico Sydney Chalhoub (2018), a literatura
brasileira do século XIX foi dominada por obras que criticavam a escravidão,
embora tenha sido esse o século que sedimentou a noção de cor como marcador
social e que solidificou o “racismo científico” como legitimador do
preconceito.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Muitas vezes, na avaliação de Chalhoub, é
necessário um trabalho de interpretação para depreender da tessitura superficial
do texto camadas mais críticas ao sistema vigente da época. De fato, podemos
ler em Machado de Assis, senão a crítica apaixonada contra a escravidão,
elogios à emancipação dos escravizados, como no livro <i>Memorial de Aires</i>
(1908), em que o protagonista, um diplomata brasileiro aposentado, comemora em
seu diário a abolição no 13 de maio: <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 70.9pt; margin-right: 70.9pt; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 70.9pt; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 11pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista
da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube... Estava na rua
do ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral (ASSIS, 1994: 24).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">É importante frisar também que, mais tarde, a
República brasileira foi proclamada durante o apogeu das teorias raciais que
serviram, entre outras coisas, para legitimar mudanças em território nacional
que, novamente, privilegiavam e preservavam o poder econômico e político das
elites brancas. Assim, ainda que o Brasil tenha passado por avanços importantes
ao longo dos séculos, com destaque nos tempos mais recentes para a Lei 12.711,
de 2012,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>que reserva vagas para
estudantes egressos das escolas públicas, a criação da Secretaria Nacional de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (em 2011) e da Lei nº 11.645,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>de 2008, que torna obrigatório o ensino de
história e cultura afrodescendente e indígena nas escolas, sua história é
marcada pelo racismo e pela desigualdade. Nesse percurso do “quem somos nós”,
na prática, negras e negros sempre estiveram bem longe de alcançar o exercício
de direitos plenos de cidadania, experiência vivida por Bitita que reivindica
“um Brasil para os brasileiros”<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Pela%20liberdade%20negra.docx#_ftn1" name="_ftnref1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: EN-US;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>,
uma posição que clamava por emancipação, liberdade e igualdade efetivas para as
populações negras que ainda não goza(va)m dos mesmos direitos que a população
branca, excluídos do ideal de nação ao longo da nossa história. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Para além da individualidade da protagonista, o <i>Diário
de Bitita</i> expõe, entre outras coisas, as condições das populações negras e
reflete sobre elas, evidenciando, por exemplo, o genocídio institucionalizado
do negro, denunciado por Abdias Nascimento (1978) <i>em O genocídio do negro
brasileiro</i>. Bitita, por sua vez, conta que “já estava [se] habituando com a
morte, porque a mortalidade no estado de Minas Gerais é assustadora”. Ela revela
ainda a banalização da morte: <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 70.9pt; margin-right: 70.9pt; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 70.9pt; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 11pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">O policial deu-lhe voz de prisão; ele era da roça, saiu correndo.
O policial deu-lhe um tiro. A bala penetrou dentro do ouvido. O soldado sorria,
dizendo: – Que pontaria que eu tenho! Com o pé, ele movia o corpo sem vida
[...] Quem é que vai chorar por ele? </span><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">(JESUS,1986: 95)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Enquanto os números vultosos da violência
policial contra as populações negras impedem a identificação empática com cada
indivíduo morto e violentado pelo Estado, as narrativas afrodescendentes podem
salvar do esquecimento identidades esfaceladas, conferindo ao não dito
histórias e reflexões e disputando com o discurso hegemônico da normalização da
morte interpretações possíveis, por meio da edificação de existências
narrativas que superam e suplantam o silenciamento imposto. Bitita, assim como
outras personagens que povoam a literatura das margens e periferias, longe do
cânone branco de inspiração europeia, pode nos fornecer perspectivas muito
enriquecedoras para compreendermos as formações complexas, desiguais e racistas
da nossa sociedade. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">As memórias dos negros, indígenas, mulheres,
entre outros sujeitos subalternizados, são fonte vigorosa, senão da verdade dos
documentos históricos, da construção de alteridades há muito reprimidas que
precisam emergir a fim de que possamos repensar os padrões de civilidade, em
termos de acesso a direitos, que buscamos para nossos povos. Dentro desse
processo de reivindicação de histórias, memórias e heranças, é fundamental
reelaborarmos os processos de emancipação dos escravizados, em que as agências
de heróis negros, como Toussaint Louverture, <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>para citar um nome caribenho – finalmente
ganhem a medida de importância de seus feitos dentro do passado compartilhado
que nos une. Assim como precisamos evocar nesta data a agência de
personalidades negras brasileiras importantes para a libertação de escravizadas
e escravizados, como a do poeta e advogado Luís Gama, ou dos abolicionistas
José do Patrocínio e André Rebouças. Neste 13 de maio, precisamos também ouvir
Carolina Maria de Jesus e nos somar a ela, quando registra, no dia 13 de maio
de 1958, no <i>Quarto de despejo</i>, que “lutava contra a escravatura atual –
a fome!” (JESUS, 2014: 32).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Na esfera da vida privada, assim como Carolina
Maria de Jesus lutou contra a fome de seus filhos, as mães escravizadas tiveram
papel preponderante na sobrevivência dos filhos durante o regime, o que se
configura como forma de resistência e preservação das famílias e comunidades
negras (</span>Maria Helena MACHADO, 2019: 334-340). <span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">E elas também participaram da luta abolicionista na esfera
pública. Ângela Alonso (2011) mapeou 26 associações antiescravistas, sendo 18
exclusivamente femininas, em metade das 20 províncias do Império. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Hoje, 133 anos após a proclamação da abolição,
ainda vivemos a criminalização do corpo negro e a reatualização diária do
genocídio das populações negras brasileiras. De modo que pensar o heroísmo do
povo negro, a agência e a solidariedade negras dentro de seus contextos
históricos e de suas possibilidades e limitações nos permite vislumbrar um
futuro que se forja na luta e na reelaboração da vida que nega a vida, mas que
brota, que insiste, que persiste, que resiste. Essas reelaborações ampliam e
atualizam o conhecimento sobre nós mesmos e sobre nossas heranças partilhadas
com a América Latina, o Caribe e a África. Nós, afinal, não estamos sós e somos
muitas e muitos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Mas para que essa coletividade emerja, é preciso
que uma ampla divulgação de memórias da escravidão e do período pós-abolição
atravesse o ensino nas escolas e universidades, inspire uma renovada atuação de
sindicatos e associações e se some às disputas nas esferas políticas para a
edificação de outros mundos, a fim de celebrarmos duradouramente a liberdade
ampla e irrestrita.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><b><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Referências:<o:p></o:p></span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">ALENCASTRO, Luiz Felipe
de. “O pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira”. <i>Novos Estudos</i>,
n. 87, p. 5-11, CEBRAP, São Paulo, 2010.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">ALONSO, Ângela.
“Associativismo avant la lettre: as sociedades pela abolição da escravidão
no Brasil oitocentista”. <i>Dossiê Sociologias</i>, ano 13, n. 28, Rio Grande
do Sul, set/dez. 2011, p. 166-199.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. <i>Gazeta de Notícias</i>. 14 de maio de 1893. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. <i>Obra completa</i>. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, (1908) 1994.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">BARRETO, Lima. <i>Crônicas</i>.
Disponível em </span><a href="http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000173.pdf"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000173.pdf</span></a><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">JESUS, Carolina Maria
de. <i>Quarto de despejo</i>. Ática, São Paulo, 2014.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">JESUS, Carolina Maria
de. <i>Diário de Bitita</i>. Nova Fronteira, 1986.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif;">MORLEY, Helena. <i>Minha vida de
menina</i>, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">NASCIMENTO, Abdias. <i>O
genocídio do negro brasileiro</i>, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">CHALHOUB, Sidney.
“Literatura e escravidão”. <i>Dicionário escravidão e liberdade</i>. Companhia
das Letras, São Paulo, 2018, p. 298-304.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">GONÇALVES, Ana Maria. <i>Um
defeito de cor</i>. Record, Rio de Janeiro, 2006.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif;">GOUGES,
Olympe de. <i>Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne</i>, 1791.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">MACHADO, Maria Helena
Toledo Pereira. “Mulher, corpo e maternidade”. <i>Dicionário Escravidão e
Liberdade</i>. Companhia das Letras, São Paulo, 2018, p. 334-340.<o:p></o:p></span></p>
<div style="mso-element: footnote-list;"><!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText" style="text-align: justify;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Pela%20liberdade%20negra.docx#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT" style="font-family: "Times New Roman",serif;"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT" style="border: none; color: black; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></span></a><span lang="PT" style="font-family: "Times New Roman",serif;"> A autora Carolina Maria de
Jesus pretendia inclusive dar o título <i>Um Brasil para os brasileiros</i> aos
manuscritos, de cuja edição resultou o <i>Journal de Bitita </i>e a sua versão
para o português brasileiro<i>, Diário de Bitita, </i>publicados postumamente.</span><span lang="PT"><o:p></o:p></span></p>
</div>
</div>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-45402224815375626742021-04-19T09:52:00.002-07:002021-04-19T09:52:31.102-07:00Lygia Fagundes Telles e a experiência feminina<h3 style="text-align: right;"> Regina Dalcastagnè</h3><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-MWbdSRpM50M/YH20A9l-m8I/AAAAAAAABuc/SVU0oYpFHcYCTsmNjuQ2zd7hWNbAhkyPACLcBGAsYHQ/s550/frases-de-lygia-fagundes-telles.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="483" data-original-width="550" height="351" src="https://1.bp.blogspot.com/-MWbdSRpM50M/YH20A9l-m8I/AAAAAAAABuc/SVU0oYpFHcYCTsmNjuQ2zd7hWNbAhkyPACLcBGAsYHQ/w400-h351/frases-de-lygia-fagundes-telles.jpg" width="400" /></a></div><br /><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Poucos
escritores alcançam a unanimidade, entre público e crítica, de que Lygia
Fagundes Telles desfruta. Hábil fabuladora, exímia construtora de personagens e
com amplo domínio do estilo, ela é uma narradora completa. Não se furta a
utilizar, em seus romances e contos, técnicas narrativas sofisticadas, mas
jamais apela para o vanguardismo hermético que aliena o leitor comum. Os traços
distintivos da literatura contemporânea – a pluralidade de vozes, a
fragmentação e, em especial, a ambiguidade, que a autora maneja com maestria –
estão presentes em toda a sua obra. Mas há muito mais ali. Sem tampouco ter
cedido ao panfletarismo, Lygia Fagundes Telles sempre mostrou ser uma escritora
comprometida com o seu tempo e com o seu país. Esta postura é mais evidente no
romance As meninas, lançado em 1973, retrato de uma geração violentada
pela ditadura militar e que contém uma denúncia pioneira da prática da tortura
política no Brasil. Porém, a sensibilidade para as transformações nas relações
de gênero, de geração e familiares, bem como para os mecanismos de exclusão
social, é uma constante em sua obra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O
medo, a confusão diante de tantas transformações, as ilusões perdidas, os
sonhos que nunca param de se renovar – as personagens de Lygia Fagundes Telles
vivem intensamente nossos dramas cotidianos, por pequenos que sejam. Dramas
muitas vezes com contexto preciso. Ninguém pode ignorar o autoritarismo dos
anos 1970, que dá contorno às existências de Lia, Lorena e Ana Clara, em As
meninas, por exemplo; mas as vicissitudes do período e do local específicos em
que a trama se situa mesclam-se à experiência do tornar-se adulto, com tudo o
que essa passagem implica em termos de escolhas e decisões – o que faz com que
o romance mantenha sempre vivo o interesse das novas gerações. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Sejam
jovens, como as protagonistas desse romance, de <i>Ciranda de pedra</i> ou de
<i>Verão no aquário</i>; crianças, como as dos muitos contos ao longo dessas
décadas de produção; mulheres maduras ou já idosas, como a atriz de <i>As
horas nuas</i>, ou as do belo <i>A noite escura e mais eu</i> – a
condição feminina ocupa um espaço fundamental na obra da autora, o que também é
um dos motivos de sua atualidade. Afinal, o último século foi, para as
mulheres, um período de transição. Transição entre os papéis tradicionais de
mãe e esposa, do passado, e uma nova situação, que ainda não atingimos
plenamente, mas pela qual continuamos lutando, de igualdade – quando poderemos
realizar nossas vidas das mais diferentes maneiras, sem as pressões e os
constrangimentos que tão bem são retratados nos livros da autora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Isto
não quer dizer que a figura masculina não tenha espaço ali. Às vezes, o homem é
retratado justamente em sua ausência: o desinteresse em relação aos filhos, a
distância, o alcoolismo, até a morte. Quase sempre, ele se mostra confuso
diante de mulheres que já não se adaptam tão naturalmente às funções que seriam
destinadas a elas. Fica claro que, mesmo quando incorpora as vivências, as
angústias e os sonhos dos homens em suas narrativas, a autora fala de uma
perspectiva feminina. O que não limita, absolutamente, o alcance de sua obra.
Séculos de literatura em que as mulheres permaneciam nas margens nos
condicionaram a pensar que a voz dos homens não tem gênero e por isso existiam
duas categorias, a “literatura”, sem adjetivos, e a “literatura feminina”,
presa a seu gueto. Da mesma forma, aliás, que por vezes parece que apenas os
negros têm cor ou somente os gays carregam as marcas de sua
orientação sexual. Lygia Fagundes Telles nos ajuda a romper com estes esquemas
de pensamento. Sua obra é feminina (porque traz a perspectiva feminina) e é por
isso, e não “apesar” disso, que amplia nossa compreensão e nossa sensibilidade
para a humanidade como um todo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Em <i>A
noite escura e mais eu</i>, volume de contos publicado em 1995 – na maturidade
literária da escritora –, temos quase que uma súmula de sua obra. Entre as nove
narrativas que compõem o livro, sete possuem foco narrativo ou a narração em
primeira pessoa de mulheres. Nos outros dois, a autora cede voz a um cachorro e
a um anão de jardim. Nada a se estranhar para quem já está familiarizado com
seu trabalho. Afinal, os animais domésticos e insetos (especialmente gatos e
formigas) percorrem seus livros com a desenvoltura de quem está em seu lugar.
Às vezes se convertem mesmo em personagens, quando não em protagonistas de
algumas narrativas. “Crachá entre os dentes” é sobre um cachorro que vira
homem, se apaixona, é abandonado e se transforma em cachorro outra vez,
amargando sua solidão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Também
os anões de jardim estão sempre presentes em suas histórias, reaparecendo aqui
e ali, como testemunhas inanimadas, observando calados, servindo para compor o
cenário, mas também, talvez, para ser a marca da presença de outro olhar,
totalmente estranho – o leitor? – dentro do texto. Neste livro, pela primeira
vez temos a narração feita pelo anão de pedra. Ele é um pouco como Lorena,
de <i>As meninas</i>, gostaria de ser, espectadora distante e fria:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 106.2pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Bom
é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão
inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que
dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se
aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira
testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite passa de testemunha para participante.
E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa
altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram
laços frouxos? Viraram tentáculos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Mas,
como ela, nem o anão consegue ser só espectador. Aos poucos, as histórias
penetram seu corpo que não sente nem vê. E racham-lhe o peito de pedra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Já
nesses dois contos – o terceiro e o último do livro –, encontramos a tônica do
volume inteiro e, na verdade, da obra de Lygia Fagundes Telles como um todo: a ambiguidade.
Nunca temos muita certeza do que querem e do que dizem as suas personagens.
Muitas vezes nem elas próprias têm certeza de coisa alguma. E se essa
ambiguidade aparece como uma consequência natural em alguns discursos, em
outros podemos notar que é finamente trabalhada, tomando o centro da cena: como
em “Papoulas em feltro negro” ou em “Uma branca sombra pálida”, por exemplo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">As
mulheres que habitam esse livro vivem diferentes idades – são meninas, moças,
mulheres maduras e velhas senhoras – e diferentes situações, quase sempre
conflituosas. A ambiguidade permeia as narrativas, seja pela situação em que
essas mulheres se inserem, seja pelo discurso que estabelecem, para si ou para
os outros. Em alguns dos textos podemos ficar em dúvida sobre o que aconteceu
de fato, mas é possível tirar conclusões, lidar com os nossos preconceitos e
valores e obter nossas respostas parciais, como em “Boa noite, Maria”. Mas há
ainda aqueles em que qualquer definição desmerece a narrativa, que foi
construída exatamente para ser a incógnita que é, como “Dolly” e mesmo
“Papoulas em feltro negro”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Reembaralhando
os contos, separando-os de acordo com os objetivos da discussão, podemos
organizar alguns blocos. O primeiro já foi visto (inclui as histórias do
cachorro e do anão), e está vinculado a toda uma linha de narrativas fantásticas,
ao estilo de Edgar Allan Poe, que compõe parte da obra de Lygia Fagundes
Telles. O segundo reúne os dois contos que têm como protagonistas e narradoras
meninas: “O segredo” e “A rosa verde”. “O segredo” tem um recorte bem preciso,
da menina que, sozinha, se encontra diante de um mundo diferente, dentro do
próprio ambiente familiar. Talvez se possa dizer que ela descobre a ideia de
“segredo”, ou seja, ter algo que é só e exclusivamente seu, marcando a
separação da criança com os pais, estabelecendo, em suma, o início da formação
da sua individualidade, de sua identidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Já
no segundo, temos outra menina, que poderia ser a mesma – mesma idade, mesmo
espírito observador, mas vivendo outra situação: ela é órfã, mora com os avós
na casa dos tios, só com um primo, sem irmãos. É dali de dentro que ela enxerga
os ressentimentos, as mentiras, a dor; que percebe como as pessoas se
relacionam de modo enviesado, machucando-se. Faz também a descoberta de uma
palavra, que é o encontro de um mundo novo: “órfã”. Palavra que serve, mais
diretamente, para mostrar que ela está, de algum modo, sozinha no mundo. A
designação lhe dá identidade. Primeiro ela sofre com isso, é o momento da
ruptura. Ela não chora na morte dos pais, mas quando a professora pronuncia a
palavra que a define. No fim, ela usa a expressão em seu proveito, quer os
benefícios da orfandade, os privilégios da situação: o amor do avô, a lupa só
para ela, o direito de investigar as miudezas do mundo sem prestar contas a
ninguém.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Depois,
em outro bloco, poderíamos reunir três contos bastante violentos. “Dolly”,
narrado por uma jovem de 22 anos; “Você não acha que esfriou”, com o foco de
uma mulher de 45; e “Boa noite, Maria”, que traz a perspectiva de uma mulher de
65 anos. Três histórias angustiantes, com protagonistas dilaceradas. No
primeiro não sabemos se ela é simplesmente uma pessoa fria ou se só está
jogando para fora, na forma de imaginação (até literária, uma vez que diz
querer se tornar escritora), toda a raiva que guarda dentro de si. No segundo,
temos uma mulher ferida, que se torna cínica e cruel. No último, a mulher só,
que teve uma infância feliz, mas que nunca conseguiu construir um relacionamento
que a satisfizesse de fato. Ao envelhecer, foi sendo colocada de lado. A
violência aqui está ligada à certeza de que a morte a encontrará completamente
só.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Os
dois últimos contos, “Papoulas em feltro negro” e “Uma branca sombra pálida”,
poderiam ser lidos como uma espécie de frente e verso, apesar das situações e
personagens serem bem diferentes. Já a partir dos títulos, talvez apenas uma
coincidência curiosa, temos a inversão das cores, mas o mesmo número de
palavras e sonoridade parecida. Nesses dois contos, e muito especialmente no
segundo, a ambiguidade é trabalhada em detalhe. São discursos em primeira
pessoa de duas mulheres mais ou menos da mesma idade, uma professora de piano
e, a outra, uma burguesa. No primeiro ainda temos uma narrativa a se desenrolar,
no segundo somos despejados em um grande monólogo permeado pela culpa e pela
tentativa de responder ao olhar alheio que a acusa. Se no primeiro há a
presença concreta de uma outra personagem a nos indagar quem, afinal, está
mentindo, no segundo esse jogo é ainda mais complexo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Não
precisamos de outra personagem para desencadear o processo da dúvida. Tudo se
dá no discurso-debate da própria narradora. É ela que, tentando parecer fria e
razoável, acaba dando voz ao seu sentimento de culpa. Culpa por não ter sido
uma boa mãe, por não ter sido cúmplice da filha, por não ter podido evitar que
ela se matasse. É claro que esse sentimento de culpa não é verbalizado pela
personagem, ele aparece justamente em meio ao que essa mãe se recusa a
pronunciar. Toda a narrativa é uma exposição da culpa dos outros – do pai da
moça, que era um fraco; de Oriana, a amiga e possível amante da garota; da
própria filha, Gina, uma espécie de anjo pervertido (tudo sob o ponto de vista
da narradora, é claro). Mas por mais que grite as falhas alheias é das suas que
ela está falando. São os seus preconceitos burgueses, sua impossibilidade de
dar afeto, sua culpa, enfim, que estão sendo expostos, polemizados.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Neste
livro não temos uma autora produzindo um manifesto, nem fazendo experimentos.
Ela já tinha 72 anos ali, era reconhecida como grande escritora, não precisava
provar nada a ninguém. Fica a sensação boa de alguém trabalhando em pleno
domínio de sua técnica, contando belas histórias, se deslocando pelo universo
que melhor conhece: as mulheres, com seus conflitos, suas descobertas e suas
mágoas, com sua crueldade, inclusive. Depois disso, ela ainda publicou vários
outros livros, recebeu prêmios, foi traduzida para diversos países, teve toda a
sua obra republicada pela Companhia das Letras e se manteve coerente com suas
escolhas estéticas e políticas. É por isso que só temos a comemorar sua
existência no dia de hoje, quando ela completa 98 anos. Porque Lygia Fagundes
Telles nos lembra de tudo aquilo que acreditamos essencial para o Brasil
devastado que nos espreita ali de fora – criatividade, ética, responsabilidade,
empatia, delicadeza.<o:p></o:p></span></p><br /><p></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-37463031033962890292021-03-31T11:13:00.004-07:002021-03-31T11:28:07.210-07:00As certezas autoritárias em festa<p> </p><h3 style="text-align: right;">Berttoni Licarião</h3><p align="right" class="Default" style="text-align: right;"><o:p></o:p></p>
<p class="Default" style="margin-left: 7cm; text-align: justify;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">Certos tipos de trauma que se abatem sobre os povos são tão profundos,
tão cruéis, que, ao contrário do dinheiro, da vingança, e até mesmo da justiça,
ou dos direitos, ou da boa vontade dos outros, apenas escritores são capazes de
traduzi-los, transformando em significado e afiando nossa imaginação moral.</span></i></p>
<p align="right" class="Default" style="margin-left: 7cm; text-align: right;"><span style="font-size: 10pt; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">– Toni Morrison</span></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-0aMD_rnVoMw/YGS7Gro594I/AAAAAAAABt4/yS5kkNKCqaw4AX23L664ATuPbzE7C-coACLcBGAsYHQ/s1500/Shadow%2BChamber%2B-%2BRoger%2BBallen.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1499" data-original-width="1500" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-0aMD_rnVoMw/YGS7Gro594I/AAAAAAAABt4/yS5kkNKCqaw4AX23L664ATuPbzE7C-coACLcBGAsYHQ/w400-h400/Shadow%2BChamber%2B-%2BRoger%2BBallen.jpg" width="400" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem: Shadow Chamber, Roger Ballen</td></tr></tbody></table><p class="Default" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">Em 2018, quando se
completavam 50 anos do AI-5, o Brasil elegeu para presidente da república Jair
Bolsonaro, notório representante do pensamento necropolítico segundo o </span><span color="windowtext">qual “a violência constitui a forma original do
direito, e a exceção proporciona a estrutura da soberania”.<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></a>
</span><span color="windowtext" style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">Durante
o primeiro ano na chefia do Poder Executivo, o presidente brasileiro afirmou ter
informações sobre as circunstâncias da morte de Fernando Augusto de Santa Cruz,
</span><span style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">preso por
agentes do DOI-Codi no Rio de Janeiro em 1974, em provocação ao presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido.
Ainda em 2019, por meio do decreto nº 9.759, que extinguiu conselhos e
comissões que permitiam a participação da sociedade civil no governo federal,
Bolsonaro encerrou os Grupos de Trabalho “Perus” e “Araguaia” responsáveis,
respectivamente, pela identificação de corpos de desaparecidos políticos da
ditadura em valas clandestinas do Cemitério Dom Bosco (São Paulo/SP) e pela
busca e identificação de restos mortais de guerrilheiros assassinados na região
do Araguaia. Através de outro decreto, nº 9.831, assinado em 10 de junho de
2019, o presidente da república alterou o funcionamento do Mecanismo Nacional
de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) suspendendo, entre outras mudanças, a
remuneração dos peritos da comissão que trabalhavam monitorando denúncias de
maus tratos em presídios brasileiros.<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn2" name="_ftnref2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.5pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[2]</span></span><!--[endif]--></span></a> <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Default" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">Em 29 de fevereiro de 2020,
por meio de um vídeo divulgado em suas redes sociais, Bolsonaro se dirigiu
novamente às vítimas de perseguição política durante a ditadura: “tortura é
cascata para ganhar indenização”. Em meio à pandemia mundial do vírus C</span><span style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">OVID</span><span style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">-19, no dia 4 de maio de
2020, Bolsonaro recebeu como “herói nacional” no Palácio do Planalto Sebastião
Curió, oficial do exército denunciado seis vezes pelo Ministério Público
Federal por homicídio e ocultação de cadáveres durante a repressão militar à
Guerrilha do Araguaia. Curió é um dos 377 agentes das Forças Armadas reconhecidos
pela Comissão Nacional da Verdade como autores de crimes contra os direitos
humanos. Em 2009, ao ser entrevistado pelo jornal <i>Estado de São Paulo</i>, o militar abriu seus arquivos e confirmou a
responsabilidade do Exército na execução de 41 vítimas da ditadura.<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn3" name="_ftnref3" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.5pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[3]</span></span><!--[endif]--></span></a> Em 17 de
março deste ano, fomos surpreendidos com a notícia de que o Tribunal Regional
Federal da 5ª Região aprovara um recurso da Advocacia-Geral da União que
garantia o direito do governo federal de comemorar o golpe militar de 1964. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Default" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">Na última terça-feira, 30 de
março, o Ministério da Defesa emitiu uma ordem do dia alusiva ao 31 de março de
1964. Pelo terceiro ano consecutivo, uma declaração oficial das forças armadas
é publicada — na contramão de toda a produção historiográfica e científica
produzida nos últimos anos — embasada no argumento pífio e abertamente
mentiroso de uma luta contra “a ameaça à democracia” e pela “responsabilidade
de pacificar o país”. Ora, nas palavras do professor Mateus Gamba Torres, do
Departamento de História da Universidade de Brasília, “junto a poderosas
corporações de empresários, aos Estados Unidos da América, a políticos
antidemocráticos, a Igreja Católica e ao STF, as Forças Armadas, entre 31 de
março e 1 de abril de 1964, descumpriram sua função institucional de defensores
da ordem constitucional e depuseram um presidente legal e legitimamente eleito
para se perpetuarem no poder por 21 anos. [...] Foram os militares que acabaram
com a democracia! O que se pleiteava eram reformas sociais que foram descartadas
pela ditadura após 1964”.<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn4" name="_ftnref4" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.5pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[4]</span></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></span></p>
<p class="Default" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span style="line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.5pt;">O rosário necropolítico
acima é apenas uma amostra dos absurdos que compõem o horizonte simbólico do
atual governo. É indigesto repeti-los e quase impossível reunir sob um mesmo
teto cada ocorrência nos mais de vinte anos de vida pública da família Bolsonaro.
Ainda assim, o percurso pode nos ajudar a perceber como o apagar e o
reescrever, a manipulação do discurso, o gesto de desprezo e o desrespeito à
memória são algumas das armas de que dispõem os inimigos da verdade. Esses
elementos foram muito bem representados no romance <i>O corpo interminável </i>(2019),<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn5" name="_ftnref5" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.5pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[5]</span></span><!--[endif]--></span></a> de
Claudia Lage, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020. </span><span style="color: white; line-height: 150%; text-transform: uppercase;"><o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Normal1" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span style="line-height: 150%;">Na
obra em questão, Lage entrelaça a narrativa de Daniel, filho de uma vítima da
repressão no presente democrático, à de uma (ou mais) mulher(es) na sala de
tortura, no aparelho clandestino, nas horas de silêncio e espera ocupadas com a
certeza da queda dos companheiros e do fracasso do projeto político pelo qual
lutava. Daniel cresce “imerso no silêncio do avô” </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">(p. 25), com uma única fotografia da mãe e um quarto mantido
da mesma forma à espera de sua ocupante original, um esforço de congelar o
tempo que contagia o restante da casa: “o avô sabia o lugar de tudo na casa.
[...] O que para outra pessoa é detalhe, como o enfeite sobre a mesa, a posição
das caixas nos armários, para o avô não é. Por isso eu precisava prestar muita
atenção. Como se cada coisa que eu tirava do lugar deixasse uma marca da sua
ausência” (p. 38). <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Normal1" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">Ao romper com o regime melancólico imposto pelos gestos e
obsessões do avô, Daniel busca a história de sua mãe pelas margens do silêncio,
mas esbarra em mecanismos de repressão ainda em pleno funcionamento e dos quais
se sente herdeiro: “as mesmas forças que aniquilaram minha mãe, que
anestesiaram o meu pai, estão aqui, a mesma dinâmica a mover o mundo, os mesmos
motivos de revolta, de lutas, estão aqui, cresci aqui, eu nasci disso, eu
emergi disso” (p. 76). Atento às </span><span style="line-height: 150%;">intersecções entre
diferentes gerações vitimadas pela ditadura, o processo de busca e aprendizagem
de Daniel é atravessado pelo fracasso da representação, pelos limites da
imaginação para dar conta daquilo que forças institucionais (e também, no romance,
patriarcais), desejam reprimidas. Logo, t</span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">ransformar
a luta daqueles mortos e desaparecidos em narrativa a partir de um presente
falsamente pacificado ganha os contornos caricaturais de uma farsa:<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 4.0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm 12pt 4cm; mso-layout-grid-align: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="font-family: times;"><span color="windowtext" style="mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Me sentia como se cometesse um
equívoco. Um grande equívoco. Como se forçasse aquelas pessoas, tão reais, tão
vivas dentro de suas lutas, desaparecimentos e mortes, a se tornarem meras
referências em um texto, ou pior, personagens, meus personagens, como se
impusesse a elas, depois de tudo o que viveram, algo tão frágil, capaz de
desmantelar ao menor sopro, à mínima insistência, <span style="letter-spacing: -0.2pt;">uma farsa, uma representação (p. 24).</span></span><span color="windowtext"> <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Normal1" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span style="line-height: 150%;">A
necessidade de narrar para compreender acompanha Daniel desde os tempos de
escola, quando escreve uma redação sobre a morte da mãe que deixa perplexas
professora e diretora. Mas diferente do que se poderia supor, Daniel escreve “a
partir do esquecimento” </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">(p. 22)</span><span style="line-height: 150%;">:
aguarda até que imagens e palavras ajam sobre o corpo pelo tempo necessário
para, só então, colocar qualquer coisa no papel. Esse tempo de depuração
representa não a busca idílica, “imagem literária de uma sofrida e bela
esperança”</span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">, mas sinaliza para o debate tardio
da sociedade brasileira e para o reconhecimento de que “até os restos são
abandonados, escondidos ou destruídos”</span><span style="line-height: 150%;"> </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">(p. 43). O que sobra é a armadilha da verossimilhança. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Normal1" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: times;"><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">No primeiro encontro entre os protagonistas,</span><span style="line-height: 150%;">
Daniel e Melina buscavam em uma biblioteca a única edição disponível de um
livro sobre a ditadura brasileira — exemplar solitário que é, também, sintoma
do estado precário em que se encontra essa memória nos espaços públicos. Melina
deseja “ver aquilo que seus pais não viram, abrir os olhos para o que eles
fecharam” </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">(p. 23), enquanto Daniel dedica-se à
leitura e à escrita, esta última “uma necessidade” para “desdobrar a imagem
presa em [sua] mente” (p. 121), gesto essencial do trabalho de luto. </span><span style="line-height: 150%;">Através
dessas duas personagens, a pós-memória (incorporada por Daniel) e a
responsabilidade social (representada por Melinda) veem na fotografia que
assombra o romance a possibilidade de devolver a dignidade do foro íntimo a um
corpo torturado — “Ela nua tremia de nervos, era inverno e ela tremia, não
soube porque pensou em chocolate quente” </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%;">(p. 121)
</span><span style="line-height: 150%;">—
ao mesmo tempo em que expõe os mecanismos de repressão que mascaram a verdade.
O romance de Lage faz isso por meio da reconstrução, em detalhes, da cena
fotografada: <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="Normal1" style="line-height: normal; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 4.0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm 12pt 4cm; text-align: justify;"><span style="font-family: times; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">O último
corte que sentiu foi abaixo da axila, próximo aos seios. O mais doloroso foi na
barriga, na altura do fígado, foi esse que a matou. Colocaram uma arma em sua
mão, atiraram em seu corpo, mas ela não sentiu. Depois que constataram a sua
morte levaram o seu corpo para uma sala. Na sala havia uma cama pequena e ali o
puseram. Alguém veio e observou os ferimentos. Alguém veio e limpou o sangue
espalhado pela pele. Alguém veio e mexeu na posição dos braços, cabeça, pés.
Alguém veio e passou pó bege nos ferimentos à faca. Alguém veio e arrumou
novamente os braços, cabeça, pés. Alguém veio e fez anotações num caderno.
Alguém veio e não fechou os olhos. <span style="letter-spacing: -0.3pt;">Alguém
veio e tirou uma foto (p. 172). <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-layout-grid-align: none; text-align: justify; text-autospace: none; text-indent: 35.45pt;"><span color="windowtext" style="font-family: times; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Segundo Roland Barthes em <i>A câmara clara, </i>“a foto é literalmente
uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações
que vêm me atingir, a mim, que estou aqui”.<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn6" name="_ftnref6" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 115%;">[6]</span></span><!--[endif]--></span></a>
Observá-la e percebê-la são, portanto, atitudes que permitem aprofundá-la como
uma ferida e dela extrair o advento de si mesmo como outro, o <i>punctum</i> — i.e., aquilo que suplementamos
à fotografia e que, todavia, já se encontrava nela. Para Barthes (p. 73), “toda
fotografia é um certificado de presença”, ela nega o esquecimento e se torna
símbolo de resistência. Apesar de falsa no nível da percepção (o que está lá
deixa de existir como tal depois que a foto é produzida), a fotografia é
verdadeira no nível do tempo: sua retórica repete indefinidamente que aquele
passado existiu de fato, ainda que não seja mais acessível.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-layout-grid-align: none; text-align: justify; text-autospace: none; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: times;"><span color="windowtext" style="line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Mas o que dizer da retórica de uma foto
encenada? Questões de autenticidade, manipulação e enquadramento sempre fizeram
parte do horizonte discursivo da fotografia.<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn7" name="_ftnref7" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 115%;">[7]</span></span><!--[endif]--></span></a>
Muito mais que índice de uma presença, a fotografia encenada evoca um esforço
narrativo com veleidades de verdade irrefutável. </span><span style="line-height: 150%;">A memória da
ditadura brasileira é este corpo torturado no romance de Claudia Lage. Uma
memória conspurcada por inúmeros gestos de manipulação, limpeza, preparo,
controle narrativo e apagamento de indícios </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">— ecos </span><span style="line-height: 150%;">da famosa foto do
suicídio forjado de Vladimir Herzog. Ecos reiterados há menos de dois dias pelo
Ministério da Defesa. <span style="letter-spacing: -0.2pt;">A cada período da
citação acima, Lage revela novos <i>punctums</i>,
retira da fotografia camadas de silêncio institucional, reconstrói a cena de
tortura descrita no parágrafo anterior do romance. Para além do corpo, há
sempre alguém que mexe, observa, arruma, olha, faz anotações, fotografa:
inúmeras testemunhas (como a do próprio leitor ou leitora) da “impossibilidade
de sair daquele lugar” </span></span><span color="windowtext" style="letter-spacing: -0.2pt; line-height: 150%;">(p.
29).<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-layout-grid-align: none; text-align: justify; text-autospace: none; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: times;"><span color="windowtext" style="letter-spacing: -0.2pt; line-height: 150%;">A literatura brasileira há muito que não silencia sobre a
ditadura. Pelo contrário, a </span><span color="windowtext" style="line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">ficção incorpora o rastro de incertezas plantado pelas
técnicas do esquecimento e age como “memória insatisfeita que nunca se dá por
vencida e perturba a vontade de sepultamento oficial da história vista apenas
como depósito fixo de significados inativos.”<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftn8" name="_ftnref8" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 115%;">[8]</span></span><!--[endif]--></span></a>
Novas narrativas continuam a surgir e a se multiplicar — a exemplo das
publicações recentes de <i>Sob os pés, meu
corpo inteiro </i>(2018) de Marcia Tiburi, <i>Pesadelo</i>
(2019) de Pedro Tierra, <i>Um corpo ainda
quente </i>(2020) de Sheyla Smanioto, <i>Júlia
nos campos conflagrados do Senhor</i> (2020) de Bernardo Kucinski, <i>No fundo do oceano, os animais invisíveis</i>
(2020) de Anita Deak, <i>Elas marchavam sob
o sol</i> (2021) de Cristina Judar, dos romances que compõem a <i>Trilogia infernal</i> de Micheliny Verunschk
[<i>Aqui, no coração do inferno </i>(2016), <i>O peso do coração de um homem </i>(2017) e <i>O amor, esse obstáculo </i>(2018)] e da
trilogia ainda incompleta <i>O lugar mais
sombrio </i>(2017, 2019, 2021) de Milton Hatoum. Seguimos e seguiremos,
sociedade civil, auxiliados pela imaginação e como vaga-lumes, a desassossegar
as comemorações das certezas autoritárias. </span></span><o:p></o:p></p>
<div><!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1">
<p class="MsoFootnoteText" style="margin-bottom: 6pt; text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref1" name="_ftn1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span> MBEMBE. Achille. <i>Necropolítica</i>. Trad. Renata Santini. São
Paulo: n-1 edições, 2019. p. 38. <o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn2">
<p class="MsoFootnoteText" style="margin-bottom: 6pt; text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref2" name="_ftn2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[2]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span> Em resposta, o Comitê contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU
emitiu um relatório em novembro de 2019 acusando o presidente Jair Bolsonaro de
violar o tratado de 1984, do qual o Brasil é signatário. </span><span color="windowtext">Disponível em</span><span>: <</span><a href="https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-%C3%A9-denunciado-%C3%A0-onu-ap%C3%B3s-exonerar-equipe-antitortura/a-49165399"><span>https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-%C3%A9-denunciado-%C3%A0-onu-ap%C3%B3s-exonerar-equipe-antitortura/a-49165399</span></a><span>>. Último acesso em: 29 mar.
2021.<o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn3">
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 6pt; text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref3" name="_ftn3" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[3]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span> “No dia 21 de
junho de 2009, em reportagem de Leonencio Nossa para O Estado de S. Paulo,
divulgou-se informações dos arquivos pessoais do major Sebastião Curió
Rodrigues de Moura, um dos principais repressores da Guerrilha do Araguaia. Os
documentos contidos nesses arquivos informam que 41 guerrilheiros foram
executados depois de presos – o que representa mais de 60% do total dos
combatentes – e fornece dados sobre os momentos finais de vida de dezesseis
deles, sobre os quais não se tinha nenhuma informação” (TELES, J. 2010, p. 292).<o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn4">
<p class="MsoFootnoteText" style="margin-bottom: 6pt; text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref4" name="_ftn4" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[4]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span> Texto publicado nas redes sociais
do professor (Instagram, Facebook) em 31 de março de 2021.<o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn5">
<p class="MsoFootnoteText" style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref5" name="_ftn5" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-size: x-small;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[5]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span><span style="font-size: x-small;"> LAGE, Claudia. <i>O corpo interminável.</i> Rio de Janeiro:
Record, 2019.</span><o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn6">
<p class="MsoFootnoteText" style="margin-bottom: 6pt; text-align: justify;"><span style="font-family: arial;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref6" name="_ftn6" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-size: x-small;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[6]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span><span style="font-size: x-small;"> BARTHES, Roland. <i>A câmara clara. </i>Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 70.</span><o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn7">
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 6pt; mso-layout-grid-align: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref7" name="_ftn7" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%;">[7]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span> Susan Sontag em <i>Diante da dor dos outros</i> chama a atenção
para muitos desses exemplos em fotografias de guerra, como o caso do conflito
entre sérvios e croatas, durante o qual as mesmas fotos de crianças mortas no
bombardeio de um povoado eram distribuídas com diferentes legendas entre
sérvios e croatas para fomentar o ódio ao inimigo. </span><span color="windowtext" style="mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> </span><span><o:p></o:p></span></span></p>
</div>
<div id="ftn8">
<p class="Default" style="margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; margin: 6pt 0cm 12pt; text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20Berttoni.docx#_ftnref8" name="_ftn8" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: black; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">[8]</span></span><!--[endif]--></span></a>
<span>RICHARD, Nelly. “Políticas de la memoria y
técnicas del olvido”. In: RESTREPO, Gabriel et al. (Orgs.). <i>Cultura, política y modernidad</i>. Santafé
de Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1998. p. 65.</span></span><span color="windowtext"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoFootnoteText"><o:p> </o:p></p>
</div>
</div><br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-69336074460211564492021-03-01T10:03:00.002-08:002021-03-01T10:03:26.220-08:00PARA SEMPRE, CAIO F.<p> </p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: right; text-indent: 35.45pt;"><i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Nelson Barbosa<o:p></o:p></span></i></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: right; text-indent: 35.45pt;"><i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><br /></span></i></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: right; text-indent: 35.45pt;"><i></i></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><i><a href="https://1.bp.blogspot.com/-WjSaLOhB97k/YD0sQSzOu-I/AAAAAAAABtE/7ZY0RaMLqLQ1r1hV4E1Ay8oyZGX94SfggCLcBGAsYHQ/s840/Caio-Fernando-Abreu.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="450" data-original-width="840" height="214" src="https://1.bp.blogspot.com/-WjSaLOhB97k/YD0sQSzOu-I/AAAAAAAABtE/7ZY0RaMLqLQ1r1hV4E1Ay8oyZGX94SfggCLcBGAsYHQ/w400-h214/Caio-Fernando-Abreu.jpg" width="400" /></a></i></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><i><br /></i></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Passados 25 anos da morte do escritor Caio
Fernando Abreu (1948-1996), de uma forma não tão usual entre a maioria dos
escritores brasileiros, que infelizmente acabam caindo num incompreensível esquecimento,
a obra e a persona de Caio F. ainda surpreendem por sua vivacidade e possibilitam
um lugar de reflexão e encantamento não só no público jovem que o descobre,
como também nos seus leitores de tempos em que suas obras iam sendo compostas e
publicadas.<o:p></o:p></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não é aleatória essa relação entre a obra
e a persona do seu autor, tampouco essa percepção está ligada a uma necessidade
“antiga” de se associar autor e obra pelo vínculo do biografismo, que durante
muito tempo pautou esses estudos literários envolvendo o autor e sua obra como
determinantes um do outro, como se os dados factuais fossem então os causadores
dessa obra produzida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Decididamente, não é esse o caso de Caio e
sua permanência na nossa literatura. Não é o caso, porque a obra de Caio, por
mais que a crítica tradicional tenha tentado lê-la por esse prisma, procurando
inclusive determiná-la como “literatura gay” porque o autor se declarara gay,
rompeu o paradigma da representação literária tradicional para dar lugar à
experiência como matéria literária. Não aleatoriamente, também, essa conjuntura
da experiência veio abrir caminhos para que a literatura deixasse de ser uma
escrita, digamos, de “gabinete” ou de assunto de classes dominantes, para se
tornar efetivamente a expressão de liberdades e vivências antes sufocadas e
desacreditadas até mesmo como passíveis de ficcionalização ou de pertencerem ao
universo da literatura <i>tout court</i>: as escritas femininas/feministas, as
escritas de segmentos segregados e de guetos, negros, gays, marginalizados em
geral... Enfim, a grande abertura da literatura para existências que antes
apenas apareciam, se quando, nos bastidores das obras literárias, jamais
assumindo seu protagonismo como literatura. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E no caso específico de Caio F., reconhecemos
em suas criações o caráter autoficcional, procedimento que coloca autor e leitor
no cerne dessas construções literárias tanto “reais” quanto “ficcionais”, ora
embreando ou desembreando dados documentais, ora embreando e desembreando
criações ficcionais, alternando-os e amalgamando-os, produzindo um aproximar-se
cada vez mais potente do leitor e da obra, e não gratuitamente, também do
autor. É, portanto, nesse entrecruzamento de experiências, reais e ficcionais,
que a obra de Caio se constrói e se apresenta como uma grande novidade no
cenário das nossas letras, “novidade” que vai se perpetuando justamente por
essa característica que a torna sempre à mão, como se diz, sobretudo nos tempos
atuais de domínio das redes sociais e da internet. Claro que, por vezes,
sofrendo o risco do esgotamento ou esvaziamento do excesso que se atribui a
tudo que possa minimamente lembrar uma escrita de Caio, exatamente como
acontece com sua madrinha literária, sua grande inspiração, Clarice Lispector. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Hoje esse assunto ou esse tema da
autoficção nos estudos literários já corre facilmente por inúmeros estudos críticos,
mas não era ainda o que se produzia em termos de crítica na época de Caio, o
que certamente foi objeto de equívocos de leitura dessa obra que já se
construía sobre novas bases de criação literária. É curioso pensar que a obra
de Caio não surgiu, assim, intencionalmente dessas discussões em voga na França
justamente nos anos 1970, quando Caio já tinha produzido um romance (<i>Limite
branco</i>, 1970) e alguns contos nessa “pegada” autoficcional. Ou seja, avesso
aos academicismos literários, o que lhe permitia até mesmo eleger Caetano
Veloso e a Gilberto Gil como seus guias na escrita literária, Caio não
acompanhava essas discussões que, ao fim e ao cabo, acabaram servindo como
privilegiado rumo para depois se estudar a sua produção. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E nessa característica ímpar de sua obra reside,
acreditamos, um dos primeiros elementos identificadores da empatia com gerações
posteriores e, sobretudo, entre os jovens que hoje o encontram e se enredam com
sua escrita, e se emocionam ou o escolhem como leitura privilegiada dentro de
nossa literatura. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Nesse caso, borrando todo limite e
fronteiras entre a escrita ficcional e sua persona, entram também nessa escolha
de leituras suas cartas abundantemente publicadas, compondo com autor e obra
esse amalgama de literatura e vida real e concreta que parece encantar os novos
leitores. Na intersecção entre a ficção dos contos e a realidade das cartas, o
gênero híbrido ao qual Caio passou a se dedicar com mais frequência nos últimos
anos de vida, a crônica, cumpre um papel primordial realizando nelas, ainda
mais sem amarras de gênero ou fronteiras, sua leitura mais completa do mundo
que ainda nos chega como uma manhã a cada leitura. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Sempre angustiado com a vida concreta a ter
que ganhar, como jornalista <i>freelancer</i>, revisor/preparador de livros e
autor de resenhas (as “costuras para entregar”, como gostava de dizer retomando
o universo do trabalhador “braçal”), em meio a despejos de apartamentos e
dificuldades financeiras imensas, Caio se via por vezes descolado de sua
realidade mais funda produzindo literatura em meio a esse caos pessoal,
político e social de seu tempo (que curiosamente parece agora novamente ganhar
força não por acaso por um projeto político de miséria e morte). Levava essas questões
muito íntimas, desgastantes, ao psicanalista que o acompanhava, revelando-se
cansado e insatisfeito com o que escrevia, sempre na busca de uma literatura que,
esperava, pudesse ser cada vez mais concreta e tangível por sua experiência,
que tocasse, pretendia, no que seria exatamente o sentimento das pessoas. Seu
psicanalista, certa vez, ao ouvir essas questões para ele tão doloridas, procurou
tranquilizá-lo quanto a isso dizendo que, na verdade, num tempo futuro, quando
alguém quisesse de fato saber ou sentir o que acontecia em sua época, logo, em
sua obra, não seria nos jornais que iria encontrar essa resposta mais
claramente colocada, mas especificamente em sua obra literária em construção,
em seus textos colhidos na convivência das redações, dos vários “bicos” de trabalho,
dos bares noturnos, da rua, na sua incessante busca de amor, de prazer, em meio
ao trânsito caótico, nos bares escuros, nas boates e nos amores rápidos que
vivia, no centro nervoso das cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de
Janeiro por onde circulava em pleno coração de uma sempre improvável América do
Sul. Foi por isso mesmo que seu psicanalista o definiu como “o biógrafo da
emoção”, aquele que com sua escrita capturava as emoções das experiências então
vividas. Vemos aqui que a “profecia” parece mesmo ter se consumado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E, de fato, essa característica de sua
obra percebida por seu psicanalista parece definidora na sobrevivência de sua
escrita para muito além de sua época e vida. São esses mesmos ambientes, esses
mesmos espaços, concretos ou psicológicos, escuros ou iluminados, dolorosos ou
de uma alegria incontida, então inusitadamente frequentados na sua literatura,
que hoje se revelam próprios a seus leitores mais jovens: o ambiente da busca,
da escolha, da desesperança, da descoberta, ou mesmo da espera de um encontro
determinante, revelador, na espera de uma “pequena epifania” que revelasse no
positivo aquele sentimento que se construía no negativo de sua alma, num jogo
de troca de sinais entre o positivo e o negativo como dele já falou José
Castelo em <i>Inventário das sombras</i>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Embora marcada por esses mergulhos em sua
realidade, Caio jamais cedeu às armadilhas de tornar sua obra um grande
panfleto, como, já dissemos, muitas vezes a crítica o viu. Não haveria por que
se ocupar de um panfleto quando a criação literária e linguística o tomava por
inteiro na escrita e audição de sua própria produção ficcional. Nem mesmo
quando sua vida teve a “verossimilhança” atravessada pelo real ao se descobrir
contaminado pelo HIV que já matara quase todos os seus amigos, Caio abriu mão de
tratar também dessa sua experiência eminentemente nas linhas da literatura,
construindo nela o caminho que se lhe abria em direção à morte. Nesse momento,
como grande escritor que foi, até mesmo sua morte veio a ser “vivida” em sua
obra, longe de se tornar um panfleto que o vitimasse por uma sentença tão
extrema.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Há, equivocadamente, até mesmo entre alguns
de seus contemporâneos, quem, embalado pela leitura redutora de sua produção,
declare que Caio não teria tido o tempo necessário para seu amadurecimento como
escritor, a ponto de vir a “superar” sua questão primordial da sexualidade
sempre vista como determinante em sua obra. Isso é um tremendo equívoco de
leitura, como se a pauta fosse sempre a “evolução” para uma sexualidade padrão
determinada pela sexualidade heterossexual que assim o avalia. Esse equívoco
nos levaria prontamente a perguntar se esses contemporâneos que sobreviveram a
seu tempo acaso superaram em suas próprias obras as questões de sua sexualidade
padrão heteronormativa sempre presente em seus contos e romances? Evidentemente
que não se trata disso, e nem isso seria o marcador de um amadurecimento da
produção literária de um autor que, ao que vemos, sempre teve plena consciência
de construção de sua obra a cada novo livro lançado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Caio se ocupava da literatura em toda a
sua extensão, e por ela se fazia existir por sua experiência, confundindo-se
com ela, livre de bandeiras identitárias ou outras quaisquer, como a da aids, o
que consideramos ter sido o grande trunfo de sua obra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quem hoje se encontra com suas narrativas
depara no seu cotidiano com realidades tão violentas quanto as situações
contidas em seus contos “Creme de alface” (<i>Ovelhas negras</i>), “Garopaba
mon amour” (<i>Pedras de Calcutá</i>) e “Terça-feira gorda” (<i>Morangos
mofados</i>); em situações tão delicadas quanto as descobertas contidas em “Aqueles
dois” (<i>Morangos mofados</i>); em reflexões tão profundas e tocantes como no
delicado conto “Corujas” (<i>Inventário do ir-remediável</i>); em dúvida em
relação à realidade política de um país perdido como em “Oásis” (<i>O ovo
apunhalado</i>); em abandono e desorientação como em “Sem Ana Blues” (<i>Os
dragões não conhecem o paraíso</i>)... São muitas e diversas as passagens de
Caio que nos trazem sua experiência atrelada às nossas, de leitores deste
século XXI, século que infeliz e estranhamente ele não conheceu, mas anteviu
tão bem, porque sua literatura fala de nós, fala do humano em nós.<o:p></o:p></span></p></div><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: right; text-indent: 35.45pt;"><i><br /><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><br /></span></i></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-81445209672045337592020-12-31T20:00:00.012-08:002020-12-31T20:00:01.151-08:00O Sarau da Cooperifa: forma e memória das noites<p> </p><p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Rafa Ireno</span><o:p></o:p></p><p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-r_ATDKhsX1g/X9z0hr6TqMI/AAAAAAAABro/7iOKPEp-f_QYMaHWmxjq_CjZtty5G_TrQCLcBGAsYHQ/s900/kobra-09%2BGrafite%2Bde%2BEduardo%2BKobra.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="509" data-original-width="900" height="362" src="https://1.bp.blogspot.com/-r_ATDKhsX1g/X9z0hr6TqMI/AAAAAAAABro/7iOKPEp-f_QYMaHWmxjq_CjZtty5G_TrQCLcBGAsYHQ/w640-h362/kobra-09%2BGrafite%2Bde%2BEduardo%2BKobra.jpg" width="640" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem: Grafite de Eduardo Kobra</td></tr></tbody></table><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Entre uma pergunta e outra sobre a <i>Cooperifa</i>,
em algumas entrevistas, como num respiro, Sérgio Vaz sussurra: “É difícil
explicar o que acontece para quem nunca foi…”, depois, retoma, insiste no
raciocínio, fala sobre seu amor pela poesia, sobre o direito à literatura, a
necessidade da formação de um público leitor na periferia, a dessacralização da
arte, o problema do cânone e como, tendo em vista isso tudo, idealizou e
desenvolveu, junto do poeta Marcos Pezão, em 2001, o <i>Sarau da Cooperifa</i>
– um dos pilares da literatura periférica, no extremo sul de São Paulo. </span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> É
verdade que, nos últimos anos, a produção artística das periferias tem sido
reconhecida na cultura brasileira contemporânea (inclusive, pelo mercado
editorial).<b> </b>Também é verdade que este reconhecimento se dá antes no
plano ético ou político do que estético. O que já é um passo, porém, não
suficiente. Este desequilíbrio, a meu ver, relaciona-se muito a um problema
ligado à apreensão, às ferramentas de análise para se abordar formulações
estéticas descentralizadas. Os utensílios críticos não foram imaginados segundo
às necessidades das artes contemporâneas, menos ainda, àqueles feitos nas
margens da sociedade. Por consequência, ao começar essa reflexão, é o hiato do
poeta, as palavras não ditas no tempo d’um copo d’água, que ficam reverberando em
mim. Quero dizer, o princípio da coisa é fácil de explicar: pessoas reunidas
para ler e escutar poemas. Mas, colocado assim, não se compreende a dimensão, a
potência transformadora e o valor estético dos saraus. A simplicidade é
difícil. O gesto despretensioso, de compartilhar versos em grupo, é a
transformação de sentimentos, histórias, desejos, angústias, sonhos, numa forma
específica, a<i> Cooperifa</i>, edificada coletivamente a cada terça-feira, das
20h30 às 22h30, no Bar do Zé Batidão. </span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">II</span></b><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Trata-se,
entre muitas outras coisas, de um sistema inédito de organização literária no
Brasil, que traz consigo uma dificuldade enorme de pensá-lo, observá-lo, comentá-lo,
seja numa entrevista, seja num ensaio ou numa tese. Em parte, porque ele exige
naturalmente um novo modelo de crítica. Um que não corrompa, em nome da
objetividade da reflexão, a espontaneidade, o frescor e ineditismo do
movimento; ao mesmo tempo em que lide com o desafio de traduzir em discurso uma
experiência baseada nas vivências do lugar e do corpo na periferia. Carece de
ter um olhar consciente da própria contradição. A literatura periférica tenta
fincar os pés no chão, no território e diminuir a distância entre a poesia e a
gente. Ela ambiciona reverter os símbolos em atos, a palavra em ação, a fim de
mudar a realidade imediata. Enfim, talvez, por isso, é uma tarefa perniciosa e
quase sempre frustrante a de falar da <i>Cooperifa </i>estando fora dela.<i> </i></span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">III</span></b><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Todas
terças-feiras não importa onde esteja no mundo, é estranho não me arrumar,
pegar o ônibus no terminal Sto. Amaro até a Piraporinha, subir o morro e chegar
no bar do Zé Batidão (R. Bartolomeu dos Santos, 797 – está Jardim Guarujá no
Google, mas, ali, ainda é Chácara Santana), pois, de 2013 até 2019, quase
todas as semanas, eu estava na<i> Cooperifa.</i> Geralmente, sentado na escada,
à direita do microfone. Para falar verdade, ia bem mais cedo, evitava o
trânsito na M’boi Mirim e, como nasci e cresci poucas esquinas para baixo do
sarau, visitava minha família, na rua do colégio Mario Moura. Vó mora lá até
hoje. Jantava com ela, depois subia para o sarau. Foram tempos complicados: nos
últimos anos, o vô adoeceu. Ele faleceria poucos meses depois de minha partida
– em 2019, vim para França completar meu doutorado.</span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Se
olhar no mapa dá para ver que são poucos metros separando minha casa do Zé
Batidão, ainda assim, na memória, este caminho se desdobrava numa grande
estrada, uma linha longa, estendida entre dois pontos, duas periferias – a
primeira que me repulsava, as violências, dores, silêncios, solidões; e, na
outra beira, a festa, o coletivo, a criatividade, me atraindo, dando vontade de
ficar mais um pouco. Essas duas extremidades, é claro, não estão completamente
isoladas. A divisão tem a ver, eu acho, com a substância separando a ficção da
realidade. Algo como uma fissura entre o que foi e o que deveria ter sido. </span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> </span></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">IV</span></b><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> A
<i>Cooperifa</i>, então, não é somente um espaço onde circula a literatura, o
sarau é em si mesmo uma forma, por assim dizer, um poema. Uma releitura da
própria periferia. Em outras palavras, é uma representação estética, com suas
regras – uma poética – com suas razões de ser, seus ritos, tensões, que foram
se construindo, adaptando-se, mudando ao longo do tempo e de acordo com o
território. </span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> No
começo, por exemplo, há uma abertura quase sempre feita por Sérgio Vaz. Um
chamado para abrir os trabalhos, que serve tanto como boas-vindas, quanto como
um lembrete do significado da<i> Cooperifa, </i>os princípios do sarau e, por
fim, exige-se o silêncio para ouvir a poesia. Há, também, um encerramento com a
pessoa que está lançando livros ou com música para celebrar o fim de mais uma
reunião e assegurar a volta para casa com segurança. Entre estes dois pontos,
estão certas passagens obrigatórias, invariáveis, instantes reconhecíveis e
sobretudo esperados, que marcam o tempo da noite e mexem com a expectativa do
público: é o caso, sem dúvida, da declamação de Dona Edite, pois, quando sua
voz de setenta e oito anos corporifica os versos de<i> </i>“Navio Negreiro” de
Castro Alves, o registro se eleva ao terreno da épica. Esta senhora conjuga
muitos elementos em sua figura, desde seu destino individual quanto da história
coletiva da zona sul de SP. Tal momento se repete magistralmente todas as
terças-feiras e quando, por algum motivo, não acontece – eu lembro que a
sensação é a de que falta alguma coisa. O mesmo sentimento se repete, por
outras razões, na vez de Sérgio Vaz, de Rose Dorea e de Jairo Periafricania.</span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Depois,
o arranjo da obra se condiciona pela ordem de chegada dos participantes –
aqueles considerados poetas da comunidade têm preferência na fila, afinal, já
estavam neste espaço há mais tempo. O ritmo está nas mãos de Lu Sousa, uma
escritora proeminente lírica, que anota os nomes na lista e conduz discreta o
sarau. É ela quem lê as noites, que conhece os tons, os gestos, as linhas de
cada um dos presentes e, com isso, tece o enredo do sarau. Avisa: um poema
curto, por favor, está cheio hoje, certo? Às vezes adianta um, às vezes, atrasa
o outro de acordo com a atmosfera. Neste intermeio, como um acréscimo eventual,
frequentemente, artistas de outras paragens, de Estados diversos ou mesmo de
outras regiões da cidade, visitam o espaço e contribuem ao sotaque da<i>
Cooperifa</i>, que se tornou uma confluência da poesia na cidade de São Paulo.
Essa prática, que se ensaia tem dezenove anos, condiciona as formas das obras da
periferia, as tensões e ritmos. Daí, de repente, tem um corte, a festa se
interrompe. Algum dos organizadores vai ao microfone, um papelzinho na mão, e
declama a placa do carro bloqueando o caminho do ônibus na rua, o silêncio, a
procura, o proprietário identificado, o 5318 passa e a poesia retoma.</span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> <b>V</b></span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Não sei bem o porquê, num destes dias frios e
tristes em terra estrangeira, peguei-me pensando que existe mais poesia do que
prosa na literatura periférica. Talvez, por causa dos saraus, talvez apenas
seja solidão. Então, eu enviei uma mensagem para o Prof. Fábio, poeta e
pesquisador da<i> Cooperifa,</i> perguntei-lhe sem mais, sem introdução; o meu
anseio era que ele respondesse às minhas urgências: “Por que você acha que na periferia temos, de
maneira geral, menos romances?”. Sua resposta foi a seguinte</span><span style="font-family: "Times New Roman",serif;">:</span><o:p></o:p></p><p class="Citaes" style="text-align: justify;"> Trata-se de uma
característica histórica, a meu ver, de grupos que menos exercem seu “direito à
literatura” terem suas experiências com textos das esferas literárias iniciadas
ou intensificadas com a poesia. Antonio Candido, em “Sentimento de Identidade”,
por exemplo, fala sobre a popularização da poesia nas camadas menos letradas
durante a consolidação do Romantismo entre nós. Alguns teóricos, ao tratar
sobre literatura negra, como Zilá Bernd, apontam para predominância de uma
(poesia) sobre outra (prosa). Ambos, a meu ver, a despeito de terem enfoques muito
específicos, podem ajudar na reflexão acerca de a poesia permitir a elaboração
de mensagens de forma mais rápida aos objetivos de quem escreve (o que não se
confunde com falta de capacidade) e maior possibilidade de fruição nos
processos de interação social (o que ajuda, ainda em minha modesta opinião, a
valorizar iniciativas como os saraus periféricos, os slams, as batalhas de
rima); como professor, inclusive, é massacrante o placar de estudantes e
ex-estudantes que me procuram para expor suas artes com poemas em relação às
prosas, crônicas e contos, por exemplo.<o:p></o:p></p><p class="Citaes" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p><span style="text-align: justify;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; text-align: justify;">A </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; text-align: justify;">minha
interrogação, é claro, disfarçava uma perspectiva negativa. Eu inseri o ato
literário numa linha de montagem, na qual o romance se traduziria no elemento
mais complexo da cadeia, aquele a ser buscado. Logo, o fato de não ser a
forma prioritária da literatura periférica se ligaria a uma deficiência
estética do movimento. Contudo, gentilmente, o professor Fábio Roberto Ferreira
Barreto<i> </i>chamou minha atenção para o processo de formação de uma
literatura, a função didática e comunicativa da poesia, lembrou-me das
condições do bairro e de nossas emergências. Fez pensar, igualmente, na
possibilidade do sistema de saraus já ser essa construção “mais complexa”, ou
seja, que essa organização responda aos anseios formais de um grupo de pessoas,
num lugar e tempo específicos. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Não
me parece por acaso que essa manifestação tenha acontecido, em primeiro lugar,
na zona sul de São Paulo. Essa região têm um histórico de engajamento, desde as
demandas por moradias no Jardim São Luiz; passando pelos grupos de mulheres do
Ângela, reunidas para resistir às violências policiais, até os sindicatos
operários da área industrial de Santo Amaro. Existe o registro cultural das
lutas negras, do movimento Black e do Hip-hop, fortes presenças neste canto da
cidade. Outro aspecto a não ser ignorado, quando se pensa nos saraus, diz
respeito a chegada do Partido dos Trabalhadores no poder, a figura de Luiz
Inácio Lula da Silva indica um instante particular também no imaginário
brasileiro.</span><o:p></o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman",serif;">VI</span></b><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Dona
Edite quem costuma dizer que cada encontro é como se lêssemos um livro, todos
juntos. Tem-se aqui uma boa chave de interpretação, porque implica pensar numa
nova obra se escrevendo a cada terça. Nenhum sarau é igual ao outro. Ora,
descontando feriados, férias, impedimentos, os dezenove anos representam mais
de novecentas semanas, ou seja, 900 livros escritos e lidos coletivamente.
Interpretem estes dados com o seguinte acréscimo: refiro-me apenas a um grupo.
Se, por exemplo, adicionar o <i>Sarau do Binho</i>, do <i>Grajaú</i>, <i>Suburbano
Convicto</i>, <i>Elo da Corrente</i>, <i>Sobrenome liberdade</i>, entre muitos
outros, uma vez que, em certos momentos, eram mais de cem saraus espalhados nas
periferias de São Paulo e do Brasil inteiro; trata-se da formação de um sistema
literário quase autônomo, gigantesco e completamente paralelo ao cânone
brasileiro. E, como era de se esperar, até pouco tempo, ignorado pela crítica
tradicional. Mas, voltando ao raciocínio anterior, tal compreensão permitiria
pensar que o melhor método de análise, para se olhar com justiça a literatura
periférica, seria um balanço equilibrado entre cada noite e todas as
noites. </span><o:p></o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> <b>VII</b></span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> A
sabedoria de Dona Edite aponta, inclusive, para uma condição ambígua do
movimento; porquanto esta realização estética não é recolhida num objeto
material. E, eventualmente, quando isso acontece no formato de um livro, na
passagem das noites para o papel, perde-se justamente a substância humana do
corpo, a presença e os gestos<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/O%20Sarau%20Cooperifa%20-%20forma%20e%20mem%C3%B3ria%20das%20noites.doc#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></a>. A única
antologia do sarau, de 2006, não representa o que foi a minha experiência a
partir de 2013, assim como hoje, se houvesse outra publicação, não seria o
mesmo de quando eu estava lá. Aliás, às vezes, este descompasso provoca um
efeito prejudicial à literatura periférica (que acredito ser melhor resolvido
em outras artes como na música e no cinema). Muitos poetas, eventualmente
iludidos pelo sucesso de suas performances, publicam prematuramente. Nas
páginas solitárias, entretanto, os versos não funcionam como no sarau, a
leitura do livro mobiliza aspectos diferentes (o que é justamente o assunto
tratado aqui!), de modo que os reveses da linguagem poética se evidenciam,
acontecem equívocos e isso dá um ar de imediatismo à poesia.</span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Se,
então, por um lado, essa efemeridade configura um traço lírico e, de alguma
maneira, resistente, na medida em que se estabelece numa outra relação
temporal, dispensando a ideologia capitalista de que tudo deva resultar num
produto (para ser consumido…), por outro lado, a dificuldade em gerenciar o
passado, inconscientemente, reproduz o modus operandi da sociedade: o
apagamento violento dos traços materiais e afetivos dos pobres. “Sarau” deveria
ser sinônimo também de “arquivo”. Afinal, a tensão estética não é outra coisa
senão uma contenta com o tempo, isso intensificado na quebrada, obrigando a
desenvolver uma forma resistente à lógica opressiva; a buscar uma criação que
valha um respiro de fabulação aos trabalhadores. Uma literatura capaz de dar
uma esperança mínima, que feito um espelho, faça a gente da periferia se
enxergar, pois é uma versão de suas histórias contadas ali. Porém, a
indissociável proximidade com a matéria (o fato dela se constituir do corpo),
inevitavelmente, como efeito colateral, traz em sua fatura poética a reprodução
do drama trágico da periferia: a desapropriação da memória. Evidentemente, a
sensibilidade periférica está atenta para continuar desenvolvendo estratégias
para subverter essas condições. E, hoje, existem novas possibilidades de
expressão poéticas. A questão é saber se isso acontece na dimensão das
urgências e, infelizmente, à altura de lutar contra o futuro que se vislumbra
no Brasil. </span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">VIII</span></b><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"> Antonio
Eleilson Leite, no texto “Literaturas da Periferia: o desafio da estética”, no
site <i><a href="https://outraspalavras.net/poeticas/literaturas-da-periferia-o-desafio-da-estetica/" target="_blank">Outras Palavras</a></i>,
desenvolve uma sincera e corajosa análise, identificando que o argumento social
e político do movimento periférico, poderoso e fundamental, está próximo de seu
esgotamento. Quase não é mais suficiente para sustentar uma construção, que se
diz, literária. Ele propõe, desta maneira, coisa que eu concordo, que a
periferia dispute igualmente os conceitos estéticos, que se aproprie das
reflexões também formais, o que implicaria, então, num trabalho crítico. Nesse
sentido, o autor escreve na conclusão: </span><o:p></o:p></p><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px;"><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px;"><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px;"><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px;"><p class="Citaes" style="text-align: justify;">Mas para alcançar
o reconhecimento artístico, é necessário que esta arte seja submetida à
crítica:[…] Não estão em discussão os propósitos políticos do movimento, tão
bem expostos nos manifestos da Semana de Arte Moderna da Periferia [texto de
Sérgio Vaz]. A questão é analisar que arte está sendo produzida a partir desses
propósitos. O bordão de Alessandro Buzo, que diz: “Pensavam que não sabíamos
ler e agora estamos escrevendo livros”, já não dá conta da cena atual. É hora
de discutir a qualidade literária desses escritos.</p></blockquote></blockquote></blockquote></blockquote><p class="Citaes" style="text-align: justify;"><o:p></o:p></p><p class="Citaes" style="text-align: justify;"><o:p> </o:p><span style="font-family: "Times New Roman", serif; text-align: justify;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; text-align: justify;">Neste
trecho, toca-se no ponto nevrálgico da coisa. Gostaria tão somente de
acrescentar o seguinte: também é necessário que esta “crítica” se reelabore,
redefina os seus próprios parâmetros. É indispensável que se estabeleça uma
dinâmica dialética, captando as contradições e auxiliando o próximo passo, a
superação do esgotamento – no plano estético. O trabalho, em outras palavras, é
um exercício de simbiose, pois, se não for assim, “a crítica” será apenas mais
uma barreira, que vai repulsar as artes periféricas em nome de um suposto valor
estético; vai identificar as formulações como ruins, inferiores, desprovidas de
complexidades artísticas. Esta “crítica” será somente mais uma instituição
aumentando nossa desigualdade. Por isso, no excerto destacado, penso que o
verbo “submeter” seja problemático; “dialogar”, “colaborar” ou até mesmo
“criar” uma nova maneira de refletir a arte contemporânea, seriam termos mais
apropriados.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p></o:p></p><p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">IX</span></b><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif;"> Não se pode ignorar o lado
romântico/utópico do movimento, anunciado em poemas como “Literatura das Ruas”
e “Victor Hugo” de Sérgio Vaz. Neste sentido, por sinal, <i>Os </i>Miseráveis
se refere a uma das leituras preferidas do poeta. É curioso o fato de que Hugo,
enquanto escrevia a sua grande obra, tinha consciência que sua forma inovadora
nutriria uma dificuldade de apreensão. Num prefácio deste romance, inclusive,
leio a melhor conclusão para meu ensaio: uma carta de Hugo, dia 7 de fevereiro
de 1862, para Albert Lacroix, na qual previne seu editor: </span><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">“Você
arriscaria se enganar, tentando compreender definitivamente ‘isso’ ou ‘aquilo’,
e não olhando a perspectiva do TODO, você cometeria erros de perspectiva. Este
livro é uma montanha; ele não pode ser medido, nem mesmo visto com clareza;
unicamente à distância. Quero dizer, só por completo”. Da mesma maneira, “só
por completo” será possível compreender o<i> Sarau da</i> <i>Cooperifa</i>.</span><o:p></o:p></p><div><!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1">
<p class="MsoFootnoteText" style="margin-left: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0cm;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/O%20Sarau%20Cooperifa%20-%20forma%20e%20mem%C3%B3ria%20das%20noites.doc#_ftnref1" name="_ftn1" title=""><span class="Caracteresdenotaderodap"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-bidi-font-family: Arial;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="Caracteresdenotaderodap"><span style="font-size: 10pt; line-height: 150%;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span style="font-family: "Times New Roman",serif;">No evento “Centralidades
Periféricas: Reflexões Sobre Literatura Periférica e Universidade”, realizado
no Instituto de Estudos Avançados da USP, dia 18 de junho de 2018, Heloisa
Buarque de Hollanda sugere, para vencer esse problema, uma publicação em livro
com códigos QR, conectando as páginas a um registro audiovisual.</span><o:p></o:p></p><p class="MsoFootnoteText" style="margin-left: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0cm;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif;"></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 7.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-ansi-language: PT-BR;"><br /></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 7.0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-ansi-language: PT-BR;">*Rafa
Ireno é escritor e crítico da periferia de São Paulo, do Chácara Santana. Neste
momento, faz um doutorado sobre poesia e política nas obras de Rubem Braga e
Jacques Prévert. Recentemente, publicou de maneira independente o segundo fascículo
de poemas em prosa chamado <i>Três por
Quatro</i>. Desde 2019, é colaborador do <i>Letras in.verno e re.verso</i>
(http://www.blogletras.com/) e, não tão amiúde como gostaria, escreve em seu
próprio blog (http://amiudo.blogspot.com/ ). E-mail: irenorafa@gmail.com</span><span lang="FR"><o:p></o:p></span></p>
</div>
<div id="ftn2">
<br />
</div>
</div><p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<br /><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><br /></span></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-28351461632506775652020-12-24T20:00:00.012-08:002020-12-24T20:00:00.120-08:00A raridade do sujeito negro<div style="text-align: right;">Marcel Silva</div><div style="text-align: right;"><br /></div><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-D6MI03k9_nM/X9zyXp_BBXI/AAAAAAAABrc/mQnDrDDDDeUPQ5a-HbVs5mejpEPcW8I8wCLcBGAsYHQ/s900/harlequins-carnival%2BJoan%2BMir%25C3%25B3.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="700" data-original-width="900" height="498" src="https://1.bp.blogspot.com/-D6MI03k9_nM/X9zyXp_BBXI/AAAAAAAABrc/mQnDrDDDDeUPQ5a-HbVs5mejpEPcW8I8wCLcBGAsYHQ/w640-h498/harlequins-carnival%2BJoan%2BMir%25C3%25B3.jpg" width="640" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Joan Miró (1924), Harlequins Carnival</td></tr></tbody></table><br /><div style="text-align: right;"><br /></div><div style="text-align: right;"><br /></div><div><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 36pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Quem diria que o fator representatividade produziria tantas
obras marcantes e reflexivas no Brasil de 2020? Talvez, nós. Nós que observamos
ansiosos os desdobramentos políticos e educacionais e desejamos que essa pátria
seja gentil com todos os seus cidadãos. Nós que apoiamos a igualdade e lutamos
pela cidadania. Nós que pensamos que a educação é a chave para um mundo melhor.
<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Após a leitura de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Avesso da pele</i>, de Jeferson Tenório e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Marrom e amarelo</i>, de Paulo Scott fica a
sensação de que, finalmente, a população negra tem representantes na ficção
brasileira que, por meio da educação, conseguiram condições de vida mais
dignas, alçando o homem negro a um patamar de humanidade. Os estereótipos foram
sobrepujados e as personagens vivem temas universais, usando os argumentos
possíveis, sentindo e reagindo ao mundo como quaisquer pessoas e assumindo um
lugar que, antes, fora estereotipado, mas, agora, também pertence
literariamente ao coletivo negro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Tenório criou um mundo de
introspecção, onde o protagonista rememora sua existência em busca de
ressignificações que o ajudem a suportar o assassinato do pai. Enredados pelo
racismo, os personagens transitam pela vida e são construídos por meio de uma
tessitura que liga os fios da crueldade e da beleza, numa obra tocante, com
traços de lirismo. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>O amarelo, de Scott, é um homem que
está em conflito por causa de seu tom de pele mais claro e pergunta-se por que
seus familiares não assumem uma posição mais atuante diante da sociedade
segregadora em que vivem. Dentre os diversos questionamentos, surgem
personagens adaptados à realidade gaúcha, utilizando mecanismos de
sobrevivência que os mantenham em uma situação segura. Todos vivem suas
singularidades.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Em comum, as obras apresentam
personagens que, de uma maneira geral, conhecemos no mundo real. São homens e
mulheres que lutam, sofrem, amam e se frustram. Eles têm famílias, empregos e
aspirações. Suas expectativas possuem as limitações ou a grandeza comum a qualquer
pessoa, no entanto, é a cor de suas peles e o protagonismo dos autores que
chama a atenção para a representação. Mesmo que os movimentos de insurgência
contra o racismo sejam tão antigos quanto a invasão desse país pelos europeus,
pouquíssimas obras apresentaram a humanidade das pessoas negras, sob uma ótica
protagonizante, em que as personagens fossem mais do que clichês.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Donos de suas vozes, esses
personagens encenam uma revolução na composição literária que foi mantida sob o
domínio de uma elite que não aprovava a presença negra em lugar algum. Muito
menos nas Belas Letras. Ainda assim, autores, narradores e personagens chegaram
às páginas dos livros e são procurados por uma gama de leitores que têm a
urgência de reconhecerem-se na grafia ficcional. As histórias contadas
perpassam as mazelas do racismo estrutural, contudo, colocam em primeiro plano
a subjetividade de pessoas que foram bestializadas e, ainda hoje, lutam para
que não sejam exterminadas por um Estado negligente e sua força policial. A
valorização dos sujeitos, historicamente marginalizados, é o despontar de uma
literatura que inclui e, finalmente, reconhece suas vivências para além dos
estereótipos. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>É possível que estejamos vivendo um
momento de transformações para o coletivo negro, porém, com uma lentidão e um
atraso que refletem a crueza da realidade brasileira. Hoje, após conseguirem
adentrar as portas elitistas das universidades e com o auxílio de tecnologias
de informação capazes de unir, rapidamente, os mais distantes lugares do globo,
a comunidade negra pode ver-se, sob diversos aspectos, em um universo que a
mantinha sob o jugo da estigmatização, mas que está moldando-se para realocar
seus membros em textos arquitetados para tal fim. Investidos do seu lugar
discursivo e conscientes de que suas ações são importantes para o processo de
emancipação negra, os autores produzem uma fluência literária que interrompe um
ciclo violento de racismo. Mesmo que não vivamos em Wakanda e não tenhamos um
herói trajado como uma pantera, temos a raridade do sujeito negro que
transforma a realidade, performando um heroísmo a seu modo. A literatura não
tem a finalidade de modificar as estruturas sociais, ainda que as represente;
apesar disso, e sobremaneira, atreve-se a tanto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">*Marcel
Fernando da Silva é turismólogo e graduando no curso de letras
Português/Espanhol do Instituto Federal <i style="mso-bidi-font-style: normal;">campus</i>
Restinga.<o:p></o:p></span></p><div style="text-align: right;"><br /></div></div>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-67395326473826298992020-12-18T09:33:00.002-08:002020-12-18T11:47:00.005-08:00Notas sobre o romance regional<p> </p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Eurídice
Figueiredo (UFF/CNPq)<o:p></o:p></span></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-d5_UxZpmzNg/X9znS6MgPmI/AAAAAAAABrI/XljYq660nlUKHrRb9wKdiU5wJOZxOFA3QCLcBGAsYHQ/s960/Aur%25C3%25A9olas-da-Foz-%25C3%25B3leo-sobre-tela-40-x-50-2017-1.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="720" data-original-width="960" height="480" src="https://1.bp.blogspot.com/-d5_UxZpmzNg/X9znS6MgPmI/AAAAAAAABrI/XljYq660nlUKHrRb9wKdiU5wJOZxOFA3QCLcBGAsYHQ/w640-h480/Aur%25C3%25A9olas-da-Foz-%25C3%25B3leo-sobre-tela-40-x-50-2017-1.jpg" title="Auréolas da Foz, Olívio Ataíde (2017)" width="640" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Auréolas da Foz (2017), de Olívio Ataíde</td></tr></tbody></table><br /><p></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;"><br /></span></p><p align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;"></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Essas
anotações foram suscitadas pelos comentários críticos à resenha do romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Torto Arado</i>, escrita por Raquel Carneiro
e publicada na revista <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Veja </i>de 15 de
dezembro de 2020 com o título de “Com <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Torto
arado</i>, Itamar Vieira Júnior dá novo fôlego ao romance regional”. A resenha
foi postada pelo autor no Facebook, de modo que pude acompanhar as reações de
pessoas do meio literário à atribuição da categoria “romance regional” à obra,
premiada inicialmente em Portugal no concurso da Leya e agora consagrado com o
Jabuti de melhor romance.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">De
maneira sucinta, o debate em torno da oposição regional/nacional X universal
remonta ao romantismo, quando havia, de um lado, o romance indianista de José
de Alencar e, de outro, o romance urbano de Machado de Assis, cujo texto
“Instinto de nacionalidade” deu forma teórica à percepção do que se esperava
dos escritores brasileiros para criar uma literatura própria sem apelar para o
exotismo. Na década de 1930 o romance realista, de cunho social, se consolida
pelas mãos de escritores nordestinos como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel
de Queiroz, José Lins do Rego e, no sul, por Érico Veríssimo. Os romances
escritos por eles foram chamados de “romances regionalistas” porque narravam
histórias que se passavam no mundo rural de suas regiões, ao passo que aqueles
que tinham como cenário o Rio de Janeiro, capital da República, eram
“universais”. Essa classificação é generalizadora porque alguns romances desses
autores eram urbanos; entretanto, é preciso ressaltar que os autores
“regionalistas” fazem parte do cânone da literatura brasileira, tendo sido
traduzidos em outras línguas e muito bem recebidos nos grandes centros de
consagração. Todavia, o termo continua sendo pejorativo porque é confundido com
o naturalismo do primeiro regionalismo do século XIX.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Antonio
Candido, no seu artigo “Literatura e subdesenvolvimento”, faz uma correlação
entre as diferentes fases do regionalismo brasileiro e as tendências literárias
da América Hispânica. Publicado no livro <i style="mso-bidi-font-style: normal;">América
Latina em sua literatura</i> em 1972 pela editora Perspectiva, portanto em
pleno <i style="mso-bidi-font-style: normal;">boom</i> do realismo mágico de
García Márquez, José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Candido percebe que toda essa
produção explorava o mundo do interior (o altiplano, o sertão, os confins). O
crítico uruguaio Ángel Rama, criador do conceito de transculturação narrativa,
considerava esses três escritores, assim como Guimarães Rosa, como
representantes dessa tendência, em outras palavras, eles seriam transculturadores.
Já Candido chama Guimarães Rosa de superregionalista, alguém que supera e, ao
mesmo tempo, continua sendo regionalista; destaca o caráter metafísico e
universal da obra do autor mineiro. Ele afirma que muitos escritores
“rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas (...). Mas isto não
impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior
importância”. Ele aponta o “refinamento técnico, graças ao qual as regiões se
transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem e adquirem
universalidade” (1972, p. 361).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">Esses
quatro escritores – García Márquez, Rulfo, Arguedas e Rosa – seriam os epítomes
dessa geração cuja consciência política se explicita ao explorar o
subdesenvolvimento da América Latina numa escrita não-naturalista, que faz
apelo à magia, ao absurdo, ao monólogo interior, à elipse e ao fantástico.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">E
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Torto arado</i>, o que teríamos a dizer
desse romance que foi reconhecido em Portugal antes mesmo de ser publicado no
Brasil? Ele é, antes de mais nada, muito elaborado, não só na linguagem como na
estrutura, portanto, sua fatura requintada torna-o universal. Mas ser universal
não quer dizer eliminar a dimensão regional e nacional, porque toda literatura
parte de um particular, às vezes de uma micro-região, e fala ao mundo. Devido a
uma coincidência -- li o romance de Itamar no momento em que era publicada a
tradução de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Senhores do orvalho</i>, do
escritor haitiano Jacques Roumain, para a qual escrevi o posfácio – percebi
elementos comuns: a seca que dificulta ainda mais a vida da gente pobre, o
personagem que tem de se deslocar para tomar consciência política e lutar
contra a opressão, a resistência das mulheres, a utilização de religiões de
matriz africana e a força poética da obra. O romance haitiano, publicado
originalmente em 1944, é suficientemente “universal” para despertar o interesse
da editora Carambaia em 2020.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;">O
problema que transparece nos comentários que apareceram no Facebook é o
etnocentrismo, que faria com que só escritores do sudeste, principalmente do
Rio e de São Paulo, pudessem ser urbanos e universais. Ainda que a imprensa
muitas vezes caia nos clichês, como, p. ex., ao falar de Moacyr Scliar,
escritor judeu, que sempre explorou as questões judaicas em sua obra, era
sempre chamado no jornal <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Globo</i> de
escritor gaúcho. Outro exemplo: parece-me equivocado estabelecer uma
equivalência entre <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Conceição Evaristo e
Carolina Maria de Jesus como “escritoras vindas da favela” porque, embora
Conceição tenha, efetivamente, vivido na favela em sua infância em Belo
Horizonte, ela teve acesso à educação, tornou-se professora e concluiu um
doutorado. Sem desmerecer Carolina, é claro, pois como adverte </span><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-theme-font: minor-bidi;">a pesquisadora Giovana Xavier em entrevista ao
jornal <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Globo</i> (2019) Carolina deveria
ser apresentada como uma intelectual negra e não como uma favelada. E
realmente, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Diário de Bitita</i> ela
interpreta o Brasil a partir de seu lugar de mulher pobre e negra que vê como
funciona a sociedade brasileira. O clichê contém uma parte de verdade, mas
tende a confundir, nivelando padrões a enunciados simplificados e repetidos à
exaustão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-theme-font: minor-bidi;">Torto
arado</span></i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-theme-font: minor-bidi;">, de um autor jovem
(nascido em 1979), se distingue da maioria da produção atual brasileira que é
urbana, não importando se o romance se passa na praia de Garopaba ou em Porto
Alegre, em São Paulo ou no Rio. Perscrutando o cenário, olhando para meus
livros, o único autor que me parece guardar semelhança com Itamar é Ronaldo
Correia de Brito, cearense radicado no Recife (nascido em 1951). Na orelha de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Livro dos homens</i>, escrita por Marco
Lucchesi, se lê: “Posso afirmar sem erro que</span><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;"> este é um dos livros
mais importantes de que tenho notícia nesses últimos anos. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Um Brasil profundo, mas livre de cores locais</i>. Uma palavra plural,
embora incisiva. Uma imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao
espaço ficcional de onde surge e para onde volta” (grifos meus). Em outras
palavras, é regionalista sem sê-lo, ou, pelo menos, não é o que se costuma
chamar de regionalista, embora explore a dimensão humana desses confins de
Brasil.</span><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-theme-font: minor-bidi;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; line-height: 150%;"><o:p> </o:p></span></p><br /><p></p>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-83883190095568867862020-11-07T06:09:00.003-08:002020-11-07T06:12:28.857-08:00DES/APARECIDOS<p> </p><h3 style="background: white; margin: 0cm 0cm 9pt; text-align: right;"><span face=""Arial",sans-serif" lang="IT" style="color: #333333;">Nicoletta Vallorani*<span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20blog%20GELBC_%20Valloranni%20(2).doc#_ftn1" title=""><!--[endif]--></a></span></span></span></h3><div><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-2QFdSg4GASo/X6aqMHF6vEI/AAAAAAAABp8/r7gN93aBd2YridPMtg4iXQvxV_JHK80hQCLcBGAsYHQ/s822/The%2Bdisappearing%2Bman%2BHoward%2BRoss.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="822" data-original-width="770" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-2QFdSg4GASo/X6aqMHF6vEI/AAAAAAAABp8/r7gN93aBd2YridPMtg4iXQvxV_JHK80hQCLcBGAsYHQ/w375-h400/The%2Bdisappearing%2Bman%2BHoward%2BRoss.jpg" width="375" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem: The Disappearing Man, de Howard Ross<br /></td></tr></tbody></table><br /><span face=""Arial",sans-serif" lang="IT" style="color: #333333;"><br /></span></div><h3 style="background: white; margin: 0cm 0cm 9pt; text-align: right;"><span face=""Arial",sans-serif" lang="IT" style="color: #333333;"><span class="MsoFootnoteReference"><p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 10.5pt;"> </span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">As palavras dão forma ao mundo. Enquanto
digo isso, me assusto, porque penso nas palavras que estão se apagando agora,
nesta infeliz contingência, e me convenço que talvez seja melhor permanecermos
mudos. As palavras são pedras, como diz Portelli, combinando injustiças
diferentes e colocando lado a lado casos como Giulio Regeni [um doutorando
italiano da Universidade de Cambridge, que foi sequestrado no dia 25 de janeiro
de 2016 e encontrado morto em 3 de fevereiro daquele ano na cidade do Cairo,
Egito. As condições do corpo demonstravam sinais de tortura. Até hoje as
autoridades egípcias não respondem a todos os questionamentos para uma
investigação transparente sobre o assassinato de Regeni. Uma campanha da
Anistia Internacional persiste pedindo verdade sobre o que foi feito contra ele]
e BlackLivesMatter. As palavras dão aparência a e fazem desaparecer pessoas,
tornam-nas visíveis ou apagam as coisas e situações. São armas que devem ser
usadas com cautela.<o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"> <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">As palavras da pandemia, em particular,
como escreveu anteriormente Susan Sontag, têm uma validade dupla, uma
genealogia metafórica dupla, que combina o desejo de abstrair-se da dor com a
consciência de que o corpo doente é real, existe, é violável, é violado. As
medidas “simbólicas” que dias atrás invocavam um dos governadores de uma região
italiana são – se definidas como tais – ofensivas e perigosas. Estas cancelam a
consciência dos corpos verdadeiros para preencher o espaço com um léxico político
conveniente.<o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"> <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Há alguns anos, a partir do meu ponto de
vista <i>não</i> médico, me ocupei dos temas
epidemia e contaminação, trabalhando sobre Derek Jarman e sua potente expressão
artística que, para esse extraordinário pintor e filmaker, é ligada à consciência
de uma morte à época inevitável para quem adoecia de AIDS. Antes, como hoje, o
léxico prevalente para falar de infecções virais era maniqueísta: saudável ou
doente, limpo ou sujo, normal/normativo ou anormal/anômalo. Nenhuma gradação,
nenhum espaço intermediário. Acima de tudo, uma terminologia bélica penetrante,
militarizada já a partir dos acrônimos utilizados: quem contraía AIDS, por
exemplo, era um PWA (“Person with AIDS/ Pessoa com AIDS”), uma definição com
mais de uma proximidade com o militar POW (“Prisioner of War/Prisioneiro de
guerra”). <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"><o:p> </o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-weight: normal;"><span style="font-size: 14pt;">Praticamente, desde os estudos de Susan
Sontag sobre como se contam as epidemias em relação à linguagem expressiva de
hoje, pouco mudou, senão que as metáforas biopolíticas de caráter militar por
vezes são usadas comicamente sem um propósito. Como por exemplo, alguns dias
atrás, tivemos que ler em um jornal de tiragem nacional as palavras de um
secretário da região da Lombardia que declarava orgulhosamente: “Estamos
perfeitamente equipados para enfrentar a Armada Vermelha”, quase como se o
vírus fosse um comunista – o único comunista sobrevivente, provavelmente, no
planeta – e pudesse ser derrotado com armas</span><span class="MsoCommentReference"><span lang="IT" style="color: black; font-size: 14pt; mso-ansi-language: IT; mso-color-alt: windowtext; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">.</span></span><span style="font-size: 14pt;"><o:p></o:p></span></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"><o:p> </o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Na verdade, uma das tantas coisas que
estão indo parar na conta das vítimas é a capacidade de “ver” aquilo que está
acontecendo, e de contá-lo de modo que a narrativa sirva àquilo que servem as
histórias: entender, encontrar caminhos, tornar visível, desvendar o emaranhado
de erros. Na estupidez política que parece um sinal dos tempos, esta capacidade
de dar forma ao desastre é um dos ilustres desaparecimentos, enquanto aparecem
em todos os lugares especialistas em política, epidemiologia, especialistas em
adolescentes, escolas, economistas autodidatas. <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"><o:p> </o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Entre esses se move, perdido, o cidadão
comum, e este adjetivo, como poderemos ver, é importante – é um pouco como o
estrangeiro, o migrante, a mulher, o homossexual, a figura não normativa, isto
é, todos precisam se esforçar para não sê-lo (fingindo-se, portanto, de
especialista em qualquer coisa) e de não vê-lo (se conseguiu sair da categoria
de invisível). <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"><o:p> </o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Em alguns lugares que não se aconselha
frequentar, o cidadão comum é formalmente inserido como criatura de segunda
ordem. “Durante a pandemia, o sistema de saúde privado abriu seus quartos
luxuosos para pacientes comuns que eram transferidos do setor público”
proclamava o secretário de saúde da Lombardia, Gallera, no dia 24 de junho de
2020, e hoje essa mesma voz, com relação à vacina antigripal, diz: “O objetivo
é cobrir as faixas de risco. Livre mercado? Não podemos nos ocupar do paciente
comum”. Nos anos 70, Raymond Williams, professor, estudioso e ativista,
orgulhosamente afirmava “Culture is ordinary”: a cultura é de todos, um bem
comum, não prerrogativa de uma elite de intelectuais. Hoje temos o “paciente
comum” que sustenta o privado com seus impostos, mas deve esperar a complacente
beneficência, dentro de uma moldura administrativa que se constitui como um
sistema autoimune, no qual a crítica não penetra, não porque não exista, mas
porque é feita desaparecer antes mesmo de entrar nas fronteiras institucionais.
Se desmaterializa, um pouco como os arquivos de um tempo quando são
digitalizados.<o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"> <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Entretanto, nesta festa de desaparições,
também outros são os desaparecimentos. Desapareceram, por exemplo, os corpos
dos vivos. Não existem os sorrisos, as caretas tristes e alegres, as bocas
fechadas ou escancaradas, cheias de dentes. Para tantos de nós que continuamos
a lecionar, desapareceram os estudantes, transformados em bolinhas, no melhor
dos casos decoradas com avatares que designam identidades imaginárias.
Desapareceram os abraços. Na relação entre as pessoas, desapareceu a pele.<o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"> <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Além disso, desapareceram os corpos dos
mortos. As pessoas que partiram são objetos sem respiração que não se pode ver.
Entes queridos desaparecidos, dos quais apenas podemos imaginar a cerimônia
fúnebre, em vez de vivê-la. A memória se evapora rapidamente, enquanto a dor
permanece intensa, sem ser possível o consolo de uma despedida adequada. <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"><o:p> </o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Desapareceu a cultura, uma vez que ao
contrário de a usarmos para contornar o problema, a empurramos para os cantos,
nos interstícios da história. Reduzida a assunto de carteiras com rodinhas<a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20blog%20GELBC_%20Valloranni%20(2).doc#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="color: #333333; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></a> [para retorno dos alunos
às aulas presenciais] e acrônimos de duvidosa transparência, a cultura se
afogou.<o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"><o:p> </o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Enfim, desapareceram a responsabilidade
e a obrigação da competência: teríamos, em teoria, como adultos, uma
responsabilidade na relação com os mais jovens. Teríamos também a
responsabilidade de evitar que desaparecessem as coisas que importam, por
exemplo, as relações, a dimensão ética, a ideia de comunidade. Deveríamos,
talvez, convencê-los de que não irão se afogar nas máscaras apertando entre
punhos cerrados um título de estudo que vale pouco, especialmente se da área de
humanas, porque com o passar do tempo esqueceu-se para que serve a cultura.
Devemos, talvez, admitir que somos capazes de argumentar, discutir, mas não de
elaborar os conflitos; de nos indignarmos, mas não de nos comprometermos; de
pretender que devemos ser salvos, mas sem renunciar àquilo que contribuiu para o
desastre. <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"> <o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;">Pagamos – aqui em Milão, na minha
percepção, mas talvez também em outros lugares – um outro desaparecimento
importante, ainda mais penoso e originário: o desaparecimento da capacidade de
entender aquilo que acontece ao nosso redor. Para esse tipo de compreensão, é
preciso um tempo lento, uma reflexão que se tornou essencial, de uma
consciência inédita, um olhar atento ao caos, que é nosso companheiro e, como
escreve Haraway, é a condição permanente de um planeta que arrisca desaparecer
também.<o:p></o:p></span></p>
<p style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial; background-position: initial; background-repeat: initial; background-size: initial; margin: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt; font-weight: normal;"> <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><br /></p><div><!--[if !supportFootnotes]--><span style="font-weight: normal;"><br clear="all" />
</span><hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1">
<p class="MsoFootnoteText" style="text-align: justify;"><span style="font-weight: normal;"><span style="font-size: medium;"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20blog%20GELBC_%20Valloranni%20(2).doc#_ftnref1" name="_ftn1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="IT"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span face=""Calibri",sans-serif" lang="IT" style="line-height: 107%; mso-ansi-language: IT; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="IT"> </span>Na Itália, a maioria das
salas de aulas são dotadas de carteiras “duplas”, a mesa com cadeiras para dois
alunos. Com a pandemia do novo coronavírus, a proposta mais divulgada (não sem
polêmicas) do Ministério da Educação foi a aquisição de carteiras individuais
com rodinhas, que permitiriam facilmente a administração do distanciamento
entre os alunos. Os custos e a prioridade que se deu ao projeto foi muito
criticado pela própria comunidade escolar, que apontava como mais preocupantes
a própria falta de espaços para realocar os alunos distanciados e a necessidade
de contratação de professores para cobrir os diferentes horários de aula e a
substituição dos professores da faixa de risco que não poderiam voltar às aulas
presenciais. </span><o:p></o:p></span></p>
</div>
</div></span></span></h3>
<div style="mso-element: footnote-list;"><!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="file:///C:/Users/paula/Downloads/Texto%20blog%20GELBC_%20Valloranni%20(2).doc#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="IT"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span face=""Calibri",sans-serif" lang="IT" style="font-size: 10pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: IT; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">*</span></span><!--[endif]--></span></span></span></a><span lang="IT"> </span><span style="mso-ansi-language: PT-BR;">Escritora e professora de
língua, literatura e cultura inglesa e anglo-americana na Università degli
Studi di Milano.<o:p></o:p></span></p><h3 style="background: white; margin: 0cm 0cm 9pt; text-align: right;"><span face="Arial, sans-serif" lang="IT" style="color: #333333;"><span class="MsoFootnoteReference"><p class="MsoNormal" style="text-align: left;"><span lang="IT" style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; font-weight: normal; line-height: 19.9733px;">Tradução: Grazielle Frederico</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: left;"><span style="font-weight: normal; text-align: right;"><span style="font-size: x-small;">Publicado originalmente em:</span></span></p><span style="font-weight: normal;"><div style="text-align: left;"><a href="http://www.leparoleelecose.it/?p=39602&fbclid=IwAR110ZDxSiACEn3-wLcfYEj9qLVEf7ydhwchyqpnH7V_hm_NczoiDD2x0Hw" style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">http://www.leparoleelecose.it/?p=39602&fbclid=IwAR110ZDxSiACEn3-wLcfYEj9qLVEf7ydhwchyqpnH7V_hm_NczoiDD2x0Hw</span></a></div></span></span></span></h3>
</div>
</div>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-82001855896778062892020-06-27T13:24:00.003-07:002020-06-29T05:55:50.176-07:00Por uma gestão do infraordinário<br />
<h3 style="text-align: right;">
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Lucía Tennina<br /> </span><span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Universidade de Buenos Aires</span></h3>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-hhJzH7Oxf1M/Xveq8QVU_2I/AAAAAAAABn4/IfnNFwmyszMAUQcA5-iW-bNoLBrhQ2fuACLcBGAsYHQ/s1600/Dragan%2BBibin.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="906" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-hhJzH7Oxf1M/Xveq8QVU_2I/AAAAAAAABn4/IfnNFwmyszMAUQcA5-iW-bNoLBrhQ2fuACLcBGAsYHQ/s400/Dragan%2BBibin.jpg" width="282" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem: Dragan Bibin</td></tr>
</tbody></table>
<div>
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div>
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Paralelamente
ao trabalho de cientistas e epidemiologistas para encontrar uma vacina que
acabe com o coronavírus, o confinamento global agitou teclados, agendas e
projetos para pensar em horizontes possíveis e desejáveis após o término da
pandemia. O futuro nos envolve com uma incerteza que não apenas nos enche de
esperanças de uma mudança global em termos sociais e climáticos, mas também nos
assusta com novas catástrofes e realidades distópicas ou nos preocupa, ao pensarmos
que tudo voltará ao que era antes.<o:p></o:p></span></div>
<div>
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">
</span><br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">Mas o que
acontece portas adentro, na vida diária mais íntima?<o:p></o:p></span></span></div>
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">Tomando
como ponto de partida meu lugar de enunciação como mulher branca em um mundo
ainda patriarcal, de classe média, professora universitária, pesquisadora, mãe
de duas filhas muito pequenas, me ocorre pensar que esse nós do qual faço parte
está imerso em um cotidiano permanente, em um dia a dia que se repete e que vai
acumulando os hábitos uns sobre os outros, embora sem deixar de ser um
diferente do outro. Cercada por brinquedos, diálogos imaginários com bonecas,
role-playing onde às vezes eu sou um bebê, outros eu sou o lobo, montanhas de
louças, roupas sujas para lavar ou limpas para pendurar, compras de
supermercado para desinfetar, trabalho pendente para resolver, contas a pagar. Ruídos
de água corrente, aspirador funcionando, telefone tocando, aquecimento por
microondas. Gritos, choros, TV ao fundo, silêncios, diálogos. Tudo dentro de
casa. E, enquanto isso, o calendário avança.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">É possível
falar sobre o futuro neste modo de vida? Prefiro dizer que estamos vivendo um
presente que não dá lugar ao futuro. E também não sei se é possível falar do
presente, mas de uma interioridade cheia de instantes intangíveis à primeira
vista e que estão por trás do pensamento em uma dimensão, ainda, de tentar
entender. Seria, de acordo com Clarice Lispector, um instante – já tão difícil
de definir, porque é algo como uma quarta dimensão, trata-se do desconhecido
dos instantes sempre iguais. Mas não igualitários. Porque essa conjuntura de
uma pandemia mundial colocou sobre a mesa que nem todo mundo tem o direito de
dimensionar seus instantes e que, para esses, os instantes se tornam urgências
que gritam racismos, que gritam abandono e revelam que as mortes que estão
acontecendo não são apenas tragédias, mas também assassinatos e que o futuro
faz tempo que é impensável.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">As
perguntas que surgem, então, são: Que responsabilidade nos cabe, a nós que nos
dedicamos à pesquisa básica, nestes momentos? Como devemos administrar os
instantes para pensar em nosso cotidiano não apenas como repetição, mas como
momentos de criação e agência? Que posição devemos tomar em relação às
urgências que anulam o direito aos instantes?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">Nestes
dias estive lendo uma poeta chamada Marília Garcia e em um de seus poemas, do
livro <i>Parque das ruínas</i>, ela menciona um termo de Georges Perec: o
infraordinário. Marília diz:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"> “o que se passa todos
os dias e que volta todos os dias<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">o banal o cotidiano o óbvio o comum o
ordinário<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">o infraordinário<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">o barulho de fundo o hábito<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">— como perceber todas essas coisas? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">como abordar e descrever aquilo que de
fato<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">preenche a nossa vida?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">Parece-me
que esse fragmento define muito bem o que, acredito, nos cabe como intelectuais
nesse momento de confinamento. Quanto podemos pensar no futuro nessas
circunstâncias que não deixam de ser privilegiadas? E o que resta do presente?
Mais do que pensar no futuro ou no presente, acho que hoje seríamos forçados a
pensar, antes, no todos os dias, pensar essas novas coordenadas de
representação de nossos hábitos através do infraordinário, entendendo esse tipo
de reflexão como política no sentido rancieriano de elaboração de uma
sensibilidade do anônimo, do ainda não nomeado. Paradoxalmente, nesses tempos
em que o distanciamento é a regra, a saída estaria em se debruçar com uma lupa
sobre a potência do nosso cotidiano. E, como contrapartida, em assumir a
desigualdade dessas reflexões, levando em conta que existe outro tipo de anonimato,
o de grupos sociais historicamente marginalizados e abandonados, sufocados (literalmente) mais do que nunca neste momento, que não têm direito a esta
repetição e que nos obrigam a replicar não apenas o "ruído de fundo do
hábito", mas também os slogans dos protestos que essas violências reacendem.<o:p></o:p></span></div>
</span></div>
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-61248692092288771192020-05-16T07:21:00.001-07:002020-05-16T07:21:03.021-07:00Este não é um texto sobre a pandemia<h3 style="text-align: right;">
<em><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; font-style: normal; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">Lucas
Amaral de Oliveira</span></em></h3>
<div>
<em><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; font-style: normal; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><br /></span></em></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-CXeuzh_98v0/Xr_2PTT-nRI/AAAAAAAABnQ/3z9TuM4Rquoh9hS_SyHsfs95oaPR7-xsQCLcBGAsYHQ/s1600/claire-harvey-artist-06.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="911" data-original-width="1200" height="485" src="https://1.bp.blogspot.com/-CXeuzh_98v0/Xr_2PTT-nRI/AAAAAAAABnQ/3z9TuM4Rquoh9hS_SyHsfs95oaPR7-xsQCLcBGAsYHQ/s640/claire-harvey-artist-06.jpg" width="640" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem: Claire Harvey</td></tr>
</tbody></table>
<br /><div align="center" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: center;">
<em>Não teria sido possível seguir
enfrentando esta sociedade incivil, mais explícita em função da pandemia, sem o
horizonte intelectual e afetivo de Muniz Sodré<o:p></o:p></em></div>
<div align="center" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: center;">
<em><br /></em></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<em><span style="font-size: 12.0pt; font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;"><span style="font-family: inherit;">Calhou
nestes dias de confinamento uma urgência de escrever, entregar às palavras o
que tem sido do império das angústias. De início, pensei que talvez me fosse mais
apropriado, na condição de sociólogo-docente-pesquisador, discorrer sobre como esta
crise epidemiológica vem aniquilando os espaços de convivialidade de uma cidade
tão culturalmente agitada como Salvador. Ou, por outro lado, como esta fatal necessidade
do isolamento – e, paradoxalmente, para muitos cidadãos, a sua impossibilidade material
– acaba por amplificar as desigualdades sociorraciais e a segregação urbana de
uma das metrópoles com maior densidade populacional do planeta. Já havia, inclusive,
esquematizado uma análise cujo eixo seguia os itinerários da operacionalização
da necropolítica no Brasil. Foi então que recebi uma mensagem familiar. <o:p></o:p></span></span></em></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<em><span style="font-size: 12.0pt; font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;"><span style="font-family: inherit;">Era uma
sexta de pouco sol em Salvador, depois de semanas de chuva e tempo fechado.
Condição atípica, que fez do isolamento a aceitação do exílio. A mensagem me
chegou como sinal de alento, respiro – afinal, o luto se impõe quando diante de
mais de quatorze mil mortes oficiais registradas no país. Após quinze dias de
desassossego, soubemos que Muniz Sodré está melhor. Entendedor das culturas
brasileiras. Espírito imensurável. Que tem se mostrado até então maior que seu
quase-fim terreno. Suportou dias a fio de inconsciência febril, lidando com o
ápice da infecção de Covid-19, na UTI de um hospital de São Cristóvão, no Rio
de Janeiro. Com muito custo, o baiano parece disposto a engambelar esta doença
que muitos ainda insistem em eufemizar. Mas pudera! Muniz não caberia em
despedidas. Por galardosas que fossem. Não caberia em epílogos. Por adjetivosos
que pudessem parecer. Se fosse o caso, certamente ele se transbordaria desde
dentro da gente em forma lagrimosa. Num contexto de morte e nada mais, é
preciso celebrar os sopros de vida, as sobrevivências do dia-a-dia. O axé de
Muniz. <o:p></o:p></span></span></em></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: inherit;"><em><span style="font-size: 12.0pt; font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">Ultimamente,
quase não tem havido espaço para boas notícias. Pelo menos em terras
incivilizadas. Como a nossa, latifúndio do ódio. Terra que agora ainda tem de
enfrentar uma doença implacável que só tem trazido sofrimento, desalento,
escassez, morte. Obviamente, a uns mais que a outros. Mas me traz um leve
sorriso ao rosto saber que este texto não é </span></em><span style="font-size: 12pt;">tributo póstumo. E que estas
palavras estejam sendo traçadas, agora, em tom de homenagem a alguém que, desde
um lugar um pouco mais seguro, segue entre nós. Me abranda o espírito que este
texto não ecoa palavras de <em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">despedida. É apenas um relato pessoal. Ou r</span></em>eminiscência
intelectual que gostaria de tornar público, hoje. Porque constitui um
testemunho de como um ser humano marcou, com tamanha solidez, uma geração
inteira de pesquisadores da cultura – na qual eu próprio me incluo –,
preocupada com efeitos éticos e políticos da produção do saber. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: inherit;">Se não há tamanho, também não há tempo
neste mundo em que caiba <em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">Muniz Sodré</span></em><span class="st"> de Araújo Cabral. O professor
Muca, como costuma ser afetuosamente reconhecido entre colegas e familiares, é existência
incabível, inencaixável, imorrível. Farol que orienta nossos pés nos entremeios
das tormentas da história. Oriente. Horizonte. A exata somatória da vastidão de
sua ternura com a fineza de um intelecto perspicaz, multiplicada pela seriedade
investida no cultivo das belas artes do ensinar – que orientam a mim e a colegas
no magistério público –, elevado à enésima potência da dedicação que tem depositado,
nas últimas cinco décadas, em analisar as vicissitudes nacionais, às vezes
desnudando nossos ilogismos mais desavergonhados. </span><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: inherit;"><span class="st">Muniz é daqueles seres
humanos insubstituíveis. Do tamanho da energia de vida que tem despendido buscando
entender a alma, a mentalidade, o imaginário, a epiderme, os intestinos e o
sistema nervoso central de um país periférico, culturalmente rico, não há
dúvidas, e híbrido até a raiz de suas histórias mais recônditas; mas erguido na
base de ferro, fogo, lágrima, sangue, racismo e muito genocídio. Da mesma maneira
que as composições de Aldir Blanc e Moraes Moreira revolucionaram a bússola da
música popular brasileira, que as atuações de</span> <span class="st">Flavio
Migliaccio politizaram a dramaturgia de um país naufragado no precipício do
autoritarismo, ou então que os contos de Sérgio Sant’Anna redirecionaram a ficção
na literatura brasileira contemporânea, as obras de Muniz Sodré sublevaram as
ciências sociais e humanas de modo irremediável, em especial as teorias da
comunicação e a sociologia da arte e da cultura: “</span><em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">O terreiro e a cidade</span></em>”
(1988), “A<em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">
máquina de Narciso” </span></em>(1990), “<em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">Antropológica do espelho”</span></em> (2001), “<em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">A narração do fato</span></em>”
(2009), “Reinventando a educação” (2012), “A ciência do comum” (2014) e “<em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">Pensar nagô”</span></em> (2017)
são apenas alguns exemplos de sua prodigalidade.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: inherit;"><em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">Não podemos economizar adjetivos, analogias e
perífrases quando homenageamos alguém em vida. A vida de Muniz. Mestre da
tradução intercultural, artesão dos saberes, zelador da </span>communitas</em><em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;"> e da </span>civitas</em><em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">. Desconstruidor das
práticas sócio-antropológicas que foram moduladas na obsessão euro-americana de
conhecer a si à medida que subalternizava mundos. Transgressor das interdisciplinaridades
acadêmicas. Crítico infatigável do racismo estrutural que, para ele, é constituído
e constituidor tanto de nossas cordialidades interpessoais como dos
patrimonialismos institucionais. Muniz Sodré é um decolonial nas humanidades
brasileiras. Sua práxis é a política do afeto: “o vazio do sensível torna
inócuo o conhecimento da evidência objetiva e inibe um posicionamento prático-teórico
que possa contornar as taras monocausais”. <o:p></o:p></span></em></span></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: inherit;"><em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">Livre-Docente e Professor Emérito da UFRJ, Doutor
Honoris Causa da UFBA, Pós-Doutor na Paris-Sorbonne, ex-</span></em>presidente
da Biblioteca Nacional, e<em><span style="font-style: normal; mso-bidi-font-style: italic;">scritor latino-americano rigoroso e eloquente. Verdadeiro gingador de brasilianidades.
Virtuoso. Hábil em formalizar em palavras e conceitos as vidas de todos nós que,
sem dinheiro no banco e nem parentes importantes, viemos do interior. Muniz é um
dos teóricos brasileiros mais lidos, difundidos e </span></em>respeitados no
exterior. E seguirá sendo. Intelectual e ativista negro de brio, fala iorubá,
inglês, russo, francês, espanhol, italiano, árabe, alemão. Ser multíplice,
multiplicador. Alquimista do conhecimento. Guardião da ancestralidade. Autodidata
dos impasses da vida. Aprendiz <strong>de Mestre Bimba – o mais ilustre entre
batuqueiros e capoeiristas. Muniz, c</strong>omo seus estimados baianos Jorge
Amado, Dorival Caymmi e Gilberto Gil, também é Obá Xangô do Axé Opô Afonjá, no
culto nagô-ketu do candomblé baiano. E, como cientista social público e
inventivo que é, faz questão de misturar suas vivências a epistemologias plurais
para entender o presente. <em><span style="font-style: normal;"><o:p></o:p></span></em></span></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: inherit;">Em especial, sou simpático de uma reflexão
que ele vem equacionando e que parece ter ganhado força com a experiência do
bolsonarismo no Brasil contemporâneo. Muniz insiste que, como nação, somos uma
fábrica arcaica de<span class="st"> “produção social do ódio”. Isso nos tem feito
reféns daquilo que sempre fomos, porque forjados nos cemitérios do colonialismo:
uma “sociedade incivil”. Ele argumenta que estamos a experimentar, hoje, </span>um
inquietante tropeção no fio transformador da história nacional. A imagem, tão
potente quanto trágica, sugere que não se trata mais da antiga oposição entre civilização
e barbárie, e sim de uma figuração social nova, em que relações humanas geridas
pelas tecnologias de comunicação de massa acirram cada vez mais a criação, a
difusão e o consumo egoístico de informações inautênticas, processo que vem
desestabilizando consensos de representação do mundo – formato da Terra,
história do nazismo, direitos humanos, acúmulo científico, etc. Não há mais ação
comunicativa possível em um cenário em que parte da população brasileira se oferece
a negacionismos, anti-intelectualismos, fundamentalismos e conspiracionismos de
variados graus. O atoledo da ignorância nos asfixia.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: inherit;">Para ele, a farsa desta
contemporaneidade é habitada por uma horda que exibe um desejo pornográfico pelo
caos. São essas as pessoas que vêm alimentando o espectro do fascismo, real e
virtualmente. Ou, como prevê o baiano de São Gonçalo dos Campos, é a entrega a
essa pulsão que alicerça o protofascismo tupiniquim, em que a perseguição do Outro,
inimigo em potencial, irrompe como fratura política, sociopatia e gozo pela
catástrofe. Por si, a desigualdade já dificulta que pessoas privilegiadas vejam
seus Outros como entes merecedores de respeito e consideração. Só que a
desigualdade brasileira, que sempre foi um perverso projeto de nação, além de
impor obstáculos à civilidade, transforma pessoas em “não pessoas”, esvaziando-as
de valores intrínsecos, vertendo corpos e existências em vidas precárias, descartáveis.
Daí a sanha pela ofensa, o fascínio pela violência, a apologia armamentista. Daí
os absurdos regressivos e as defesas crônicas de um estado teocrático-miliciano
que se anuncia como “salvador da pátria”, administrado por “cidadãos de bem”. Daí
a transformação da morte em único horizonte de vida. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-size: 12pt;"><span style="font-family: inherit;">Como
reflete Muniz, não se trata de ideologia capitaneada por um partido político com
o beneplácito do Estado, como o nazifascismo histórico, mas sim do produto do
ressentimento social das elites em relação a uma década de governos de
centro-esquerda, estimulado por uma ordem de fatores que encontra na violência
sua única justificação: a ignorância da história do país, a energia do
descontentamento ante o acúmulo de diversas crises, alterações nos hábitos, corrupções
políticas, versatilização dos estilos e estéticas de vida, sentimento de um
suposto declínio ético e moral, etc. Tanto ontem como hoje, a “situação
fascista” reflete um medo coletivo e manipulável, “paixão política negativa”. Medo
imaginado, abstrato, fantasmagórico. Medo cujo saldo é o ódio. Não viveriam acólitos
e colaboracionistas do presidente perdidos num labirinto assombrado por
inimigos que eles próprios projetaram e, agora, querem eliminar? Como
gramsciano, Sodré nota que “o velho mundo sempre morre, mas o novo tarda para surgir;
e desse claro-escuro emergem os monstros”. Espero que as lições de Muca, nosso
mandingueiro anticolonial que tem vertido suas últimas décadas de vida num
campo de luta contra os monstros do fascismo e num espaço de reconhecimento e
desmantelamento das “inscrições da barbárie no cotidiano”, orientem a todos nós
neste mar de trevas no qual nos encontramos. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: 6.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-size: 12pt;"><span style="font-family: inherit;">Finalizo
meu testemunho intelectual com um trecho do discurso que Muniz proferiu na
Academia de Letras da Bahia, em 31 de outubro de 2019, aqui em Salvador, alguns
meses antes da pandemia nos atingir. Na cerimônia que marcou a sua posse da
cadeira 33, cujo patrono é o poeta abolicionista Castro Alves, sucedendo a Ialorixá
Mãe Stella de Oxóssi, ele disse: “A ancestralidade – folha no chão – vem ensinar
que <em>ética</em> não se resume à codificação de regras de conduta nem a um
ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios
da virtude. O que hoje se vem chamando de crise moral não é a mera
violação de valores e regras instituídos (corrupção, violência institucional,
mutação nos costumes), mas sim o obscurecimento do destino comum, esse destino
a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e
tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar
e conviver, portanto, a tudo o que implique um destino comum prefigurado pela
razão fundadora da comunidade”. Saravá, Muniz! Sigamos vivos, porque a luta
continua... <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt;">
<br /></div>
<div style="margin: 6pt 0cm; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 6.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 6.0pt;">
<em><span style="font-size: 12.0pt; font-style: normal; line-height: 150%; mso-bidi-font-style: italic;"><span style="font-family: inherit;">* </span></span></em><span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: inherit;">Lucas
Amaral de Oliveira é Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFBA.</span><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div>
<em><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 11.0pt; font-style: normal; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;"><br /></span></em></div>
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-21495040973044096702020-05-03T09:03:00.001-07:002020-05-03T09:03:53.930-07:00Para Carolina<div class="separator" style="clear: both; text-align: right;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-IePRM_e9s3Q/Xqzv5BHAX2I/AAAAAAAABm4/Z0G9YFmyNxU48-ELQpzLHyCGtL51eobRgCLcBGAsYHQ/s1600/000816008013.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="480" data-original-width="640" height="300" src="https://1.bp.blogspot.com/-IePRM_e9s3Q/Xqzv5BHAX2I/AAAAAAAABm4/Z0G9YFmyNxU48-ELQpzLHyCGtL51eobRgCLcBGAsYHQ/s400/000816008013.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Arte de Farnese de Andrade</td></tr>
</tbody></table>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Cara Carolina Maria de Jesus, nossa eterna Bitita,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
estou
te escrevendo do ano de 2020, quando um vírus letal tem mostrado para a
humanidade, há muito doente, que ela tem seus pés de barro. Escrevo-te de uma
pequena sala da minha casa, enquanto ouço o barulho de crianças gritando; o
movimento dos carros; o chiado da panela de pressão na casa da vizinha; o
pronunciamento do atual presidente do país nas redes sociais questionando “e
daí?” diante da morte de mais de cinco mil pessoas devido à pandemia causada
pelo vírus; os gritos de uma mulher que parecem vir do outro lado da rua; o
sono leve de meu filho, de três anos, com febre aqui do meu lado devido a uma
garganta inflamada. Vindo das batidas inquietas do meu coração, ouço ainda os
sussurros invisíveis de milhares de Carolinas desesperadas por não saberem o
que darão aos seus filhos para comer no dia de hoje e nos mais sombrios que
ainda virão. Aproximando-se um pouquinho da sua, minha escrita se emaranha aos
burburinhos que tecem o cotidiano desses dias e à urgência de dizê-los, ainda
que seja só para pedir que o vento encontre uma fenda na vozaria por onde possa
levar, à sala de visitas, as palavras de angústia, de indignação, de medo, mas
também de amor, empatia e esperança, que movem o meu escrever. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Desculpe
por introduzir a nossa conversa com alguns assuntos tão tristes. Queria eu
começar esta carta te falando apenas dos sorrisos largos dados, por um breve
tempo, pelo nosso Brasil. Dizer a você que um homem, que já passou fome, o
governou. Sim, querida Bitita, o Brasil foi dirigido por alguém que teve como
professora a fome. É bem verdade que, para conseguir governar, precisou fazer
alianças com o mercado e isso lhe/nos custou muito caro. Em um outro momento te
conto mais sobre isso. Por enquanto, quero que saiba que, como você previu, as
políticas adotadas por esse governo contribuíram para que cada vez mais
brasileiros pudessem comer três vezes por dia sem deixar de comprar sapatos
para as suas filhas. E não parou por aí. Você, que atravessou cidades de Minas
a pé, com as pernas feridas, em busca de um tratamento, certamente ficará feliz
em saber que esse governo também investiu em saúde pública, ainda que não o
suficiente. E tem mais, talvez seja difícil para você acreditar, mas por um
tempo, os pobres puderam viajar de avião, misturando-se aos ricos nos pomposos
aeroportos. Foi dessa forma que os pretos, espalhados pelo vento como folhas
secas, puderam se juntar, ficar mais perto dos seus. Também muitos de nós
puderam abandonar os quartos de despejo e comprar uma casa de alvenaria. Houve
investimento na educação e na pesquisa. As nossas universidades foram ficando
cada vez mais coloridas por pretos, índios, quilombolas, homossexuais,
transexuais. Pessoas que, como você, também compreenderam o poder de
transformação que tem a escrita e, com e por meio dela, têm feito coisas
extraordinárias. Você precisa lê as literaturas inspiradoras que as filhas e
netas de empregadas, de pedreiros e de outras tantas profissões desvalorizadas
estão escrevendo! <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Queria
eu ter começado esta carta te dizendo que o Brasil já foi governado por uma
mulher. Essa é mais difícil de
acreditar, não é? Mas foi. Estou te contando isso por acreditar que a menina
Bitita, que tantas vezes sonhou atravessar o arco-íris para se tornar homem e
assim desfrutar dos privilégios concedidos a esse gênero, ficará feliz em saber
que, apesar de a desigualdade de gênero ainda existir e de a nossa primeira
presidenta ter sido derrubada em meio a discursos extremamente machistas, um
número significativo das mulheres do nosso tempo são, cada vez mais, donas de
si e seguem sendo inspiração para tantas outras, como você foi e ainda é para
muitas de nós. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Ah,
e como eu queria ter começado esta carta te contando que as patroas do seu
tempo encontrariam muita resistência ao tentar fazer as meninas pretas do meu
tempo trabalhar de graça em troca de produtos que pudessem deixar os seus
cabelos escorridos. As amarras de um sistema que te fizeram, e ainda fazem a
muitas de nós, olhar os cabelos no espelho e desejar que eles tivessem nascido
lisos têm sido denunciadas e contestadas por coletivos e por pessoas
inspiradoras. Os nossos crespos e cacheados não querem mais ficar presos.
Volumosos, eles têm entrado nos cinemas, na televisão, na internet, nos
shoppings, nas propagandas, no concurso de Miss Brasil, em todos os lugares. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Infelizmente,
não pude começar nossa conversa por aí. Escolhi que ela se iniciasse em um
espaço-tempo despetalado. Porque assim como a escritora favelada foi rosa
despetalada quando espinhos alcançaram o seu coração também foram aqueles(as)
que, no meu tempo, ousaram não ficar em silêncio ou tentaram mudar a ordem
estabelecida das coisas. Igual a um corpo envelhecendo, também nossos sonhos,
florescidos nos tempos de alegrias contados acima, foram desiludindo,
regredindo, envelhecendo, enrugando, murchando, morrendo. Os espinhos da minha
época talvez não tenham os mesmos nomes que os da sua, mas não duvido que
possuam os mesmos traços genéticos, as mesmas raízes, os mesmos sobrenomes.
Continuam a humilhar a menina faminta que pega uma manga no quintal do vizinho
para saciar a fome e a apertar a mão e dar uns tapinhas nas costas dos que
roubam o país. A menina “ladra” ouviria, com muito medo, que bandido bom é
bandido morto enquanto a amarrariam em um poste ou tatuariam “ladra e vacilona”
em sua testa. A mãe trabalhadora que, sozinha, cria e mantém o sustento dos
filhos, ouviria do vice-presidente que ela é fábrica de elementos desajustados
que afetam o país. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
É
que os filhos dos Moreiras, Pereiras e Oliveiras do seu e do meu tempo,
Carolina, continuam a violentar nossos corpos, nossas forças de trabalho,
nossas identidades. Continuam a tratar bem os industriais e a tratar como
animais os operários. Continuam a cobrar de nós que sejamos submissos, que
abaixemos as vozes, que não façamos o que eles chamam de “mi-mi-mi” ao
menosprezarem as nossas vozes. É que eles, Carolina, não suportaram nos ver nos
infiltrando, para usar aqui uma palavra sua, em universidades; viajando para o
exterior; indo aos mesmos shoppings, teatros, restaurantes e cinemas que eles;
produzindo e vendendo cinema, música, literatura e arte de qualidade; fazendo
pesquisa, tornando-se mestres(as) e doutores(as); saindo do quintal e ocupando
a sala de visitas. Os de agora, como os da sua época, também não pensam nos
nossos filhos. Quando bradam, vestidos de verde-amarelo, abraçados na bandeira
do país ou dançando ao redor de um pato, em um domingo sangrento qualquer, que
o que estão fazendo é pela família, estão falando apenas de suas próprias
famílias, não das nossas. Eles estão, de certa forma, zombando de nosso
sofrimento enquanto perguntam, covardemente: “E daí” se os seus filhos, avós,
netos, pais, mãe, irmãos, irmãs estão morrendo? E daí, Bitita? O que eles têm a
ver com isso, não é? Embora nos sepultem todos os dias, eles não são coveiros.
Para eles basta que sigamos trabalhando, mantendo a engrenagem da economia
funcionado. Quando um é engolido por ela, basta colocar outro no lugar e tudo
segue igual, como se nada tivesse acontecido. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Embora
tenha escolhido este tempo-espaço despetalado para iniciar a nossa conversa,
esta carta não é para dizer que tudo está perdido, Bitita. Recolha a desilusão
e a tristeza que as minhas palavras podem ter trazido. Quando eu digo que
aqueles(as) muitos que fugiam ao vê-la ainda estão por aqui não é para que você
entenda que nada mudou, é para que você compreenda que eles estão tentando nos
silenciar porque a mudança aconteceu. É para que você saiba que, embora não
plena nem por muito tempo, os pretos deste país já conheceram a felicidade e
não vão abdicar dela tão facilmente. É para te dizer que muitas mulheres pretas
do meu tempo, as que, como aconteceu contigo, são tolhidas pelo preconceito e o
racismo, estão escrevendo, estão ocupando espaços socialmente privilegiados,
estão levando outras consigo, não vão voltar atrás. É para que entenda que os
pretos do meu tempo viram o sol, sabem de sua força, e que, embora estejam
murchando nestes dias de escuridão, não vão se deixar ser sobreterrados. É para
falar a você que, usando aqui as palavras de Conceição Evaristo, uma mulher
preta que se inspira na sua escrita, “eles escolheram nos matar, mas nós
escolhemos não morrer”. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Há
um poema seu no qual você diz “quantas coisas eu quis fazer, fui tolhida pelo
preconceito. Se eu extinguir, quero renascer num país em que predomina o preto.
Adeus! Adeus, eu vou partir! Morrer! E deixo esses versos ao meu país. Se é que
temos o direito de renascer, quero um lugar onde o preto é feliz”. É partindo
dele que te pergunto, Bitita: e daí que eles dizem que não podemos renascer? E
daí que eles não querem que os pretos sejam felizes? E daí que eles nos vejam
como estatísticas e não seres humanos? E daí que eles pensam que nos mataram? E
daí que eles foram assim antes, durante e depois do tempo de sua escrita? E
daí? Apesar de tudo isso, a sua escrita alcançou o meu tempo, significou e
ressignificou-se, floresceu em outras escritas e vidas. Nós somos sementes,
Carolina. Os versos e as palavras que você deixou continuam germinando em
outras vozes e escritas pretas. Nós florescemos umas nas outras, alimentadas
por uma raiz que atravessou oceanos. As suas palavras, sua escrita, o poder dos
teus versos, ecoados por vozes de outras mulheres no meu tempo, seguem a juntar
as folhas espalhadas pelo vento, pela escravidão. Então, sigamos, Bitita!
Enquanto eles menosprezam as nossas vidas ao gritarem “e daí?”, nós,
resistentes como sempre, florescemos e seguimos rompendo os burburinhos lá fora
com a nossa escrita, com a nossa voz. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Com
carinho, <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
Rosângela
Lopes da Silva. <o:p></o:p></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-25261330884668690422020-05-01T13:11:00.002-07:002020-05-01T20:56:02.378-07:00A grande insônia de Macondo<div style="text-align: right;">
Renata Queiroz Dutra</div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-Xv_NC_H0REw/XqyB-4vSCHI/AAAAAAAABms/eEWFZfXEL1E-cDonf7KgsupDPkz_WvSUACLcBGAsYHQ/s1600/images.jpeg.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="658" data-original-width="466" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-Xv_NC_H0REw/XqyB-4vSCHI/AAAAAAAABms/eEWFZfXEL1E-cDonf7KgsupDPkz_WvSUACLcBGAsYHQ/s400/images.jpeg.jpg" width="281" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Arte de Dragan Bibin</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Estar em quarentena não
apenas nos impõe restrições, mas também pequenos alentos: o meu foi reler Cem
anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Sempre costumo achar muitas
repostas e analogias na narrativa fantástica de Márquez. Dessa vez, me chamou
atenção que Macondo também foi acometida por uma epidemia altamente contagiosa,
cujo principal sintoma era colocar os seus habitantes permanentemente
despertos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Diferente das insônias
comuns, a insônia de Macondo não deixava esgotados seus habitantes; pelo
contrário, ficavam cada vez mais dispostos e produtivos. Entretanto, não dormir
os fazia, aos poucos, esquecer. Das palavras, dos sentidos. Então começaram a
usar a astuta estratégia de etiquetar as coisas, para que não esquecessem seus
nomes. Mas em pouco tempo já não bastava etiquetar os objetos com os nomes,
porque logo em seguida se esqueciam de sua utilidade, daí as etiquetas precisavam
crescer, para indicar o nome e a função de cada coisa. Por sorte, a insônia
dava a eles o tempo necessário para produzir tais defesas contra a perda da
memória. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">No Brasil hoje
padecemos de duas doenças igualmente contagiosas: a pandemia do Covid-19, que
assola o mundo e aqui caminha aceleradamente em razão do nosso desgoverno, e
uma outra epidemia, cujo nome desconheço, mas que também é marcada pelo
esquecimento. Assim como em Macondo, esse esquecimento envolve objetos e suas
funções. Por exemplo, temos a sorte de ter nas nossas constituições impressas
um título estampado na capa, o que não nos assegura que lembremos para que
serve uma constituição ou então que soe inadmissível que o presidente se
considere a constituição. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Também temos tido
dificuldades com palavras com sentidos e possibilidades de uso múltiplos, que
demandam não apenas o esforço de lê-las, mas também de interpretá-las (às vezes
por mais que 20 páginas): decoro, impeachment, crime de responsabilidade,
impessoalidade, estado de direito, dignidade, democracia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Outros esquecimentos
podem alcançar comportamentos, formas de agir diante da dor, da morte, da
tragédia, por exemplo. Formas de agir diante de um crime televisionado em rede
nacional igualmente. As regras de conduta parecem mais difíceis de serem
lembradas: diante do desconcerto da reação indevida por aquele que esqueceu, às
vezes sobrevêm risos, mais inadequados ainda: tipo, um sujeito faz piada com a
morte e o outro gargalha, constrangedoramente. É muito esquecimento de uma
única vez. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O esquecimento alcança
até atitudes supostamente inatas ou instintivas, de autopreservação, como
evitar a morte, não se aglomerar em meio a uma pandemia quando se pertence ao
grupo de risco e o vírus é transmissível pelo ar. O sujeito esquece que é
mortal, esquece a advertência sanitária, esquece porque a advertência sanitária
advinda de cientistas deve ser creditada, esquece a diferença entre a ciência e
a opinião de um imbecil. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">O esquecimento atinge
significados profundos em uma dimensão coletiva: leva a esquecer a história e
suas infinitas possibilidades de repetição. É tanto esquecimento, como sintoma
e como norma, que até foi vetada integralmente a lei que reconhecia a profissão
de historiador. Justo quando vivemos um momento histórico de grandes proporções,
somos convidados, patologicamente, a esquecer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Em Macondo a epidemia
acabou quando o velho cigano Melquíades chegou ao povoado com uma poção que curou
a todos da insônia. Na sutileza da narrativa de García Márquez, ao voltar a
dormir (e a sonhar) os habitantes de Macondo também voltam a lembrar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;">Se tivesse a sorte de
ser uma Buendía e, assim, poder ver o velho Melquíades, pediria umas 30 milhões
de doses dessa poção. E pediria – sem querer abusar, mas aproveitando a
oportunidade – um elixir que trouxesse aos doentes daqui um pouco de vergonha por
terem participado da gênese dessa epidemia, por ação ou omissão, ou por
continuarem participando. Pediria também algum antídoto contra a ganância dos
que persistem vendo queda dos lucros enquanto empilhamos corpos e que, fingindo
esquecer das vidas dos outros, assumem o risco de perdê-las para que o comércio
reabra. Pediria, sobretudo, uma pílula contra indiferença, que não permitisse nem
ao pior dos brasileiros, diante da confirmação devastadora de 5.000 mortes,
responder, em rede nacional: “e daí?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "bookman old style" , serif; line-height: 107%;"><span style="font-size: x-small;">*Renata Dutra é professora de Direito do Trabalho na UnB.</span></span></div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-44666578825542040362020-04-01T05:00:00.000-07:002020-04-01T11:55:45.625-07:00 Literatura numa hora dessas?<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<b><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"> </span></o:p></span></b><b style="text-align: right;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="font-size: 12pt;">Bruna
Kalil Othero</span><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/Literatura%20numa%20hora%20dessas.docx#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><sup><b><sup><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: xx-small;">[1]</span></span></sup></b></sup></a></span></span></b></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br /></span></o:p></span></b></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br /></span></o:p></span></b></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-fEqRKzibiIM/XoSgQOWfeAI/AAAAAAAABmE/1wt5ROLF1D47PsUojGlIT-PE6Kjatb6iwCLcBGAsYHQ/s1600/1%2Bbruna%2Bhomem%2Bcom%2Bdrummond.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="750" data-original-width="572" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-fEqRKzibiIM/XoSgQOWfeAI/AAAAAAAABmE/1wt5ROLF1D47PsUojGlIT-PE6Kjatb6iwCLcBGAsYHQ/s400/1%2Bbruna%2Bhomem%2Bcom%2Bdrummond.jpg" width="305" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i style="font-size: medium; text-indent: 48px;"><span style="font-size: 10pt; line-height: 15.3333px;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Homem chorando no colo de Carlos Drummond de Andrade. Foto: divulgação.</span></span></i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><!--[if gte vml 1]><v:shapetype
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<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Há algumas noites, sonhei que
uma pessoa muito querida negava que meu trabalho – literatura e arte – tivesse
alguma utilidade ou função no mundo. Desesperada, passei o sonho todo tentando
convencê-la do valor inestimável da arte para a humanidade. Mais que uma forma
do inconsciente me mostrar as minhas preocupações, o sonho me pareceu uma
metáfora para o Brasil hoje, essa ficção distópica na qual falamos obviedades a
quem se recusa a ouvir pela racionalidade. Em tempos de crise, as preocupações
da sociedade recaem em assuntos mais “essenciais”, e essa curadoria,
frequentemente, não inclui a arte e a cultura. É comum que nós, artistas – hoje
quase criminalizados socialmente, acusados de viver na “mamata” como
“vagabundos” – ouçamos: arte numa hora dessas? No entanto, a produção artística
e cultural é um dos pilares imprescindíveis para a vida humana. Este ensaio,
portanto, pretende explorar os argumentos que usei no meu sonho, de forma a
expandi-los e desenvolvê-los.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Para estruturar esses
argumentos, me inspiro em Italo Calvino, que apresentou suas quatorze razões
para ler os clássicos, e trago treze motivos pelos quais a literatura, a arte e
a cultura são vitais para a humanidade existir e continuar respirando. Nesse
contexto, a palavra que utilizarei para me referir ao assunto será
“literatura”, como representante de toda e qualquer produção ficcional de um
povo, aproveitando sua definição dada por Antonio Candido, no célebre ensaio “O
direito à literatura”, que será constantemente citado:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 144.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Chamarei de literatura, da
maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou
dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura,
desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 144.0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>“Vista
deste modo”, continua Candido, “a literatura aparece claramente como
manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não
há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em
contato com alguma espécie de fabulação.” A partir dessa consideração belíssima
de um dos nossos mais poderosos ensaístas, passo a trazer alguns motivos pelos
quais a ficção e a cultura são pilares essenciais para a construção do mundo e da
sociedade.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="1" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Em tempos de crise, a ficção nos salva
da vida.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-5875r9-1AEo/XoSgUqkviLI/AAAAAAAABmc/mzQkN6EyrmAVf90MFsf4h4uwKGKLiGVjgCEwYBhgLKs0DAMBZVoAowkOhFbkXzdWs4rMmSAv7r4o36Y8TKgLfNuny7-9hOEG8dla_GbIXy-TcIo59chAjFufUJdAkyUltBjN-nHzv7_Z3AiosQV3pbsdNU3sh4KmWooHxLlzYvCoJOSTdhoGTH1oNSPPFY-a5Juee0G-YheOnFLEK-kn7WHyVQb-50FWN87LHqsy9GyLZjHTHdqknMWwO5Kc7lkd52HUuy6FCShVvXuCWn4d2cporuiIDkokENbH9UVt2lNziLB4-lbJ_V8K3jUVRLfF1GVW_sdUh-oqByChXAxX1yg6DcO3vKdclPUeLM12pg2GRDmt3gYi0egdeqVGVMwayNkO3apSxKVLo1XSbi7iwK9yLdIJcywGs80luPttA9O2bnfPtjKB9srven6RdpAB72WHbQbWY4CzULZtOzLUHrteb8zNMGP11VmCjTgXXsSu0oHvrQS26nZCulzxDPt0r4_HdElZ_XVRbK3KzKk9oWCgvZXF7LFYaAeNy6aGwjZN6x1K1lwcKtfD6j4WRwrSH15khPk5OaSqFxSvf-j768G4bjDAJKcQtRqsKUzu1nHbPX7Jh2P4tigP3j3ncM2anWdcnkR9p8XMVMm8rAJUwysaS9AU/s1600/2%2Bbruna%2Bsoldados%2Bleitores.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="613" data-original-width="660" height="371" src="https://1.bp.blogspot.com/-5875r9-1AEo/XoSgUqkviLI/AAAAAAAABmc/mzQkN6EyrmAVf90MFsf4h4uwKGKLiGVjgCEwYBhgLKs0DAMBZVoAowkOhFbkXzdWs4rMmSAv7r4o36Y8TKgLfNuny7-9hOEG8dla_GbIXy-TcIo59chAjFufUJdAkyUltBjN-nHzv7_Z3AiosQV3pbsdNU3sh4KmWooHxLlzYvCoJOSTdhoGTH1oNSPPFY-a5Juee0G-YheOnFLEK-kn7WHyVQb-50FWN87LHqsy9GyLZjHTHdqknMWwO5Kc7lkd52HUuy6FCShVvXuCWn4d2cporuiIDkokENbH9UVt2lNziLB4-lbJ_V8K3jUVRLfF1GVW_sdUh-oqByChXAxX1yg6DcO3vKdclPUeLM12pg2GRDmt3gYi0egdeqVGVMwayNkO3apSxKVLo1XSbi7iwK9yLdIJcywGs80luPttA9O2bnfPtjKB9srven6RdpAB72WHbQbWY4CzULZtOzLUHrteb8zNMGP11VmCjTgXXsSu0oHvrQS26nZCulzxDPt0r4_HdElZ_XVRbK3KzKk9oWCgvZXF7LFYaAeNy6aGwjZN6x1K1lwcKtfD6j4WRwrSH15khPk5OaSqFxSvf-j768G4bjDAJKcQtRqsKUzu1nHbPX7Jh2P4tigP3j3ncM2anWdcnkR9p8XMVMm8rAJUwysaS9AU/s400/2%2Bbruna%2Bsoldados%2Bleitores.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i style="font-size: medium; text-indent: 48px;"><span style="font-size: 10pt; line-height: 15.3333px;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Livraria móvel com soldados leitores. Foto: divulgação.</span></span></i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br /></span></o:p></span></i></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quando, como sociedade, não
estivemos em crise? Quando não houve injustiças, violência, barbárie? A arte é
luxo em tempos de crise, como andam dizendo? Pelo contrário – é ela quem nos
salva do desespero absoluto. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Grande
Gatsby </i>(1925), de Fitzgerald, por exemplo, se tornou best-seller, entre
outras razões, por ser intensamente lido por soldados nas frentes da Segunda
Guerra Mundial – naquelas páginas, eles encontravam um oásis ficcional, um
respiro em meio a tanto horror. Pessoalmente, só sobrevivi a 2018 porque me
lembrava, constantemente: este é o país de João Gilberto, Conceição Evaristo,
Fernanda Montenegro. Em meio a tanto ódio e aflição, ler obras-primas é o que
nos mantém firmes na vida, restaurando, nos instantes de leitura, nossa
esperança na humanidade – ou nos lembrando que a beleza existe, apesar de tudo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="2" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">A literatura é um exercício de
empatia. </span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A ficção é, entre várias
coisas, a expansão dos horizontes de visão. Entrar em contato com as aventuras
de um personagem é uma maneira de, no momento da leitura, o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">eu</i> se colocar no lugar do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">outro</i>. Ler um livro ou ver um filme é
prazeroso pois nos descolamos de nós mesmos por alguns instantes e temos a
possibilidade de ver o mundo pelos olhos de pessoas diferentes. É uma maneira
de nos fazer reconhecer nossos privilégios e nos ajudar a compreender, afetiva
e emocionalmente, as dores e as sensações dos outros. É o que acontece, por
exemplo, na leitura de Carolina Maria de Jesus no potente <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Quarto de despejo</i> (1960). Mesmo que o leitor, como indivíduo, não
tenha passado fome e não faça ideia dessa sensação desesperadora no seu corpo,
o texto apresenta, nos instantes da leitura atenta, esses sentimentos e essas
reflexões. Assim, quando se fecha o livro, se abre uma nova perspectiva de ver
o mundo e as pessoas ao redor: dificilmente, saímos ilesos de narrativas tão
impactantes. Isso influencia a nossa maneira de se relacionar, de observar as
diversas situações e de nos posicionar politicamente.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome.
A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas
crianças.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Ler um trecho como esse nos
faz contestar absolutamente tudo: a importância vital da comida para o corpo
humano (coisa que quem tem acesso irrestrito à alimentação quase não pensa, já
que está sempre disponível), a ausência de comida como educação social, a
própria definição de política como algo relacionado à empatia, as crianças como
representação máxima da alteridade e da vulnerabilidade, etc. A literatura,
portanto, é uma mudança radical de perspectiva: uma maneira de sair do nosso
próprio corpo pelo exercício constante da empatia.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="3" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Compreender um texto literário é
compreender a linguagem.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A linguagem está relacionada
à comunicação. Quando nos tornamos leitores – de livros, de músicas, de
produções audiovisuais, de ditados populares –, aprendemos a apurar a nossa
capacidade de nos comunicar com o outro. Isso é uma habilidade importantíssima
para a vida em sociedade, seja para arrumar um emprego, para convencer alguém
da nossa opinião ou para nos declararmos ao ser amado. Tudo na vida humana
passa pela linguagem – e dominá-la é tomar as rédeas das nossas relações e da
nossa posição no mundo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="4" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando compreendemos a linguagem,
compreendemos o discurso.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Compreender a linguagem é um
passo importante para compreender os discursos – das pessoas e das
instituições. Assim, aprendemos que o hábito de reclamação de alguém, por
exemplo, faz parte, de forma consciente ou inconsciente, do discurso social
daquela pessoa, sendo um componente da sua personalidade e da sua existência no
mundo. Porém, mais do que em nível individual, essa habilidade é essencial para
entender e criticar as instituições: a família, a mídia, a escola. Dominar a
linguagem é conseguir se desprender da visão limitada dos discursos prontos, e
compreender o que, realmente, significam os símbolos familiares, midiáticos ou
educacionais. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quando entendemos isso,
conseguimos encarar, a certa distância, os discursos mais tradicionais, a
exemplo: 1) para uma mulher ser feliz, é preciso casamento e filhos (discurso
familiar patriarcal); 2) para ser feliz, é preciso ser magro/a e ter o celular
mais avançado (discurso da indústria cultural); 3) para ser validado
intelectualmente, é preciso acertar um número determinado de questões em uma
prova, valorizando mais a quantidade que a qualidade do conhecimento (discurso
da escola e do vestibular). Tudo isso são discursos passados socialmente, e
validados simplesmente pela sua repetição ao longo do tempo. Compreender isso é
também compreender que eles não são verdades absolutas, e ter a consciência de
escolha: posso seguir esse discurso, mas só se eu quiser, não preciso,
necessariamente, tomá-lo como definitivo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="5" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando compreendemos o discurso,
compreendemos a política.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Com o entendimento do poder
dos discursos, o discurso mais importante a ser compreendido é o discurso
político. Entendemos, a princípio, a sua estrutura: uma pessoa em um palanque,
com sua voz amplificada pelo microfone, proferindo crenças e valores –
argumentos – com o objetivo de convencer o povo que a sua visão é a certa.
Analisamos, também, as estratégias argumentativas utilizadas pelos candidatos:
seja o que se veste de “profissões comuns” para se aproximar do povo; seja o
que cria bordões de modo a se fixar melhor na cabeça dos eleitores. Todas essas
táticas fazem parte do grande discurso político, no qual a busca pelo poder é o
motor basal – e é dela que vêm as corrupções e manipulações. Compreender o
discurso político é, logo, uma maneira de nos tornarmos cidadãos mais críticos
e conscientes – e o auge dessa compreensão é, além da capacidade de criticar os
políticos da oposição, conseguir fazer a autocrítica entre os representantes da
sua própria vertente ideológica. Isto é, se distanciar o suficiente para
entender que mesmo o candidato que gostamos também faz uso de estratégias
argumentativas para convencer a massa. Contudo, o entendimento discursivo da
política e dos políticos não é incentivado num país como o Brasil, no qual,
segundo Darcy Ribeiro, a crise na educação não é uma crise, mas um projeto.
Claro: é mais fácil dominar e controlar ignorantes homogêneos, e não uma
população pensante.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="6" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">O poder de registro da literatura é o
que nos salva da morte pela história.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Uma produção escrita ou
gravada não é só uma obra a ser contemplada através dos milênios – os humanos
morrem, seus textos permanecem –, mas também um poderoso registro do passado.
Entrar em contato com produções feitas na ditadura militar, como o quadro <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Herói</i> (1966), de Anna Maria Maiolino,
nos ajuda a compreender, em nível subjetivo, estético e emocional, as
reivindicações e sentimentos daquele momento – informação que falta aos livros
de história, por exemplo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-kY45JMWhfxg/XoSgUWW57VI/AAAAAAAABmc/THvYhcBwhS0FljdrgBXHDeDBXTv0QvZZACEwYBhgLKs0DAMBZVoC9Bh6ZoCiG3AAV-CDHF-bvF9Vd3cU7dth0q52v8QdMNZDS7z8GXtwF9JOZ8FoEC1IOmVhDzMSMS_5Fsh6ERHCvoTFuzNQI43oXfvXTAaUnZfAUzgVIeYX2NiWl2N8_xjmUm6G7A_yDsOxkrQTtNwj0DBkqtTi1p2NR4MoQ9z2dptKUWrVGAgXpbKHp-jC-PXCvOdBf7q5VAYiQ2FBpN6xowhiAHzIgj2IugN4iial4AfcgqsKhadZk6pySrNeUVE8EdGt9T75GuasVrSFnt58CZynZ0jwjL8tMOCROWf7tQ92eoM596eINoad2gMtZsjiJhiWN_TE4oSCqepoORSwTo9c_ZJO0aEGvQL7Afba6PCXVhdtAXaelK6_6aGdFC6lvHIOdeHS1WBWJGFjXZJXOc2YL93j4a0R8CwvdDDMGhZO9xHqkCJC4SB1a4U_YLl93FGBuievnuIzTVTMBPLkoccX9iq9dh2j6F8rCRV5lyE12kU-uzrNnAjNzvbypY663ERfwxyKHaLUykQZ_YUU3gHvR3IBuKOtiSSYNwffs_ElMVFVMe7E84XdmLHqIDcmhUDcI_rDswhe781t0hawU4wWmZ4BFEb8wqceS9AU/s1600/3%2Bbruna%2Bo%2Bheroi.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1324" data-original-width="1024" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-kY45JMWhfxg/XoSgUWW57VI/AAAAAAAABmc/THvYhcBwhS0FljdrgBXHDeDBXTv0QvZZACEwYBhgLKs0DAMBZVoC9Bh6ZoCiG3AAV-CDHF-bvF9Vd3cU7dth0q52v8QdMNZDS7z8GXtwF9JOZ8FoEC1IOmVhDzMSMS_5Fsh6ERHCvoTFuzNQI43oXfvXTAaUnZfAUzgVIeYX2NiWl2N8_xjmUm6G7A_yDsOxkrQTtNwj0DBkqtTi1p2NR4MoQ9z2dptKUWrVGAgXpbKHp-jC-PXCvOdBf7q5VAYiQ2FBpN6xowhiAHzIgj2IugN4iial4AfcgqsKhadZk6pySrNeUVE8EdGt9T75GuasVrSFnt58CZynZ0jwjL8tMOCROWf7tQ92eoM596eINoad2gMtZsjiJhiWN_TE4oSCqepoORSwTo9c_ZJO0aEGvQL7Afba6PCXVhdtAXaelK6_6aGdFC6lvHIOdeHS1WBWJGFjXZJXOc2YL93j4a0R8CwvdDDMGhZO9xHqkCJC4SB1a4U_YLl93FGBuievnuIzTVTMBPLkoccX9iq9dh2j6F8rCRV5lyE12kU-uzrNnAjNzvbypY663ERfwxyKHaLUykQZ_YUU3gHvR3IBuKOtiSSYNwffs_ElMVFVMe7E84XdmLHqIDcmhUDcI_rDswhe781t0hawU4wWmZ4BFEb8wqceS9AU/s400/3%2Bbruna%2Bo%2Bheroi.jpg" width="308" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: medium; text-indent: 48px;"><span style="font-size: 10pt; line-height: 15.3333px;">O Herói</span></i><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: 10pt; line-height: 15.3333px; text-indent: 48px;"> (1966), de Anna Maria Maiolino. Foto: MASP.</span></td></tr>
</tbody></table>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Olhar o passado através da
literatura é uma maneira importantíssima de entender o que veio antes de nós de
forma a evitar erros já feitos e sedimentar melhor as estradas do futuro.
Seguindo esse mesmo pensamento, a literatura também nos possibilita <i style="mso-bidi-font-style: normal;">rever</i> o passado mais criticamente,
buscando entender, por exemplo, absurdos e violências naturalizados em
determinado momento histórico, mas que hoje devem ser repensados. É o que faz
MC Carol na canção “Não foi Cabral”:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Professora me desculpe<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Mas agora vou falar<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Esse ano na escola<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">As coisas vão mudar<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Nada contra ti<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Não me leve a mal<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quem descobriu o Brasil<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Não foi Cabral<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Esse texto poderoso já se
inicia com uma mudança de epistemologia de pensamento: negando a visão
tradicional repassada pelas instituições de ensino, o eu-lírico rejeita o mito
do “descobrimento” do Brasil de modo a revê-lo criticamente.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Pedro Álvares Cabral<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Chegou 22 de abril<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Depois colonizou<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Chamando de Pau-Brasil<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Ninguém trouxe família<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Muito menos filho<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Porque já sabia<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Que ia matar vários índios<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Treze Caravelas<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Trouxe muita morte<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Um milhão de índio<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Morreu de tuberculose<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A revisão histórica e
estética feita aqui, portanto, pretende compreender a formação do Brasil
colonial como um processo violento e eurocêntrico, voltado ao extermínio físico
e cultural dos povos nativos. A metáfora utilizada pela autora traz a caravela
– símbolo das grandes navegações – como o meio pelo qual as doenças europeias
chegaram e devastaram os indígenas brasileiros.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Falando de sofrimento<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Dos tupis e guaranis<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Lembrei do guerreiro<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quilombo Zumbi<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Zumbi dos Palmares<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Vítima de uma emboscada<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Se não fosse a Dandara<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Eu levava chicotada<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 216.0pt; text-align: justify; text-indent: -102.6pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Por fim, o eu-lírico termina
o texto com uma compreensão lúcida e simultânea do ontem e do agora: ao
relembrar a resistência dos povos quilombolas, liderados por Dandara e Zumbi,
conclui que “se não fosse a Dandara / eu levava chicotada”. Esses dois versos,
aparentemente simples, trazem consigo um entendimento muito profundo da
história racista do Brasil, pautada em séculos de pensamento escravocrata,
demonstrando que a situação presente é resultado direto das injustiças e das
lutas do passado. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="7" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">A literatura nos humaniza.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Segundo Candido, há <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">conflito entre a ideia
convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões
oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma
variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem
edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que
chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Assim, a partir da
apresentação do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">bem</i> e do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">mal</i>, a literatura nos coloca frente às
feridas e complexidades humanas, alargando a nossa compreensão da experiência
de estar vivo e viver em sociedade. Ler os romances de Machado de Assis, por
exemplo, nos ensina que o “bem” e o “mal” existem em cada um de nós, e que essa
contradição essencial faz parte da condição humana, é um dos motores que movem
a nossa existência. Machado nos lembra que, mais que as certezas, devemos nos
atentar às dúvidas – afinal, a única certeza absoluta é a morte, e é preciso
conviver com ela. A literatura nos humaniza, portanto, expandindo o nosso
entendimento do que é <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ser humano</i>, por
meio da convivência com personagens – parecidos ou diferentes de nós.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<ol start="8" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">A representação ficcional é importante
para a construção da nossa própria identidade. </span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Representatividade é o fenômeno
de ver-se representado em algum personagem e, através dessa representação
fabulada, constituir e entender melhor a nossa identidade pessoal. Isso
acontece tanto em escala universal como em nível particular: por meio da
literatura, universalmente, primeiro nos entendemos como seres humanos, depois
como o nosso gênero, nossa etnia, nossa nacionalidade. Já de modo particular,
vamos nos constituindo como indivíduos a partir das imagens que recebemos nas
diversas narrativas do cotidiano. Se me for permitido, dou como exemplo uma
anedota pessoal. Quando criança, fiquei alucinada pelo filme <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Branca de Neve e os sete anões</i> (1937),
assistindo-o repetidamente. Hoje entendo que essa fascinação veio, entre outros
fatores, da minha semelhança física com a personagem: uma menina branca de
cabelos pretos curtos e maçãs do rosto vermelhas. Ver <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Branca de Neve</i> me ajudou, na infância, a constituir minha
autoimagem – e, com isso, vieram coisas boas (autopercepção e identificação)
mas também coisas ruins. Afinal, o filme de 1937 propaga valores patriarcais –
é necessário sempre aguardar o príncipe – e isso foi, por muito tempo, uma
crença que levei para a minha vida e meus relacionamentos, tornando-me uma moça
que acreditava ser obrigatório esperar a iniciativa dos homens em vez de correr
atrás dos próprios desejos. Claro, isso não aconteceu de forma consciente, além
de contar com inúmeros fatores externos, como os constantes discursos machistas
propagados pelas instituições sociais. Mas esse pensamento só mudou, também, devido
à literatura: passei a refletir melhor sobre o assunto após ter contato com
outros textos, filmes, músicas, que me mostraram outras narrativas e
possibilidades de existir no mundo como mulher.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br /></span></o:p></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-9EhPL-mqSPk/XoSgUZEtvFI/AAAAAAAABmY/p3lbb-Uvlz48jDYqgmozSqkA4jH28CA5ACEwYBhgLKs0DAMBZVoCocvMLDYi0AeLPmyrbiooRBdbKCJkZyYCZEnnkWyhIFv8GCG2jDbiXo5-yS9eHaXpelS6eShzeIlV__SLuUdJIyGzG_Vr2K6zmBzbc-rTEbus_LifT3-ppNim1II6-A6UkvikB7qLXqT05kL8ul8pnP4lXD6jFpDuuz3n8H52sx5A-3YBItxEDLvLgcsy3PgjV9cyc22jaKVSPwTaZPsHEc9PDOR_TONcGdmt5pOkNc8Ot--hlEnfixtsreHLm1rndb_bgcusb7KsErbHcD2LBjOW6_EZE1o_v0kLfXJbEudPF7X-VQi2C528BfW5HpDBdJZLCb9D15hHZbPt3Swzs77IBBYHnBswiDMnvo4bCtNLF3G0rzEoPomO-d1SoneiuxQUBrtpc3Z6nIZ5Cn-h--v88wLThzjwD-YOL6dZFsYaldezA3PztS7ym-P_gxOkoaKGORAqU6EGmDseqncy5aLQhGoP9f8gwnmw8xhYupfldv2kOfiQmKpLlK2LuxXTAJm8zRFTJEEtoxrNC6N71IhVIXosla-UKQ_q9MM7ByI0W8s8m4ZsBY7H60IZo9pksYwyElB-i_48ceJnCXmLzvLBYZQYMfkgw78eS9AU/s1600/4%2Bbruna%2Bbranca%2Bde%2Bneve1997.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="765" data-original-width="1168" height="261" src="https://1.bp.blogspot.com/-9EhPL-mqSPk/XoSgUZEtvFI/AAAAAAAABmY/p3lbb-Uvlz48jDYqgmozSqkA4jH28CA5ACEwYBhgLKs0DAMBZVoCocvMLDYi0AeLPmyrbiooRBdbKCJkZyYCZEnnkWyhIFv8GCG2jDbiXo5-yS9eHaXpelS6eShzeIlV__SLuUdJIyGzG_Vr2K6zmBzbc-rTEbus_LifT3-ppNim1II6-A6UkvikB7qLXqT05kL8ul8pnP4lXD6jFpDuuz3n8H52sx5A-3YBItxEDLvLgcsy3PgjV9cyc22jaKVSPwTaZPsHEc9PDOR_TONcGdmt5pOkNc8Ot--hlEnfixtsreHLm1rndb_bgcusb7KsErbHcD2LBjOW6_EZE1o_v0kLfXJbEudPF7X-VQi2C528BfW5HpDBdJZLCb9D15hHZbPt3Swzs77IBBYHnBswiDMnvo4bCtNLF3G0rzEoPomO-d1SoneiuxQUBrtpc3Z6nIZ5Cn-h--v88wLThzjwD-YOL6dZFsYaldezA3PztS7ym-P_gxOkoaKGORAqU6EGmDseqncy5aLQhGoP9f8gwnmw8xhYupfldv2kOfiQmKpLlK2LuxXTAJm8zRFTJEEtoxrNC6N71IhVIXosla-UKQ_q9MM7ByI0W8s8m4ZsBY7H60IZo9pksYwyElB-i_48ceJnCXmLzvLBYZQYMfkgw78eS9AU/s400/4%2Bbruna%2Bbranca%2Bde%2Bneve1997.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i style="font-size: medium; text-indent: 48px;"><span style="font-size: 10pt; line-height: 15.3333px;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Uma pequena Bruna no seu aniversário de 2 anos. Foto: acervo pessoal.</span></span></i></td></tr>
</tbody></table>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<ol start="9" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">A literatura é um exercício constante
de sensibilidade e de escuta.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Carlos Drummond de Andrade
começa o conto “Flor, telefone, moça” (em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contos
de Aprendiz</i>) assim: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Não, não é conto.
Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai
passando.<o:p></o:p></i></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Essa é uma das definições
mais precisas (e despretensiosas) do exercício ficcional. Ouvir o outro, estar
sensível às dores e delícias do outro, e convocá-lo, também, à escuta. Hilda
Hilst explica, no primeiro texto da série “Dez chamamentos ao amigo”:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Se te pareço noturna e imperfeita<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Olha-me de novo.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Porque esta noite<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">E era como se a água <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Desejasse <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Escapar de sua casa que é o rio <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">E deslizando apenas, nem tocar a margem. <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Te olhei. E há tanto tempo <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Entendo que sou terra. Há tanto tempo <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Espero<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Que o teu corpo de água mais fraterno <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Olha-me de novo. Com menos altivez.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">E mais atento.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="font-size: 12pt;"> Este
poema, um dos mais belos escritos em língua portuguesa, fala do jogo amoroso
entre amantes, lembrando no seu título as cantigas de amigo medievais</span><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/Literatura%20numa%20hora%20dessas.docx#_ftn2" name="_ftnref2" title=""><sup><!--[if !supportFootnotes]--><sup><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: xx-small;">[2]</span></span></sup><!--[endif]--></sup></a><span style="font-size: 12pt;">,
mas outra interpretação possível é que seja um poema sobre a própria
literatura. Há, na série, um chamamento constante a esse amigo, que pode se
referir, além da pessoa amada, a nós, os leitores. Por ser o primeiro que abre
a obra </span><i style="font-size: 12pt;">Júbilo, memória, noviciado da
paixão</i><span style="font-size: 12pt;"> (1974), é um texto que também diz sobre o próprio livro. Nessa
leitura, o eu-lírico/a poeta insiste para que a olhemos com dedicação, embora
ela pareça noturna e imperfeita, embora tenhamos diferenças essenciais: terra </span><i style="font-size: 12pt;">versus</i><span style="font-size: 12pt;"> água, eu </span><i style="font-size: 12pt;">versus</i><span style="font-size: 12pt;"> outro, pastor </span><i style="font-size: 12pt;">versus</i><span style="font-size: 12pt;">
nauta. </span><i style="font-size: 12pt;">Olhei-me a mim como se tu me
olhasses</i><span style="font-size: 12pt;">, eis aí outra definição precisa da ficção: sair de si,
experimentar o olhar do outro para ver o mundo – e a si mesmo. Propondo a troca
de perspectiva entre o </span><i style="font-size: 12pt;">eu</i><span style="font-size: 12pt;"> e o </span><i style="font-size: 12pt;">outro</i><span style="font-size: 12pt;">, este poema propõe também um olhar
atento ao próprio livro, à própria poesia; não à toa, circular, termina
repetindo o clamor inicial com mais intensidade: </span><i style="font-size: 12pt;">Olha-me de novo. Com menos altivez. / E mais atento</i><span style="font-size: 12pt;">. Não
compreendeu este poema, este livro, na primeira leitura? Sem problemas. Leia de
novo. Com menos altivez – saindo de si, deixando o </span><i style="font-size: 12pt;">eu</i><span style="font-size: 12pt;"> um pouco de lado – e mais atenção. Hilda Hilst nos lembra que
ler poesia é reler: e ouvir.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="10" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Precisamos dos poetas para dar
coerência aos sonhos OU a literatura é o oposto de solidão</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">.<o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Essa primeira frase é dita
por um personagem de Pirandello na peça <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os
Gigantes da Montanha</i>, que assisti em montagem do Grupo Galpão e Gabriel
Villela, em 2013. Desde então, guardei-a fundo no peito: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">precisamos dos poetas para dar coerência aos sonhos</i>. A literatura,
essa sala imensamente povoada, nos dá uma maior compreensão sobre nós mesmos,
nossos desejos, nossos sonhos. Se não consigo organizar em linguagem o que
sinto, algum artista já fez isso antes. A arte nos dá uma noção de pertencimento,
um alívio de fazer parte da raça humana, da nação brasileira, de determinado
gênero ou etnia, etc. Ler é fugir da solidão. Manuel Bandeira, no “Poemeto
Erótico”, nos ajuda a fazer declarações a quem amamos pois descreve, pela
organização concisa do sentimento no ritmo da redondilha maior (sete sílabas
poéticas), o desejo por uma única pessoa:</span><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></i></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Teu corpo claro e perfeito,<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">– Teu corpo de maravilha,<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quero possuí-lo no leito<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Estreito da redondilha…<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">[...]<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A todo o momento o vejo... <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Teu corpo... a única ilha <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">No oceano do meu desejo... <o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Da mesma forma, a música
“Largado às Traças”, composição de Pancadinha, André Vox e Victor Hugo, cantada
por Zé Neto e Cristiano, expressa a saudade que sentimos da pessoa amada por
meio de versos alexandrinos (com doze sílabas poéticas):<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Afogando a saudade num querosene<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Vou beijando esse copo, abraçando as garrafas<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Solidão é companheira nesse risca faca<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">[...]<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A falta de você bebida não ameniza<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Tô tentando apagar fogo com gasolina<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quem nos explica porque isso
é importante é, de novo, Antonio Candido, quando comenta alguns versos de Tomás
Antônio Gonzaga:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">[...] na experiência de cada
um de nós esses sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e
não têm consistência que os torne exemplares. Exprimindo-os no enquadramento de
um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez sílabas [no caso de
Gonzaga], explorando certas sonoridades, combinando as palavras com perícia, o
poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, que se põe
acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações
amorosas deste tipo. [...] [Os recursos rítmicos e sonoros] criaram uma ordem
definida que serve de padrão para todos e, deste modo, a todos humaniza, isto
é, permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o da forma
construída, que assegura a generalidade e permanência.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Ou seja, quando o eu-lírico
de Bandeira afirma querer possuir o ser amado no <i style="mso-bidi-font-style: normal;">leito / estreito da redondilha</i>, faz uma autoreferência à estrutura
rítmica do poema (redondilha maior), abrangendo, ao mesmo tempo, o corpo do
texto (de forma metalinguística) e o corpo sexual (como declaração amorosa).
Ele resume o sentimento universal do tesão criando a imagem do desejo como um
oceano, e do corpo amado como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">a única
ilha</i> presente nesse vasto espaço. De maneira similar, os versos de “Largado
às Traças” trazem, organizados em alexandrinos, a metáfora do álcool, primeiro
como entorpecente para esquecer as desventuras, depois como o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">querosene</i> e a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">gasolina</i> que inflamam, num típico paradoxo amoroso (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">tô tentando apagar fogo com gasolina</i>), a
ardência da saudade e do desejo. Nesse texto, a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">solidão é companheira</i> – e na literatura, também. O artista organiza
em linguagem os nossos sentimentos, nossas emoções. E, por causa disso, nos sentimos
menos sozinhos.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<ol start="11" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Enquanto vive um poeta, o homem está
vivo. </span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="margin-left: 36.0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Ezra Pound, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ABC da literatura</i>, afirma que o poeta é
a antena da raça, numa referência aos órgãos sensitivos dos insetos,
responsáveis pelo seu sistema sensorial. A metáfora dá a entender que os poetas
são capazes de sentir por toda a raça humana e expressar esse sentimento
através da linguagem. Hilda Hilst, em um poema da série “Poemas aos homens do
nosso tempo”, também em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Júbilo, memória,
noviciado da paixão</i>, resume a importância do artista para que a humanidade
exista:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Tudo vive em mim. Tudo se entranha<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Na minha tumultuada vida. E porisso<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Não te enganas, homem, meu irmão,<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Quando dizes na noite que só a mim me vejo.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">O olhar aguado, todos eles em mim,<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Porque o poeta é irmão do escondido das gentes<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Descobre além da aparência, é antes de tudo<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Fala do seu quarto, não fala do palanque,<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Não está no comício, não deseja riqueza<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Não barganha, sabe que o ouro é sangue<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Tem os olhos no espírito do homem<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">No possível infinito. Sabe de cada um<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A própria fome. E porque é assim, eu te peço:<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">O homem está vivo.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify; text-indent: 113.35pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">O eu-lírico desse poema,
identificado como poeta, diz que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">tudo
vive em mim</i>, ou seja, seu <i style="mso-bidi-font-style: normal;">eu</i> não
é individual, mas coletivo: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Vendo-me a
mim, a ti. E a esses que passam / Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza, /
O olhar aguado, todos eles em mim</i>. Assim como a antena da raça de Pound, o
poeta de Hilst não é só um sujeito, mas carrega na sua subjetividade as
sensações universais de cada ser humano, sabendo <i style="mso-bidi-font-style: normal;">de cada um / A própria fome</i>. Justamente porque <i style="mso-bidi-font-style: normal;">o poeta é irmão do escondido das gentes</i>, está sempre ao lado do
oprimido e nunca do opressor, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">é antes de
tudo / Livre, e porisso conhece</i>. A liberdade, oposto essencial da censura,
é condição essencial para a criação literária: é preciso ser livre para
conhecer a experiência humana por completo. E a fala do poeta não é generalista
no palanque, como a dos políticos, mas íntima e intensa – ele <i style="mso-bidi-font-style: normal;">fala do seu quarto</i>, com <i style="mso-bidi-font-style: normal;">os olhos no espírito do homem</i>. E o que o
poeta pede em troca de tudo isso? Hilst repete aqui seu famoso chamamento: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Escuta-me. Olha-me.</i> É só isso o que a
literatura deseja: uma escuta profunda, feita com atenção e afeto. Pois
enquanto respirar um poeta, um artista, a humanidade continuará vivendo,
pulsando no seu peito, no seu texto, resistindo ao esquecimento da história. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-left: 36.0pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="12" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">A literatura é uma forma de amor.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span></span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Em 1998, quando foi perguntada pelos
Cadernos de Literatura Brasileira se a literatura melhora as pessoas, Lygia
Fagundes Telles respondeu:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Pode melhorar, sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode
estancar a loucura através do sonho. Eu tenho um impulso, que talvez seja um
impulso cristão, pelo próximo. Eu tenho vontade de servir ao próximo,
verdadeiramente. E a literatura me proporciona isso. E o que eu faço, acredito,
com o máximo da competência que me é possível e com amor, com paixão, acaba
chegando, de algum modo, no outro. Nunca vou me esquecer de um jovem que ligou
pra mim, isso na década de 70, dizendo que estava lendo meus livros e, por
causa deles, não queria mais se matar. Eu comecei a chorar no telefone,
perguntei o que ele tinha lido para pensar assim, em que texto ele sentiu que
não queria mais morrer, e tal, eu estava muito nervosa, e o rapaz, muito
emocionado também, respondeu que não sabia, só sabia que não queria mais se
matar. Eu perguntei: "O que é que eu posso fazer por você?" Ele
respondeu: "A sra. já fez". E desligou o telefone. Nunca mais ligou,
mas eu tenho certeza que ele está por aí, em algum lugar. Esse episódio me
comove até hoje. Eu fico relendo às vezes meus textos, procurando, procurando,
qual a palavra, meu Deus, qual a palavra que foi capaz daquilo? Nunca vou
saber. Mas essa certeza de que posso servir ao próximo, essa esperança, não vai
desaparecer enquanto eu for viva. É uma forma de amor. Acho que é isso. No
fundo, a literatura é uma forma de amor.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span></span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não é preciso dizer mais.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<ol start="13" style="margin-top: 0cm;" type="1">
<li class="MsoNormal" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;">Pra que serve a literatura? Não serve
pra nada.</span></i><span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></span></li>
</ol>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Por
fim, o último motivo é: para nada. Sem literatura vamos morrer, como morremos
sem oxigênio, sem comida? Não. Mas sem ela morremos de outras formas. Leminski
resume:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A poesia é o inutensílio. A única razão de ser da poesia é que
ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de
justificativa. Porque elas são a própria razão de ser da vida. Querer que a
poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é
a mesma coisa que querer que o orgasmo tenha um porquê, que a amizade e o afeto
tenham um porquê. A poesia faz parte daquelas coisas que não precisam de um
porquê.<o:p></o:p></span></span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>A
literatura é tão poderosa justamente porque a sua essencialidade não é
utilitarista. Ela não serve a nenhum fim específico, e por isso serve a todos
os fins. Ela não pactua com nada, não se alia a nada, e também não precisa de
nada. Um texto que está no coração de um leitor, no corpo de um performer, na
parede de algum grafiteiro, não precisa do livro para existir. Para que serve a
literatura? Ela não serve a nada, a ninguém. É o oposto absoluto de servidão.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Para encerrar, retomo Italo
Calvino, evocado no início desse ensaio. Assim ele termina a introdução de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Por que ler os clássicos:<o:p></o:p></i></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<span style="font-size: 10pt;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A única razão que se pode
apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se
alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran [...]:
"Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com
a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária
antes de morrer' " . <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-left: 113.35pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Falando
com Calvino e expandindo para além dos clássicos, ler é melhor do que não ler.
Ouvir uma música é melhor que não ouvir. Assistir a um filme, uma novela, uma
série, é melhor do que não assistir. Para quê? Para ler, ouvir e assistir esses
textos – ter esse prazer – antes de morrer. Simples assim.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">A literatura, a arte, a
cultura, são o motor da existência humana. Sem elas, não existimos. Se
expulsarem os poetas da república, como queria Platão, não haverá mais
república, país, nação. Não haverá nada. Sem a arte e a literatura não somos
seres humanos: somos uma massa orgânica que nasce e morre. Não há “hora”,
portanto, para a literatura. A sua hora é ontem, hoje, agora: sempre.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="mso-element: footnote-list;">
<!--[if !supportFootnotes]--><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><br clear="all" />
</span><br />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<br />
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/Literatura%20numa%20hora%20dessas.docx#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><sup><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><sup><span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;">[1]</span></sup><!--[endif]--></span></sup></a><span style="font-size: 10pt;"> Escritora, pesquisadora e mestranda na
UFMG.</span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/Literatura%20numa%20hora%20dessas.docx#_ftnref2" name="_ftn2" title=""><sup><sup><span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;">[2]</span></sup></sup></a><span style="font-size: 10pt;"> Textos poéticos comuns na Idade Média nos
quais um eu-lírico feminino declara o seu amor e sua fidelidade ao homem amado.</span></span></div>
</div>
</div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-90975159955907245182019-12-13T20:19:00.000-08:002019-12-13T20:19:39.125-08:00Castanha e Alexandre: dois olhares literários sobre o infantil marginalizado<h3 style="text-align: right;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 11.0pt;">Paula Cruz Pereira</span></h3>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-a0HMPTUxkCE/XfRhsG6SyMI/AAAAAAAABlg/VEBsyFlvAHQneN3xF8LH_ab41RvhQ4sBACLcBGAsYHQ/s1600/foto%2Bde%2Bpedro%2Bsolis.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="600" data-original-width="800" height="300" src="https://1.bp.blogspot.com/-a0HMPTUxkCE/XfRhsG6SyMI/AAAAAAAABlg/VEBsyFlvAHQneN3xF8LH_ab41RvhQ4sBACLcBGAsYHQ/s400/foto%2Bde%2Bpedro%2Bsolis.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Imagem de Pedro Solis</span></td></tr>
</tbody></table>
<h3>
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 11.0pt;"><br /></span></h3>
<div class="WordSection1">
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.1pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Antonio Candido, em “A personagem do
romance”, diz que a ficção possibilita <span style="letter-spacing: -.3pt;">um </span>conhecimento
do outro completamente organizado. Diferentemente da vida real, onde <span style="letter-spacing: -.75pt;">a </span>compreensão de outras pessoas se dá de
forma fatalmente fragmentada e relativa, <span style="letter-spacing: -.8pt;">o </span>personagem
fictício é “inteiramente explicável” (p. 14). As ações e relações que o compõem
constroem uma mensagem deliberada. É interessante pensarmos, então, nas
possibilidades <span style="letter-spacing: -.4pt;">de </span>representação
contidas em um personagem criança. É o caso de Castanha, da HQ <i>Castanha do Pará </i>de Gildalti Jr. (2016)<i>, </i>e Alexandre, de <i>A casa da madrinha</i>, Lygia Bojunga<span style="letter-spacing: .25pt;">
</span>(1978)<i>.<o:p></o:p></i></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.1pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><i><br /></i></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Ambos tratam-se de jovens às
margens da sociedade. Castanha é um menino que vive nas ruas de Belém do Pará.
Após anos sofrendo violência doméstica, a mãe de Castanha assassina seu marido.
Vem a polícia, a mãe desaparece e, desde então, o menino passa os <span style="letter-spacing: -.2pt;">dias </span>rondando o mercado aberto da cidade.
Já Alexandre, aparece viajando sozinho com <span style="letter-spacing: -.45pt;">um
</span>Pavão, no interior do Rio, montando shows para financiar a viagem.
Cansou da vida <span style="letter-spacing: -.3pt;">de </span>ambulante em
Copacabana e saiu em busca da casa de sua madrinha. Nos deslocamentos, relações
e desfechos das narrativas dos dois protagonistas, podemos observar duas
abordagens para a vida da criança marginalizada na literatura. A divergência
está <span style="letter-spacing: -.4pt;">na </span>perspectiva.</span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif;">Na contação de histórias, desde
a Odisséia a </span><i style="font-family: Arial, sans-serif;">Star Wars, </i><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">a “jornada do
herói” tem </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.35pt;">um </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">papel incontestável.
Viagens e deslocamentos são importantes não apenas no enredo </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.25pt;">mas </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">também no desenvolvimento dos
personagens, e os deslocamentos de Castanha e Alexandre constroem a história de
cada um. Mas as diferenças entre a movimentação dos dois geram efeitos variados
nas respectivas narrativas. Em </span><i style="font-family: Arial, sans-serif;">Castanha
do Pará</i><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">, os deslocamentos de Castanha se dão de forma um pouco caótica.
Como a história é narrada a partir da conversa de uma vizinha com um policial,
não há sempre uma cronologia óbvia. O conto inicia com </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.85pt;">o </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">flashback de uma situação de abuso na casa de Castanha. Na
próxima vez que o vemos, está engraxando sapatos na rua, jogando futebol,
depois a família outra vez. Essa confusão temporal gera uma aproximação inicial
da história de Castanha com a realidade, onde nem sempre nos recordamos das
coisas em ordem sequencial. </span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.05pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.05pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif;">A partir daí, nos deparamos com os
deslocamentos de Castanha propriamente ditos. São quase sempre forçados: o
menino dorme no chão, em frente a uma loja, e é enxotado pelo proprietário de
madrugada, na hora de abrir a venda (p. 24). Vemos-no, então vagando </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.15pt;">pelo </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">mercado Ver-o-peso em meio a buzinas
do trânsito e broncas de vendedores diversos, até que em determinado momento,
desmaia sob o sol (p. 39). Acorda ainda no mercado e consegue roubar uma
banana, foge do policial, corta o pé—porque não tem sapatos (p. 52). </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.25pt;">Fica </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">debaixo da chuva, ganha esmola em uma
igreja (p. 69). Assim até a noite. Castanha é empurrado de um lado para o
outro, tendo pouca agência sobre sua própria locomoção. </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.25pt;">Seu </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif;">deslocamento não tem destino. Isso cria uma sensação
bastante incômoda para o leitor, que vai se sentindo também impotente.</span></div>
</div>
<div class="WordSection2">
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.2pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.2pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Os únicos momentos em que a situação é
amenizada são em pequenos delírios, quando Castanha desmaia e também depois em
uma brincadeira na chuva. Aí, sim, ele <span style="letter-spacing: -.15pt;">segura
</span>a taça do campeonato no centro do estádio (p. 41), é o herói da Barbie,
joga com o <span style="letter-spacing: -.15pt;">Pelé, </span>impersona Ayrton
Senna (p. 59). É apenas nessas cenas, também, que <span style="letter-spacing: -.15pt;">estamos </span>completamente na
perspectiva de Castanha, sem a interlocução da vizinha. Damos <span style="letter-spacing: -.15pt;">breves </span>mergulhos na fantasia quando vemos
a história através dos olhos do<span style="letter-spacing: .05pt;"> </span>menino.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.05pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Já Alexandre, de <i>A casa da madrinha</i>, vive em uma grande
fantasia. Ele aparece <span style="letter-spacing: -.3pt;">na </span>cidade onde
conhece Vera do dia para a noite, monta shows com um Pavão que fala—mas não
pensa porque teve seu pensamento entupido numa escola especial—e leva Vera para
<span style="letter-spacing: -.85pt;">a </span>casa da madrinha num cavalo
inventado. <i>A casa da madrinha </i>é uma
história de criança, <span style="letter-spacing: -.25pt;">não </span>apenas <i>para </i>criança, mas também <i>por</i>. Às vezes as falas de Alexandre se
misturam com as <span style="letter-spacing: -.4pt;">do </span>narrador e em meio
a jogos de palavra, situações mirabolantes e comentários completamente diretos,
a sensação é de que é mesmo uma criança contando a<span style="letter-spacing: .05pt;"> </span>história:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 156%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 77.1pt; margin-right: 5.6pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 156%;">A escola pra onde levaram o Pavão se chamava
Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito na
vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta
de trás pra frente. (p. 37)<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.15pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.15pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Nessa história, os mergulhos
breves são os para a realidade. Depois de toda uma história do Pavão na Escola
Osarta, Vera pede que Alexandre conte “a sua vida” para ela, <span style="letter-spacing: -.85pt;">e </span>ele responde, no que parece quase uma só
respiração, “Lá em Copacabana tinha um morro, no morro tinha uma favela, na
favela tinha um barraco, no barraco tinha a minha família” (p. 57). Ela
pergunta se lá é bom, e ele responde que “Não, tirando a vista, o resto todo é
ruim” (p. 58). Mas<span style="letter-spacing: .05pt;"> </span>aí entram<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>no<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>assunto<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>de<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>Augusto,<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>irmão<span style="letter-spacing: 2.25pt;">
</span>de<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>Alexandre,<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>e<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>ele<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>se<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>lembra<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>da </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; text-indent: 0cm;">professora que tinha uma maleta
cheia de pacotinhos coloridos, e das histórias que o </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: -0.2pt; text-indent: 0cm;">irmão</span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; letter-spacing: 2.6pt; text-indent: 0cm;"> </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; text-indent: 0cm;">contava antes de
dormir, e o tom do romance fica leve novamente.</span></div>
</div>
<div class="WordSection3">
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.1pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.1pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">De vez em quando, percebemos paralelos
entre a história sofrida imaginária do <span style="letter-spacing: -.15pt;">Pavão
</span>e a sofrida palpável de Alexandre. A Gata da Capa vira-lata, de vida
difícil, briga por causa de comida e tem que escapar de carro, de ônibus (p.
119). Chega em casa de língua de fora. <span style="letter-spacing: -.55pt;">E </span>Alexandre?
Foi trabalhar arranjando táxi porque sorvete não tava vendendo. Tem que escapar
de carro, de ônibus. “Tinha que escapar de tanta coisa, que chegava em casa de
língua de fora” (p. 89). Mas ainda
assim, esse deslocamento sofrido e obrigado é colocado no <span style="letter-spacing: -.15pt;">mundo </span>da fantasia e dos bichos falantes.
Alexandre, na sua visão da sua história, foi quem quis sair do Rio por vontade
própria: “Resolveu que a caixa de sorvete ia servir de mala, e se <span style="letter-spacing: -.15pt;">mandou </span>mesmo sozinho lá pra casa da
madrinha” (p. 91). Seu deslocamento, diferentemente do <span style="letter-spacing: -.45pt;">de </span>Castanha, tem intenção e rumo. Assim, apesar de a realidade
dos dois meninos não ser <span style="letter-spacing: -.3pt;">tão </span>distinta,
uma soa muito mais alegre do que a outra.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.05pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5.05pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Passando para relações, a
situação familiar dos dois protagonistas também <span style="letter-spacing: -.35pt;">se </span>assemelha. Castanha assiste ao padrasto espancando a mãe,
gritando palavras chulas que <span style="letter-spacing: -.55pt;">o </span>menino
também repete depois. “Te tirei da lama, sua piranha!” grita o homem quando a
mãe tenta defender o filho, “SLAP!” (GIDALTI JR., 11). Castanha vira menino de
rua. Enquanto isso, Alexandre é menino das favelas de Copacabana que saiu da
escola para vender <span style="letter-spacing: -.15pt;">sorvete </span>na praia;
o pai “virou bêbado” (BOJUNGA, 58); o irmão e melhor amigo se casou e foi <span style="letter-spacing: -.3pt;">pra </span>São Paulo. Alexandre abandona a casa e,
pelo que tudo leva a crer, vira também menino de rua, sozinho uma cidade do
interior.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Mas enquanto um menino é visto constantemente
com desgosto e repreensão <span style="letter-spacing: -.2pt;">por </span>todos
que o cercam, o outro tem amigos. A própria vizinha de Castanha, em seu relato
para o policial, diz, “Se a coisa só traz problemas e faz os outros sofrerem… é
melhor que ela não exista!” se referindo ao menino (p. 75). Ele é
constantemente rechaçado, expulso <span style="letter-spacing: -.15pt;">pelos </span>vendedores
do mercado, perseguido por guardas, mandado embora até mesmo da igreja, onde
sua presença incomoda tanto que recebe um dinheiro para ir “fazer um lanchinho”
(p. 69). <span style="letter-spacing: -.45pt;">Já </span>Alexandre, apesar do
desagrado dos pais de Vera—talvez até mesmo por causa desse desagrado—encontra
nela uma grande amiga. São eles dois contra os adultos, contra a “gente grande”
que “tem uma inveja danada de madrinha de gente pequena” (p. 131). Desde o
começo do livro, enquanto todos olham para o Pavão, Vera está curiosa sobre
Alexandre <span style="letter-spacing: -.25pt;">(p. </span>15). Somando<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>isso<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>ao<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>próprio<span style="letter-spacing: 2.25pt;">
</span>Pavão,<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>companheiro<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>de<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>Alexandre,<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>ainda<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>que<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span>no<span style="letter-spacing: 2.25pt;"> </span>plano<span style="letter-spacing: 2.3pt;"> </span><span style="letter-spacing: -.3pt;">da </span></span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; text-indent: 0cm;">fantasia, e a Augusto, o irmão
que antes de se casar, contava histórias e colocou Alexandre na escola,
percebemos que ele recebe atenção o suficiente para sonhar. Castanha, não.</span></div>
</div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 5pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">E isso nos leva aos desfechos. <i>Castanha do Pará </i>encerra com uma cena
de atropelamento, em que segundos antes
do impacto com um ônibus, Castanha cria asas e desaparece pelo céu como um
corvo (p. 75). O policial noticia a vizinha de um corpo não-identificado
encontrado (p. 74). Não fica explícito, mas entendemos que o menino morreu. Em <i>A casa da madrinha</i>, Alexandre e Vera
combinam de trocar correspondência. Abraçam-se forte. E aí Alexandre e o Pavão
“foram sumindo e sumindo” numa dobra do caminho (p. 169). É um final deixado em
aberto, não se sabe para onde Alexandre vai. Mas a melancolia da despedida
ressalta a existência de uma conexão que Castanha, em sua história, não tem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin-right: 4.95pt; text-align: justify;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Observamos, então, dois caminhos
que se pode tomar na representação de crianças em situações, objetivamente,
vulneráveis. Com um deslocamento forçado e fragmentado, ausência de relações
pessoais e desfecho de morte, Gidalti Jr. opta por uma abordagem mais presa à
realidade. Bojunga, por outro lado, utiliza-se da perspectiva infantil para
criar uma história que parte dos mesmos princípios, mas é fantástica e relativamente
alegre: <span style="letter-spacing: -.55pt;">o </span>deslocamento tem destino,
amizades são formadas e o fim é incerto. O ponto de partida dos dois autores é
semelhante, mas as duas trajetórias que dele decorrem não poderiam <span style="letter-spacing: -.15pt;">diferir </span>mais. Como disse Candido, na
ficção, onde tudo se explica, é possível selecionar detalhes para compor uma
narrativa específica com ênfases específicas. Pode-se perceber aí o poder
transformador das histórias. A vida real é mais complexa.<o:p></o:p></span></div>
<div align="left" class="MsoBodyText" style="margin: 0.35pt 0cm 0.0001pt; text-indent: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-left: 5.05pt;">
<b><span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt;">Referências<o:p></o:p></span></b></div>
<div align="left" class="MsoBodyText" style="line-height: 157%; margin: 8pt 7.4pt 0.0001pt 5.05pt; text-indent: 0cm;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">BOJUNGA,
Lygia. <i>A casa da madrinha</i>. 20a ed.
Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2013. CANDIDO, Antonio. A personagem do
romance. In: CANDIDO, Antonio et al. <i>A
personagem de ficção. </i>2a ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. p.
51-80.<o:p></o:p></span></div>
<div align="left" class="MsoBodyText" style="line-height: 13.7pt; text-indent: 0cm;">
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif;">Disponível em </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; text-indent: 0cm;"><https: an="" content="" dido="" do="" edisciplinas.usp.br="" ersonagem="" mod_resource="" ntonio="" pluginfile.php="" romance.pdf="">.</https:></span></div>
<span lang="PT" style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 11.0pt;"><span style="font-size: 12pt;">GIDALTI JR. </span><i style="font-size: 12pt;">Castanha
do Pará</i><span style="font-size: 12pt;">. Pará: Edição do autor, 2016.</span> </span>Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-1795782486190787772019-10-26T00:00:00.000-07:002019-10-26T00:00:04.622-07:00A vida como não deveria ser: neorrealismo em Cidade de Deus.<div align="right" class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: right;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-style: italic; mso-bidi-font-weight: bold;">Regilane Barbosa Maceno<o:p></o:p></span></div>
<h3 style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
</span></h3>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-WUfkhaFYEHw/XbI1DHRPo7I/AAAAAAAABlA/Z3hNBvpFbk0MrYUnL49j4q-DWBRKGjoNwCLcBGAsYHQ/s1600/Imagem%2Bde%2BAnselmo%2BCosta.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="463" data-original-width="596" height="310" src="https://1.bp.blogspot.com/-WUfkhaFYEHw/XbI1DHRPo7I/AAAAAAAABlA/Z3hNBvpFbk0MrYUnL49j4q-DWBRKGjoNwCLcBGAsYHQ/s400/Imagem%2Bde%2BAnselmo%2BCosta.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;">Imagem de Anselmo Costa</span></td></tr>
</tbody></table>
<br />
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt; text-indent: 35.4pt;">O Neorrealismo surge como um movimento literário de
engajamento crítico-social, cujo objetivo passa a ser, analisando as
experiências humanas, expressar os valores da sociedade. Ao recuperar valores
do regionalismo romântico, do Realismo e do Naturalismo do século XIX, os
autores buscam registrar em suas obras os dramas coletivos do Brasil que
apontam para nossa miséria de países subdesenvolvido, submerso no atraso, nas
injustiças.</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">No Brasil, o Neorrealismo é inaugurado a partir de José
Américo de Almeida com o romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A
bagaceira</i>, publicado em 1928. Essa obra fixa a nova tendência que se
anuncia em decorrência, principalmente do descontentamento ao governo ditatorial
de Getúlio Vargas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Seguindo a ideia de representar a realidade brasileira,
Rachel de Queiroz, publica<i style="mso-bidi-font-style: normal;"> O Quinze</i>,
em 1930. Jorge Amado surge com <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O país do
Carnaval</i>, em 1931. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Menino de engenho</i>,
de José Lins do Rêgo em 1932 e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Vidas
Secas,</i> de Graciliano Ramos, em 1938, somam-se ao romance de José Américo de
Almeida e aprofundam o conceito de regionalismo, fazendo-o sair do exotismo
romântico e dos excessos do Naturalismo para uma visão mais críticas da
realidade. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A visita a esses problemas sociais ganha uma conotação
universal e atemporal. Isso porque, o contexto histórico dentro e fora do
Brasil era, em sua maioria, ditatorial. O país vivia o declínio da República
Velha que culminou com a Revolução de 1930. Mas, o sentimento eufórico
provocado pela a Revolução não durou muito, pois logo veio o Golpe de Estado
que instituiu o Estado Novo ou Era Vargas. E muitos dos intelectuais e
escritores que haviam lutado por ideais revolucionários acabaram presos,
vítimas da censura e da perseguição política e, tiveram seus livros proibidos
de circular.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Dentro desse cenário, o romance neorrealista mostra uma
estreita relação com toda essa efervescência política pela qual o Brasil e o
mundo passavam. Corresponde à crença na denúncia e análise dos problemas
sociais do país como possibilidade de iniciar os processos de resolvê-los. O
que para alguns críticos o tornava panfletário, vez que os romancistas, imbuído
do sentimento de missão política, queriam mostrar as tensões que transformavam
ou destruíam os homens enquanto construto social.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Em síntese, nas palavras de Bosi, o Neorrealismo parte do<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">Socialismo,
freudismo, catolicismo existencial: as chaves que serviram para a decifração do
homem em sociedade e sustentaria ideologicamente o romance ‘empenhado’ desses
anos fecundos para a prosa narrativa. [...] difunde-se o gosto da análise
psíquica, da notação moral, já radicada no mal-estar que pesava o mundo de
entre-guerras. (BOSI, 1994, p. 389).</span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span></span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Acompanhando
a trajetória reafirmada pela obra neorrealista da segunda metade do século XX,
alguns autores contemporâneos ainda fazem uso desses mecanismos para retratar
os muitos personagens, atores sociais do painel das injustiças locais,
nacionais e transnacionais da atualidade. Voltando-se para as mazelas urbanas, para
a violência nas periferias, o abandono das forças sociais, os autores criam, de
forma verossímil, personagens cujas dificuldades enfrentadas cotidianamente
personificam a realidade brasileira atual. São personagens abandonados pela a
esperança e pela memória.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade
de Deus</i> é uma fotografia do cotidiano da favela carioca que dá nome ao livro
desde sua formação nos anos de 1960 até os anos pouco depois de 1990. Nesse
romance Paulo Lins engendra a figura do “herói problemático”, em tensão com as
estruturas degradadas vigentes, ou seja, estrutura incapaz de atuar os valores
que prega: liberdade, justiça, igualdade social e de direito (BOSI, 1994). O
autor transfigura a situação de uma comunidade real para o romance e, como
ocorre no livro <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O cortiço</i>, a
comunidade é elevada ao papel de protagonista da história. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>São apresentados os criminosos, os
policiais corruptos, os moradores que servem de escudos para o crime e os
jovens de classe média em busca pela droga, a hipocrisia da sociedade e a
maldade humana. Paulo Lins descreve com riqueza de detalhes, às vezes sórdidos,
como os crimes são praticados, perpetuados e jogados sob o grande “tapete” da
hipocrisia social, representada pela mídia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>A obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade de Deus</i> é homóloga da estrutura social. (Goldmann, 1976).
Tudo é realista, pois o autor sempre morou nessa favela. Assim, o romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade de Deus</i> pode ser chamado de
neorrealista, pois traz consigo características fortes do romantismo, do Realismo
e do Naturalismo, pois o autor parte de fatos reais para compor a trama do
romance, juntamente com suas pesquisas antropológicas e linguísticas que enriquecem
a história e permite apresentar ao leitor uma realidade crua dos
acontecimentos. Para além disso, a obra traz também os traços da “cor local” na
tessitura do texto, isto é, informações sobre espaço, costumes, e comportamento
que permitem ao leitor reconhecer os aspectos típicos, característicos de uma
região específica, aqui, a favela que nomeia a narrativa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Bosi (1994) distribuiu os romances
brasileiros escritos a partir de 1930 do século XX em quatro tendências: o
romance de tensão mínima; o romance de tensão interiorizada; o romance de
tensão crítica e o romance de tensão transfigurada. Dentro dessas tendências, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade de Deus</i> se enquadra no romance de
tensão mínima, pois os personagens não se destacam tanto da paisagem que os
condiciona.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Em sua origem, o personagem
neorrealista é coletivo, ou seja, é um grupo que vive em condições econômicas,
morais e sociais adversas, embora haja um ou outro personagem que se destaque
em relação ao grupo. Na obra em estudo, o personagem Busca-Pé cumpre a tarefa
de ser o mecanismo de acesso à problemática social que o romance quer enfocar.
Ele não sucumbe à realidade que o cerca, apesar dos vários “convites”. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">“Um dia aceitaria um daqueles tantos
convites para assaltar ônibus, padarias, táxi, qualquer porra...</i>” (LINS,
2002, p. 12). <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade de Deus, </i>magotes
de crianças, desde muito cedo, são explorados, os jovens lutam contra o
desemprego e o preconceito traduzido na cor da pele:<i style="mso-bidi-font-style: normal;">“Argumenta com os amigos que o loiro era filho de Deus, o branco Deus
criou, o moreno era filho bastardo e o preto o Diabo cagou.</i>”(idem, p.53).
Ou em virtude da região de origem, como é o caso dos nordestinos da Paraíba e
do Ceará que fugindo da seca migram para a cidade grande em busca de
oportunidade: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">“Todo nordestino, além de
puxa-saco de patrão é alcaguete. Essa raça não vale nada. São capazes de cagar
o que não comeram”</i> (idem, p. 140). São esses personagens que, dividindo
esses espaços hostis, se debatem nesse romance contra o fatalismo do meio
geográfico ou das forças sociais que os comprimem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Mas, contrariando o que se possa
pensar, a personagem neorrealista, ao invés da sua miséria exterior, possui uma
riqueza interior admirável que é a esperança metaforizada pelo sonho. Novamente
o personagem Busca-Pé cumpre a função de transmitir o aceno de uma saída.
Pensava ele, <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">Bem
que as coisas poderiam ser como as professoras afirmavam, pois se tudo corresse
bem, se arranjasse um emprego, logo, logo compraria uma máquina fotográfica e
uma porrada de lentes. Sairia fotografando tudo o que lhe parecesse
interessante. Um dia ganharia um prêmio. (LINS, 2002, p.12).</span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Cabe ao narrador do romance ser o
portador da voz que denuncia. E é através do personagem como Inferninho, um
sonhador tal qual Sinhá Vitória, de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Vidas
Secas, </i>que o narrador revela a impossibilidade de se esquivar, mesmo pelo
sonho, à indiferença social, ao preconceito, ao crime, à morte. O personagem em
questão sonha em fazer o “grande lance”, e constituir família com Berenice,
sair da vida do crime, mas não teve saída. Ele simplesmente<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">Deitou-se
bem devagar, sem sentir os movimentos que fazia, tinha uma prolixa certeza de
que não sentiria a dor das balas, era uma fotografia já amarelada pelo tempo
com aquele sorriso inabalável, aquela esperança de a morte ser realmente um
descanso para quem se viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático
anúncio de guerra. Aquela mudez diante das perguntas de Belzebu e a expressão
de alegria melancólica que se manteve dentro do caixão. (idem, p. 171).</span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Situando a história no contexto da favela, o Lins acaba
apreendendo o cerne das questões mais problemáticas que denuncia, analisando a
origem dos conflitos e dilemas, pois “faz das personagens sínteses resultantes
das ações e reações que se percebe entre elas e o mundo. Já não é o escritor
que domina a personagem e a conduz; simplesmente a vida que o personagem vive é
que a conduz, a ela e ao escritor” (REIS, 1981).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Essa independência da personagem é concretizada também na
linguagem, pois, com o intuito de ancorar-se na verossimilhança, o escritor
neorrealista coloca na boca dos personagens uma linguagem de acordo com seu <i style="mso-bidi-font-style: normal;">status</i> social. Linguagem popular, às
vezes chula, agarrada à oralidade, mas que não ofusca o entendimento do
leitor/interlocutor. “<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Se pintar os homi,
larga o dedo! – avisou Ferroada</i>.” (LINS, 2002 p.162); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">“comia meu cu dizendo que me amava e agora roba meu dinheiro na maior
cara de pau! Filho da puta! – gritava Ana Rubro Negro”</i> (idem, p. 215).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O retrato neorrealista da favela apresentado em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade de Deus</i> mostra que o processo de
socialização traz as marcas do abandono sócio-político ao qual os moradores
estão subjugados: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">“Cidade de Deus não
contava com o incentivo da prefeitura”</i> (idem, p. 81). O sujeito é
violentado diariamente em seus direitos de cidadãos pagadores de altos
impostos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O cidadão é obrigado a conviver diuturnamente com a
violência banal, que se faz presente não só nas armas que ceifam vidas jovens,
mas na maldade humana, incendiada pela ausência do olhar social, como vemos
nesta passagem:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">Tomou
um copo de cachaça, vagarosamente, com um cruel sorriso desenhado no rosto.
[...] Pegou a faca na rapidez do Diabo [...] Colocou o recém-nascido em cima da
mesa. Este, ainda no primeiro momento, agiu como se fosse ganhar colo. Segurou
o bracinho direito com a mão esquerda e foi cortando o antebraço. O neném
revirava-se. Teve de colocar o joelho esquerdo sobre seu tronco. As lágrimas da
criança saiam como se quisessem levar as retinas, num choro sobre-humano [...]
Agia de modo automático. [...] teve dificuldade de atravessar o osso, apanhou o
martelo embaixo da pia da cozinha, com duas marteladas, concluiu a primeira
cena daquele ato. A criança esperneava o tanto que podia, seu choro era um
coração sem jeito e sem Deus para ouvir. Depois não conseguiu chorar alto, sua
única atitude era aquela careta, a vermelhidão querendo soltar dos poros e
aquele sacudir de perninhas. [...] O bebê estrebuchava com aquela morte lenta.
As duas pernas foram cortadas com um pouco mais de trabalho e a ajuda do
martelo. O assassino levou a faca um braço acima da cabeça para descê-la e
dividir aquele coração indefeso. (LINS, 2002, p.68-69). </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; margin-left: 4.0cm; mso-add-space: auto; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Fica evidente a necessidade de se pensar sociologicamente,
ou seja, compreender o contexto que envolve essa comunidade fadada a ocupar um
lugar fora da memória. O rosário de crimes destrinchados ao longo da narrativa,
praticados por todas as instituições sociais como família, o Estado, cuja
incumbência é zelar pela a harmonia e o equilíbrio da sociedade como um todo
mostra quão efêmero e ineficiente têm sido as preocupações com o ser humano. E
os reflexos desse desamparo são reverberados no comportamento dos jovens das “cidades
de Deus” espalhadas Brasil a fora, que são levados a buscar, cobrar na
criminalidade, a tal da sobrevivência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Em linhas gerais, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cidade
de Deus</i> é um romance neorrealista nos moldes de sua gênese, como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Capitães da Areia</i>, de Jorge Amado. É o
retrato de uma realidade em que moleques traquinos, nem tão meninos, com a
inocência perdida nas esquinas das favelas, carentes de afetos, de instrução
transfiguram o cenário social contemporâneo. É a certeza de que nenhuma das
camadas sociais está isenta de participação, para o bem ou para o mal.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 18.0pt; tab-stops: 42.55pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 18.0pt; tab-stops: 42.55pt; text-align: justify;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 14.0pt;"><o:p><br /></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 18.0pt; tab-stops: 42.55pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;"><b>Referências </b><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">BOSI, Alfredo. <i>História concisa da literatura brasileira.</i>
São Paulo: Cutrix, 1994.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">GOLDMANN, Lucien. <i>Sociologia do romance</i><i style="mso-bidi-font-style: normal;">; </i>tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1976.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">LINS, Paulo. <i>Cidade de Deus</i>: romance. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;">REIS, Carlos. “Evolução
literária”. In<i> Textos Teóricos do
Neo-Realismo Português</i>. Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicações,1981.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-35919171643243980422019-09-28T06:13:00.000-07:002019-09-28T06:13:31.420-07:00Literatura e princípios morais<h3>
</h3>
<h1>
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; font-weight: normal; line-height: 107%;">(Em
memória ao professor<span style="background: white;"> Wilton Barroso Filho)<o:p></o:p></span></span></h1>
<h3 style="text-align: right;">
<span style="font-family: "calibri" , sans-serif; line-height: 107%;"><span style="font-size: large;">Uirá Rauan</span></span></h3>
<div>
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-i2sJ_5W6qic/XY9cAPdRX1I/AAAAAAAABk0/ON8xGmSQQ24CDosG_Zbu5xX-SayKa0BDgCLcBGAsYHQ/s1600/Diary%2Bof%2BDiscoveries%2Bby%2BVladimir%2BKush.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="361" data-original-width="625" height="230" src="https://1.bp.blogspot.com/-i2sJ_5W6qic/XY9cAPdRX1I/AAAAAAAABk0/ON8xGmSQQ24CDosG_Zbu5xX-SayKa0BDgCLcBGAsYHQ/s400/Diary%2Bof%2BDiscoveries%2Bby%2BVladimir%2BKush.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-size: 10pt; line-height: 107%;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Diary of Discoveries, de Vladimir Kush</span></span></td></tr>
</tbody></table>
<div>
<br /></div>
<div>
<br /></div>
<div>
<br /></div>
<div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;"><i><span style="font-family: "arial" , sans-serif;"> </span></i></span><i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">Descobrir o que somente
um romance pode descobrir é a única razão de ser do romance. O romance que não
descobre algo até então desconhecido da existência é imoral. O conhecimento é a
única moral do romance.</span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 155.95pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">Hermann
Broch<i><o:p></o:p></i></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O
julgamento moral se mostra desprezível dentro da criação literária, ao passo
que pode prejudicar tanto a composição da obra, a criação, como também a
reflexão filosófica acerca da obra já pronta. É indispensável pensar na
composição romanesca como uma grande ferramenta de descobrimento do que é a
vida humana nas suas mais diversas facetas, isso traz autonomia e liberdade à
criação literária. Essa liberdade, ou libertação, é inclusive moral, posto que
no âmbito da criação literária, os julgamentos morais, o preconceito, devem ser
extintos. Suspender juízos morais não é uma tarefa razoável para o leitor
comum, por exemplo, que geralmente não está interessado na reflexão crítico-filosófica
a respeito da obra literária. Já para o leitor pesquisador que, necessariamente,
deve enxergar o campo literário como lugar doador de riqueza de possibilidades
- principalmente no que diz respeito ao conhecimento sobre a condição humana -,
a isenção de julgamento moral, no contato com a criação literária, se torna um
dever.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tendo
em vista a criação literária, a moral pode ser explícita, no caso em que o
autor é o próprio narrador e “assume” seu pensamento independente das sanções
que possa vir a sofrer, implícita ou até mesmo negada, quando, em vias de ser
rechaçado, prefere adotar o modelo do narrador ausente e/ou atribuir seu
pensamento a um objeto, ou a qualquer outra pessoa que não seja ele mesmo. Isso
pode ser considerado uma ironia, no sentido de ironia como uma máscara: se o
autor coloca um defunto para narrar, como, por exemplo, Machado de Assis fez em
<i>Memórias póstumas de Brás Cubas</i>, ele pode falar tudo o que pensa sem o
risco de ser julgado moralmente, pois o narrador defunto lhe protege de
possíveis julgamentos de cunho moral. No capítulo cento e dezenove dessa obra,
por exemplo, o narrador defunto, Brás Cubas, elenca meia dúzia de máximas muito
irônicas. Numa delas lemos: “Não se compreende que um botocudo fure o beiço
para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro”. Em
outra, ele escreve que, “um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da
carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”. Ou seja, Machado,
astuciosamente, formula frases de conteúdo extremamente sarcástico,
outorga-lhes autoridade axiomática e as coloca na boca do narrador defunto. Tal
é o poder dessa escolha estética, que não parece ao leitor, que sejam frases e
sarcasmos do autor e sim do narrador. E se o narrador é um defunto, é
impossível julgá-lo. Isso confere ao narrador, uma liberdade filosófica imensa
- e ao autor consequentemente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Outra
referência importante é a obra de Gustave Flaubert, <i>Madame Bovary</i>, que é
capaz de “discutir” a moral, do ponto de vista da infidelidade conjugal. A
narrativa é sobre a vida de Emma Bovary, uma mulher que trai o marido e vive
oscilante entre paixões e desventuras. É possível afirmar que o autor poderia
estar defendendo a infidelidade conjugal como algo normal, aceitável e até
tranquilo de se dá. E aconteceu algo parecido à época da publicação: a obra
sofreu censura e Flaubert foi processado pelo ministério público francês por
insulto à moral pública e à religião, sendo absolvido mais tarde. Nesse caso,
especificamente, a intenção de Flaubert não foi defender nem acusar a
infidelidade conjugal, mas mostrá-la de modo que Emma fosse valorizada em sua
humanidade. O autor chama a atenção para o fato de que Emma, acima da
infidelidade, é um ser humano complexo e singular como os seus pares. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
infidelidade conjugal, tem sido desde sempre discutida e vista como algo
imoral, no entanto, um número razoável de pessoas, essas mesmas que pregam ser,
a infidelidade conjugal, imoral, traem e são traídas. Nesse caso, como falar
que a pessoa fiel tem moral se o comportamento humano, na maioria das vezes tem
sido “imoral”? Como a produção literária poderia assumir a infidelidade como
moral ou imoral sem ferir determinados grupos sociais? Seria razoável, se
utilizar da literatura para fazer uma discussão tão polêmica? Qual seria o
papel que a produção literária assumiria nesse contexto?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Milan
Kundera, escritor romanesco e teórico literário tcheco, nos ilumina a respeito
dessa temática da moral no campo literário. Em seu ensaio “Os testamentos
traídos”, ele diz que “suspender o julgamento moral não é a imoralidade do
romance, é a sua moral”. Ou seja, um romance é imoral a partir do momento que
se priva de liberdade por motivos morais ou por valores pautados em leis desse
tipo. Essa moral - própria da criação literária - é o que “se opõe à
irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de
julgar antecipadamente e sem compreender”, e é nesse sentido que o julgamento
moral está para além do romance e, em verdade, deve ser exterior ao romance.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Penso
que, no âmbito da criação romanesca, o conceito de moral é relativo ou
particular. A criação literária como território fecundo, de onde emana
conhecimento acerca da vida humana e do mundo, é útero perfeito de uma
proposição metodológica apoiada na epistemologia, que possibilita uma
infinidade de reflexões filosóficas. Epistemologia em seu sentido comum é uma
área da filosofia que trata dos problemas que envolvem o conhecimento humano,
com vistas ao valor e à essência do mesmo. Uma proposta metodológica de
epistemologia do romance seria então a grande resposta para as perguntas feitas
anteriormente. A obra romanesca suscita a reflexão filosófica e se nos
entregamos a ela, com intenções epistemológicas, somos capazes de decompô-la,
esquadrinhá-la e, deste modo, alcançarmos o cerne da sua composição. Portanto,
o papel da criação romanesca é fazer conhecer, provocar reflexões e
possibilitar uma liberdade estética essencial ao conhecimento.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Finalmente,
se for verdade que “o conhecimento é a única moral do romance”<i>, </i>então é possível afirmar que o artista
literário pode falar o que quiser independente do pensamento social vigente,
que pode produzir julgamentos morais, basta que a obra produza conhecimento e
traga à tona o desconhecido acerca da condição humana, da existência. O autor
pode, astuciosamente, se utilizar de outros seres para acobertar o seu
pensamento e, dessa maneira, se livrar de todo e qualquer julgamento que, por
ventura, venham a lhe fazer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O
leitor que tenha acesso ao escrito literário, provavelmente, sentirá amor ou
ódio pelo objeto utilizado pelo autor para expor suas ideias. Nesse sentido, o
julgamento moral é externo à obra literária e não se trata de confundir a moral
própria da obra literária com uma moral externa, pré-fabricada. Portanto,
devemos buscar a fruição que a obra literária tem a oferecer, livre de preconceitos
e julgamentos morais. Esse exercício, que deve ser natural para o leitor
pesquisador, o leitor comum, sem grandes interesses pela reflexão
filosófico-epistemológica acerca da arte literária, pode também fazer.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<b><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">Referências:<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">ASSIS,
Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.145.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">KUNDERA,
Milan. A arte do romance. Tradução, Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera Mourão.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.11.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">KUNDERA,
Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Tradução, Teresa Bulhões Carvalho da
Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994,
p. 07.<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div>
<br /></div>
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-81046654256598759952019-09-14T18:07:00.000-07:002019-09-14T18:07:13.177-07:00A voz da literatura surda<h3 style="text-align: right;">
Júlia Lacerda de Souza</h3>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-VEV5-m-ZBRI/XX2OhVDbtlI/AAAAAAAABkg/wuCusbR9Mro-EQvIj-W70pTv5HxL2d5OwCLcBGAsYHQ/s1600/Nancy%2BRourke.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="197" data-original-width="255" height="309" src="https://1.bp.blogspot.com/-VEV5-m-ZBRI/XX2OhVDbtlI/AAAAAAAABkg/wuCusbR9Mro-EQvIj-W70pTv5HxL2d5OwCLcBGAsYHQ/s400/Nancy%2BRourke.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem: Nancy Rourke</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como Coda – Children of Deaf Adults –, filha ouvinte de pais surdos, nasci e cresci
na fronteira entre dois mundos que se encontram. Aprendi e continuo aprendendo, a
cada dia, com as diferentes visões de mundo que tenho o prazer de conhecer, da mesma
forma como considero que a todos é fundamental explorar outros “universos”, a fim de
que as relações humanas possam ser estendidas para um patamar de maior empatia e
cuidado com o outro, exercitando uma relação mais profunda de alteridade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Este mês de setembro, especialmente, muito me faz refletir sobre a luta dos
surdos e as suas conquistas. É claro que, assim como outros movimentos que lutam em
prol de algo, a luta da comunidade surda é diária, mas este mês nos afirma algumas
marcações que fundamentalmente determinaram a comunidade surda e nos é
importante considerar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Do dia 06 ao dia 11 de setembro tomamos a triste recordação do Congresso de
Milão, em 1880, no qual o método oralista foi adotado como o mais correto para os
indivíduos surdos e foi promulgado que as línguas gestuais devessem ser proibidas – por
uma votação quase unânime, composta, em quase sua totalidade, por indivíduos
ouvintes –. Seguindo os marcos de setembro, comemoramos, no dia 23, o Dia
Internacional das Línguas de Sinais, oficializada pelo ONU em dezembro de 2017,
tomando como base a fundação da WFD – World Federation of the Deaf –, Federação
Mundial dos Surdos, no dia 23 de setembro de 1951; no dia 24, a oficialização da Libras
– Língua Brasileira de Sinais – através da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002; e, no dia 26,
o Dia Nacional do Surdo, oficializado pelo governo federal em outubro de 2008,
tomando como base a data considerada como de fundação do INES – Instituto Nacional
de Educação de Surdos –, no dia 26 de setembro de 1857. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Dessa forma, trago essas lembranças como alguém que anseia por uma realidade
em que possamos nos (re)conhecer e (re)conhecer o outro em seu contexto. E, em um
cenário como esse, podemos pensar também a literatura, uma vez que uma das visões
que comumente é a ela atribuída é a de sua grande capacidade de abrir uma passagem
para um outro “plano” e até mesmo para seu conhecido desconhecido.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
“Mas, literatura surda?” Desde que decidi dedicar-me a pesquisar a literatura
surda, não há tanto tempo, quando apresento meu objeto de estudo, comumente
percebo essa indagação intercalada por sinceros “não, nunca ouvi falar”, mas que logo
se alinha com um “caramba! O que é?”. É algo para se pensar. Até certo tempo, nem eu
mesma sabia realmente o que era essa literatura e, assim como eu, muitos ainda não a
conhecem, incluindo até parte dos próprios indivíduos surdos. Assim, faz-se necessário
divulgá-la e ampliar o conhecimento e os estudos que permeiam essa manifestação
artística. Deve-se falar dessa literatura de representação de uma cultura e identidade
própria que é tão bela e se constitui de tantas particularidades e singularidades.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Com base no conceito de Karnopp (2006), compreende-se essa literatura como
as produções que representam e fazem parte da comunidade surda, em relação às
línguas de sinais, identidade e cultura, que captam a surdez não como uma falta ou
como um problema a ser resolvido, mas sim como uma diferença que implica em um
estilo de vida, de percepção e de assimilação próprio acerca da realidade que advém da
experiência visual. Ela cria uma aproximação do sujeito com a cultura e, para os próprios
surdos, auxilia ainda no processo de construção de sua identidade. Isso nos faz refletir
sobre a força da literatura e, aqui, uma literatura que expressa a autorrepresentação,
que mostra a sua voz e, mesmo no silêncio, tanto fala, tanto ensina e tanto amplia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nesse silêncio, me imagino. Penso em como vivemos em um mundo moderno
que tanto quer dizer e fala, fala e fala. Será que ele realmente diz? Será que ele
realmente escuta? Aprendi desde cedo, com os meus pais, a apreciar o silêncio. Por
causa da língua ser a de sinais? Também. Eles me ensinaram a observar mais, a entender
a linguagem do corpo e perceber que o silêncio fala, ainda que não queira. Hoje,
percebo o quanto a experiência sensível e sensorial é importante. Acredito que a
literatura aluda a essa experiência sensível, ainda que não passe por uma percepção
essencialmente visual. Ela nos provoca. Provoca dúvidas, provoca risos, provoca paixão,
provoca tristeza, provoca inquietação. Ela provoca. E, é nesse deixar a obra falar que
possivelmente possamos entender experiências de leitura. Como lemos? Estamos
respeitando a voz do outro? </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A literatura surda é algo recente, ainda se consolidando. Nela, observamos uma
voz: a voz do surdo, a voz de um grupo, a voz de uma comunidade. E, embora, em sua
maioria, se constitua por obras do gênero infantil e infanto-juvenil, já podemos notar
características que a particularizam. O que é enxergar o mundo pelos olhos de que
quem os utiliza como ouvidos?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Aqui, a representatividade surda é essencial. Autores que reproduzam a
experiência mais sincera de quem puramente vivencia esse olhar. Que possamos ter
cada vez mais produtores de arte surdos, que sejam os protagonistas da própria
narrativa e que possam contribuir para o alavancamento dessa também forma de
expressão, a fim de que alguns se identifiquem e outros compreendam. Que conheçam. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É nesse panorama que penso que possamos nos atentar a possibilitar que a voz
do outro se revele. Que possamos enxergar. Que possamos dar visibilidade e espaço
para a literatura da qual este texto trata. E que possamos ir além, possamos levantar
novas questões, pensarmos juntos e questionar, inclusive. Que a (re)afirmação de uma
vida se torne essa voz que aqui, por meio da literatura e, ainda, surda possa fazer ecoar
a voz do silêncio.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Referências: </div>
<div style="text-align: justify;">
MIANES, Felipe; MÜLLER, Janete; FURTADO, Rita. Literatura surda: um olhar para as
narrativas de si. KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN (Orgs.).
Cultura Surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações.
Canoas: Ed. Ulbra, p. 55-70, 2011.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
KARNOPP, Lodenir Becker. Literatura surda. ETD: Educação Temática Digital, v. 7, n. 2,
p. 98-109, 2006. </div>
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-8291732472810972202019-09-07T00:00:00.000-07:002019-09-07T00:00:06.060-07:00Afrofuturismo não é só sobre futuros utópicos, mas essas são as imagens que mais precisamos<br />
<h3 style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt;"><br /></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt;">Waldson Gomes de Souza</span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-of1c-dBgnUg/XXLPlLLPprI/AAAAAAAABkI/QqV40KVvUtcW5SDziE8geHXPQlVVNZjbQCLcBGAs/s1600/Phases%252C%2Bde%2BManzel%2BBowman.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="564" data-original-width="564" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-of1c-dBgnUg/XXLPlLLPprI/AAAAAAAABkI/QqV40KVvUtcW5SDziE8geHXPQlVVNZjbQCLcBGAs/s400/Phases%252C%2Bde%2BManzel%2BBowman.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><h2>
<span style="background-color: white; color: #222222; font-size: x-small; text-align: start;"><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;">Phases, de Manzel Bowman</span></span></h2>
</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: Arial, sans-serif; font-size: 12pt;"><br /></span></div>
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><div style="text-align: right;">
<span style="font-size: 12pt;"> </span></div>
</span></h3>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">O fim do mundo, para a população
negra, veio séculos atrás quando a primeira nave alienígena chegou ao
continente africano. Pessoas negras foram abduzidas por estranhos, levadas em
navios enormes para terras desconhecidas e foram subjugadas, escravizadas, expostas
a experimentos e submetidas a diversos tipos de violência. Essa leitura
afrofuturista do colonialismo encara o “contato com o outro” não como mero tema
amplamente trabalhado na ficção científica, mas como realidade devastadora que
gerou o contexto distópico no qual povos negros se encontram até hoje. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>O
afrofuturismo é um movimento artístico e estético que nasce da união entre
ficção especulativa (fantasia, ficção científica e horror) com autoria e protagonismo
negros. Obras afrofuturistas, independente do formato, trabalham questões que
são pertinentes para a população negra, seja questionando as estruturas
opressoras do presente, resgatando passados apagados ou projetando imagens
futuras que se deseja ou não seguir. Não se trata necessariamente de obras ambientadas
no futuro, como o termo pode dar a entender em um primeiro momento. Afrofuturismo
também é sobre horrores detectáveis no presente, fantasias mirabolantes,
acontecimentos sobrenaturais diversos, contextos ainda mais opressores, futuros
múltiplos e ímpares.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Neste
texto, apresento alguns pensamentos centrais da minha dissertação de mestrado
sobre afrofuturismo na literatura brasileira contemporânea. Tive a preocupação
de estabelecer um conceito rigoroso o suficiente para não ser muito amplo e ao
mesmo tempo não limitar demais as obras. Alguns elementos precisam ser
definidos, caso contrário, tudo será afrofuturismo — e se tudo for
afrofuturismo, não existiria a necessidade de nomear. Nomear é importante,
assim como definir critérios.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>O
ponto central da minha perspectiva é pensar o afrofuturismo a partir da ficção
especulativa, termo que utilizo para aproximar a fantasia, o horror
sobrenatural e a ficção científica. Entendo que esses três gêneros conversam
entre si ao fugirem das regras do nosso mundo real, ao construírem narrativas
com elementos irrealistas, ao especularem outras realidades. E defendo que para
o afrofuturismo é mais importante pensar como cada autor usa a ficção
especulativa para abordar questões relacionadas à experiência negra e dar
destaque ao protagonismo negro, respeitando sim os respectivos recursos, mas
sem a necessidade de separar os três gêneros. Através da ficção, o
afrofuturismo cria imagens e nos permite visualizar alternativas e outros
cenários.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">É nesse sentido que o escritor
Samuel R. Delany aborda a contribuição de Susan K. Langer em relação ao poder
da imagem. Langer diz que a experiência inicial com a imagem de algo que ainda
não existe serve como impulso para o progresso humano em vários campos da
sociedade. E com isso Delany reforça seu argumento de que a população negra,
mais que qualquer outro grupo, precisa de imagens sobre o futuro, imagens do
amanhã. Com essas imagens em mente, visualizando muitas alternativas, tanto
boas quanto ruins, é que se pode ter algum controle sobre o modo de se chegar a
um futuro concreto, um amanhã real. E o afrofuturismo é capaz de fornecer
noções de futuro para além de suas obras, pois ao entrar em contato com essas
histórias (mesmo que não sejam futuristas), pessoas negras encontram outros
modelos tão necessários de representação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Na década de 1960, Nichelle Nichols
interpretou a Tenente Uhura na série <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Jornada
nas estrelas</i> (1966-1969), uma época em que mulheres negras só atuavam como
empregadas domésticas, salvo raras exceções. Ytasha Womack conta que Nichols
quis abandonar o papel, mas acabou mudando de ideia quando foi convencida por
Martin Luther King Jr. a continuar interpretando Uhura. A personagem estava
mudando mentes e quebrando paradigmas em um contexto mais que necessário. A
importância de Uhura fica mais que evidente na biografia de duas mulheres
negras famosas. Mae Jemison, a primeira negra a ir ao espaço em 1992, desejou
se tornar astronauta porque assistia <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Star
Trek </i>quando criança. E Whoopi Goldberg também foi influenciada por Uhura na
sua decisão de se tornar atriz. Para essas crianças, a personagem Uhura
forneceu rupturas, foi uma imagem poderosa que lhes permitiu sonhar com futuros
melhores, que forneceu outro caminho além das representações recorrentes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_gjdgxs"></a><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Com
tudo que está acontecendo, pode ser difícil manter a esperança e imaginar
alternativas positivas. É difícil não se sentir paralisado e impotente diante
de notícias ruins surgindo constantemente. Mas ainda precisamos imaginar
futuros prósperos. É por isso que eu gosto tanto da noção desenvolvida por
Walidah Imarisha de que pessoas negras hoje vivem uma ficção científica. Ela
diz: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">“Nós somos os sonhos de pessoas
negras escravizadas que ouviram que era muito ‘irreal’ imaginar que um dia elas
não seriam chamadas de propriedade. Essas pessoas negras se recusaram a limitar
seus sonhos ao realismo, e, em vez disso, nos sonharam.” </i>Há força nesse
pensamento, uma força que transcende as barreiras do tempo. É ancestralidade, é
projeção de um futuro. Futuro ancestral. O afrofuturismo permite que pessoas
negras contem suas próprias histórias especulativas e se reconheçam em seus
heróis e heroínas. O afrofuturismo pode expandir os horizontes de uma garotinha
negra, fazendo-a desejar ser astronauta só porque a imagem de uma personagem
lhe diz que isso é possível. O afrofuturismo nos faz sonhar, mesmo com todas as
opressões e adversidades do mundo real. E não podemos deixar de sonhar com
futuros reais melhores. Não podemos deixar de imaginar as ficções que desejamos
encontrar no mundo real.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Referências<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">DELANY, Samuel R. (1984). The necessity of tomorrows. In: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Starboard wine: more notes on the language
of science fiction</i>. New York: Dragon Press.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">IMARISHA, Walidah. Rewriting the future: using science
fiction to re-envision justice. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Bitch
Media</i>, 11 dev. 2015. Disponível em:
<https: article="" rewriting-the-future-prison-abolition-science-fiction="" www.bitchmedia.org="">.<o:p></o:p></https:></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">WOMACK, Ytasha L. (2013). <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture</i>.
Chicago: Lawrence Hill Books.<o:p></o:p></span></div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-78314023947282322792019-08-24T00:00:00.000-07:002019-08-24T00:00:11.267-07:00A produção literária brasileira sobre a ditadura: uma breve lista<br />
<h3 style="line-height: 150%; text-align: right;">
<br /></h3>
<h3 style="line-height: 150%; text-align: right;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Berttoni Licarião</span></b></h3>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-NMQLczWPwtc/XWA09GYxZUI/AAAAAAAABj8/2TdCsr8F07cxt65tcK-jBHpEnyfIs7ZLwCLcBGAs/s1600/Anomalie03_81_65BD.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="851" data-original-width="671" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-NMQLczWPwtc/XWA09GYxZUI/AAAAAAAABj8/2TdCsr8F07cxt65tcK-jBHpEnyfIs7ZLwCLcBGAs/s400/Anomalie03_81_65BD.jpg" width="315" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: x-small;"><span style="background-color: white; color: #20124d; text-align: start;">Anomalie 03, de </span>Eric Lacombe</span></td></tr>
</tbody></table>
<div align="center" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: center;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;"><br /></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 8.0cm; text-align: justify;">
<i><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Somos
a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não
existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir</span></i><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 184.3pt; text-align: justify;">
</div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 8.0cm; text-align: right;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">José Saramago.<o:p></o:p></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 184.3pt; text-align: right;">
<br /></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 184.3pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Vez ou outra, preciso me apresentar em uma roda
de conversa e dizer que sou um pesquisador de literatura ocupado com a memória
da ditadura na ficção contemporânea brasileira. As reações que recebo são as
mais variadas e renderiam, elas mesmas, uma longa tese. No amplo espectro das
respostas mais comuns, há, naturalmente, num primeiro extremo, aqueles que
reconhecem a importância do tema e me parabenizam pela escolha. Em seguida, bem
no meio dessa régua imaginária, encontra-se o grande conglomerado dos “incrédulos
desinformados”, que ora perguntam se tem mesmo alguma coisa para se estudar, ora
preferem encarar um silêncio constrangedor, levemente arrependidos da pergunta.
Por fim, localizadas num ponto diametralmente oposto ao primeiro grupo
concentram-se as pessoas que mais me preocupam: são as que sugerem, quase entre
dentes, meu “desperdício de tempo” com “um tema superado”, isso quando não
deixam escapar um alarmante riso negacionista.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">A
ditadura não é “uma página virada da nossa história”!<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">Essa percepção da ditadura civil-militar
brasileira como página virada de nossa história não é uma onda recente e se
alimenta, principalmente, da ausência de políticas da memória efetivadas a
nível institucional. Frente a normatização do esquecimento, as esferas
culturais reagem como podem. Para ficarmos apenas no campo da literatura, textos
literários sobre a ditadura brasileira não apenas existem como são abundantes, enchem
bibliotecas, recebem prêmios, são discutidos e estudados nas universidades. No
entanto, por falhas estruturais em nossa transição para a democracia, eles
carecem de capilaridade e rapidamente caem no ostracismo dos livros que não
ocupam as listas de mais vendidos. As exceções existem, ainda que raras, como
foi o caso de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O irmão alemão </i>(2014),
de Chico Buarque, autor que sabemos ser capaz de transformar em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">best-seller</i> até mesmo um livro de
receitas com 150 maneiras de preparar chuchu. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">O silêncio que muitas vezes sufoca ficções e
relatos sobre a ditadura é um projeto de longa data. Após assumir o controle do
país em 1979, o ditador João Batista Figueiredo enviou ao congresso, sob enorme
pressão de vários setores da sociedade civil, o projeto de lei que concedia
anistia aos crimes cometidos durante os anos de exceção. Na época, o militar
declarou: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento [...]. Eu
apenas quero que haja esquecimento recíproco.”<a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftn1" name="_ftnref1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Com
efeito, o desejo do ditador fez-se lei, e o trauma da ditadura foi varrido para
debaixo do tapete, ao invés de ser encarado coletivamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 11.0pt;">A falta de elaboração coletiva de um período em
que crimes contra a humanidade foram cometidos por um Estado autoritário gera
incompreensão e mal-estar social, e suas consequências podem ser sentidas ainda
hoje. Quem aí tentar enxergar as filigranas de nosso tecido democrático, conseguirá
perceber o quanto a Constituição Cidadã de 1988 guarda trechos inteiros da
Constituição autoritária de 1967 (e sua emenda de 1969). Como nossa lei da
Anistia, de 1979, apesar de não prever o perdão para torturadores (porque
crimes de tortura não são anistiáveis) foi considerada como valendo para todos
e prossegue garantindo impunidade a quem torturou, matou e desapareceu aqueles
que se opuseram ao regime. Que o nosso direito à verdade e à justiça — condição
para o funcionamento de uma democracia — tem sido constantemente negado pelas Forças
Armadas que mantém escondidos da sociedade os arquivos da ditadura. E que
pesquisas da última década<a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftn2" name="_ftnref2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[2]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> comprovam
que o uso da tortura e da violência pela polícia brasileira aumentou após a
redemocratização, não mais direcionado aos “comunistas subversivos”, mas à
juventude negra e aos moradores das periferias. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="background: white; color: black; font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt; mso-color-alt: windowtext;">A literatura e o resgate
da memória coletiva</span></b><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="background: white; font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="background: white; color: black; font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt; mso-color-alt: windowtext;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="background: white; color: black; font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt; mso-color-alt: windowtext;">O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua Comissão
da Verdade — iniciada em 2012 e finalizada em 2014. Tornando-se, portanto, o
último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e
irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante atraso
em um processo de resgate fundamental à memória coletiva gera aquele temerário
quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. </span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">Afinal, a literatura sempre foi, e continuará a ser, “a
maldição das ditaduras”, nas palavras do crítico e escritor argentino Alberto
Manguel. Foi assim que, resistindo à censura das décadas de 1960 e 1970, ela nos
presenteou com obras-primas como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Quarup </i>(Antonio
Callado, 1967), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Incidente em Antares </i>(Erico
Verissimo, 1971), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Sombras de reis
barbudos </i>(José J. Veiga, 1972), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">As
meninas </i>(Lygia Fagundes Telles, 1973) e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os
que bebem como cães </i>(Assis Brasil, 1975), entre tantos outros grandes
romances. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">Nas décadas seguintes, a literatura sobre a
ditadura civil-militar brasileira se sustentou com força no testemunho de
exilados, ex-guerrilheiros e sobreviventes das torturas. Como exemplo, temos os
relatos imprescindíveis de Renato Tapajós (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Em
câmara lenta</i>, 1977), Frei Betto (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Batismo
de sangue</i>, 1982), Luiz Roberto Salinas (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Retrato
calado</i>, 1988), Salim Miguel (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Primeiro
de abril, </i>1994), Flávio Tavares (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Memórias
do esquecimento</i>, 1999) e, mais recentemente, aquele curto e belíssimo livro
da Maria Pilla chamado <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Volto semana que
vem</i> (2015). Além, claro, das narrativas conciliatórias e, por isso mesmo,
bastante problemáticas, de Fernando Gabeira (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">O que é isso, companheiro?</i>, 1979) e Alfredo Sirkis (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os carbonários</i>, 1980). <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">Na falta de monumentos, tribunais e lugares de
memória, nosso trauma resiste ao esquecimento e se reelabora por meio da
literatura, através de um complexo inventário que recria tudo aquilo que a
historiografia é incapaz de dizer: a dor e as feridas, as lágrimas e o sangue,
a tensão e o horror. O arquivo é duro, de pouco acesso, lugar para
historiadores com suas luvas e máscaras de proteção; a literatura, ao
contrário, consegue ser um pouco mais democrática, cabe na mão e atinge um
público mais amplo, ávido por conhecer seu passado. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">Durante os anos 1990 e início do século XXI,
mais ficções apareceram para dar conta dessa memória áspera e ainda dolorida.
Para exemplos, temos <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Amores exilados</i>
(Godofredo de Oliveira Neto, <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>1997), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Romance sem palavras</i> (Carlos Heitor
Cony, 1999), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cinzas do norte</i> (Milton
Hatoum, 2003), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Não falei</i> (Beatriz
Bracher, 2004), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A chave de casa</i> (Tatiana
Salem Levy, 2007), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Nem tudo é silêncio </i>(Sonia
Regina Bischain, 2010) e o surpreendente <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Azul
corvo</i> (Adriana Lisboa, 2010), uma das poucas narrativas que tratam da
Guerrilha do Araguaia, massacre de opositores ao regime promovido pelas Forças
Armadas e que foi negado durante muitos anos pelos militares. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">K. Relato de uma busca</span></i></b><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">: divisor de águas<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">Em 2011, às vésperas da criação da Comissão
Nacional da Verdade, a novela <i style="mso-bidi-font-style: normal;">K. Relato
de uma busca</i>, de Bernardo Kucinski, se torna um verdadeiro divisor de águas
da literatura nacional. De forma pioneira, misturando dados biográficos e
históricos à invenção literária, </span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Kucinski
</span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">denuncia a precarização da memória
brasileira sobre os anos de repressão através da história de um pai </span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">à procura da filha e do genro,
desaparecidos políticos da ditadura</span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">. </span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Esse ponto nuclear da narrativa
parte da vivência do autor, que perdeu a irmã e o cunhado — Ana Rosa Kucinski e
Wilson Silva — quando ambos foram sequestrados em 1974 pelas forças de
segurança do estado de São Paulo. A partir de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">K. </i>um novo ciclo cultural tem início, no qual as obras literárias
não apenas visitam o passado recente, mas apontam para a relação indissociável
entre a violência do presente e o “mal de Alzheimer nacional”. Ainda
sobre a ditadura, Kucinski publicou outros três livros, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Você vai voltar pra mim e outros contos </i>(2014), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os visitantes </i>(2016) e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A nova ordem </i>(2019). <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Com os trabalhos da Comissão
Nacional da Verdade (2012-2014), a literatura brasileira sobre a ditadura
ganhou novo fôlego e se transformou num palco para o acerto de contas entre </span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">história nacional e memória coletiva</span><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">. Fomentados pelo rebuliço nos
arquivos, os livros se tornam, neste momento, “obstáculos levantados contra o
convite ao esquecimento”, na expressão de Beatriz Sarlo.<a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftn3" name="_ftnref3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: EN-US;">[3]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Em 2012 foram lançados <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Mar azul </i>(Paloma
Vidal), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Estive lá fora </i>(Ronaldo
Correia de Brito) e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Antes do passado: o
silêncio que vem do Araguaia </i>(Liniane Haag Brum), e em 2013, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Vidas provisórias</i>, do Edney Silvestre.
Já em 2014 foram publicados a coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Nos idos de março</i>, e os romances <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Damas da noite </i>(Edgard Telles Ribeiro) e
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Qualquer maneira de amar </i>(Marcus
Veras). O ano de 2015 nos trouxe <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ainda
estou aqui </i>(Marcelo Rubens Paiva), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cova
312 </i>(Daniela Arbex), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Mulheres que
mordem </i>(Beatriz Leal Craveiro), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O
amor dos homens avulsos </i>(Victor Heringer), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Palavras cruzadas </i>(Guiomar de Grammond) e o vencedor dos prêmios
Jabuti e José Saramago, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A resistência</i>,
de Julián Fuks.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">A
literatura continuará a falar da ditadura<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Nas palavras de Beatriz Sarlo, “as
palavras são, de fato, testemunhas informantes”,<a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftn4" name="_ftnref4" style="mso-footnote-id: ftn4;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 107%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: EN-US;">[4]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
especialmente contra a atrofia da memória. Muito a contragosto de grupos
conservadores ou negacionistas, o último triênio não apresentou qualquer queda na
produção de textos literários sobre os anos de exceção. Preocupados em demonstrar
como a violência da ditadura ocupa os mais diversos espaços da
contemporaneidade, uma nova leva de livros continua a surgir sem descanso: é o
caso de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cabo de guerra</i> (Ivone
Benedetti, 2016), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Felizes poucos</i> (Maria
José Silveira, 2016), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Outros cantos</i> (Maria
Valéria Rezende, 2016), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O indizível
sentido do amor</i> (Rosângela Vieira Rocha, 2017), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A noite da espera</i> (Milton Hatoum, 2017), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Silêncio na cidade </i>(Roberto Seabra, 2017), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Paris – Rio – Paris</i> (Luciana Hidalgo, 2017), o infanto-juvenil <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Clarice</i> (Roger Mello, 2018), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Uma mulher transparente</i> (Edgard Telles
Ribeiro, 2018), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Sob os pés, meu corpo
inteiro</i> (Marcia Tiburi, 2018), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Correio
do fim do mundo</i> (Tomás Chiaverini, 2018) e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Setenta </i>(Henrique Schneider, 2018). Merece destaque, neste período,
a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Trilogia infernal</i> da pernambucana
Micheliny Verunschk composta pelos romances <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Aqui,
no coração do inferno </i>(2016), <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O peso
do coração de um homem </i>(2017) e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O
amor, esse obstáculo </i>(2018).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "Arial",sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 14.0pt;">Esta lista poderia ser muito mais longa, mas nunca
foi seu propósito exaurir o assunto. Pelo contrário, deve ser encarada como um
convite para leitoras e leitores que, seguindo o conselho de José Saramago que
ficou lá em cima, reconhecem que somos, de fato, a memória que temos e a
responsabilidade que assumimos. Se o que está em jogo é a capacidade ou não de reconhecermos
nossa responsabilidade pela memória de um autoritarismo que continua a
assombrar o presente, é preciso estar atento e forte para que, seguindo o
exemplo da personagem kafkiana, a vergonha também não seja a única coisa que
nos sobreviva. <o:p></o:p></span></div>
<div style="mso-element: footnote-list;">
<!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<div class="MsoFootnoteText">
<span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 107%;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Monteiro, Tânia. Venturini: “O grande mentor da anistia foi Figueiredo”. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Estado de São Paulo</i>, São Paulo, 22
ago. 2009. Disponível em: <https: goo.gl="" xz6q="">. Último acesso: 16 ago.
2019.<o:p></o:p></https:></span></div>
</div>
<div id="ftn2" style="mso-element: footnote;">
<div class="MsoFootnoteText">
<span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftnref2" name="_ftn2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 107%;">[2]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Penna,
João Camillo.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>“Estado de exceção: um
novo paradigma da política?”. In: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Revista</i>
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea.</i> Brasília, jan./jun. 2007.<o:p></o:p></span></div>
</div>
<div id="ftn3" style="mso-element: footnote;">
<div class="MsoFootnoteText">
<span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftnref3" name="_ftn3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 107%;">[3]</span></span><!--[endif]--></span></span></span></a><span style="mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;"> SARLO,
Beatriz. Os militares e a história. In: SARLO, Beatriz. <i>Paisagens
imaginárias. </i>Trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EdUSP,
2005. p. 25-34.<o:p></o:p></span></span></div>
</div>
<div id="ftn4" style="mso-element: footnote;">
<div class="MsoFootnoteText">
<span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: x-small;"><a href="file:///C:/Users/Amanda/Downloads/REVISADO%20REVISADO%20Texto%20para%20o%20GELBC.docx#_ftnref4" name="_ftn4" style="mso-footnote-id: ftn4;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="line-height: 107%;">[4]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Idem.</span><o:p></o:p></div>
</div>
</div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-40469126234673613042019-08-10T00:00:00.000-07:002019-08-10T00:00:03.186-07:00As representações do ódio e da violência pela literatura contemporânea<h3 style="line-height: 150%; margin-right: -28.4pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: large; line-height: 150%;">Carlos Wender Sousa Silva</span></h3>
<div>
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: large; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-34j68XudPh8/XU2u5jICliI/AAAAAAAABjw/fappwE4lecIARqQB0KBKlDYJ199LUYJ4ACLcBGAs/s1600/Marie-Ange%2BGiaquinto.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="664" data-original-width="1000" height="265" src="https://1.bp.blogspot.com/-34j68XudPh8/XU2u5jICliI/AAAAAAAABjw/fappwE4lecIARqQB0KBKlDYJ199LUYJ4ACLcBGAs/s400/Marie-Ange%2BGiaquinto.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><div style="background-color: white; color: #222222; text-align: center;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: x-small;">"<span style="color: #4a4a4a;">Cenas de Violência: Silêncio", da </span><span style="color: #4a4a4a;">Marie-Ange Giaquinto.</span></span><span style="color: #4a4a4a; font-family: "verdana" , "geneva" , sans-serif; font-size: small;"> </span><span style="color: #4a4a4a; font-family: "verdana" , "geneva" , sans-serif; font-size: small;"> </span></div>
<div>
<span style="color: #4a4a4a; font-family: "verdana" , "geneva" , sans-serif;"><span style="font-size: small;"><br /></span></span></div>
</td></tr>
</tbody></table>
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;"><br /></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;"><br /></span></i>
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;"><br /></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">“Havia
um homem antes da farda:<o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">depois,<o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">caos,
um nada, <o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">anterior
talvez à farda<o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">à
espera que, de ordem, uma palavra<o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">o
preencha,<o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<i><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 115%;">havia um homem”<o:p></o:p></span></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<br /></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-right: -28.4pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">Adriano
Scandolara<o:p></o:p></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: right;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Nossa sociedade é exposta diariamente a diferentes práticas
humanas de intolerância e violência. Muitas delas são inexplicáveis de um ponto
de vista racional, na medida em que se distanciam de parâmetros éticos, morais
e filosóficos essenciais à vida coletiva. Essa violência decorre em alguma
medida do inconformismo diante da irrealização de interesses humanos imediatos
criadas dentro das relações de poder. As práticas humanas violentas perpassam
pelos âmbitos institucional e privado, indo desde uma relação entre um casal ou
entre vizinhos, até as relações profissionais previamente hierarquizadas. Esses
conflitos provocados e ressignificados pela sociedade contemporânea exigem
novas formas de se pensar nossas relações sociais a todo momento. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">É nesse sentido que o romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Gog Magog</i>, de Patrícia Melo, busca ressignificar alguns dos usos
que atribuímos à violência. Patrícia Melo, escritora, dramaturga e roteirista,
aproxima a literatura de vários dos elementos da barbárie nesse romance, em uma
tentativa de colocar alguns questionamentos com relação às nossas próprias
atitudes e interesses, tendo em vista que esses aspectos se desenvolvem diante
de todo um processo de construção social e psicológica. Além de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Gog Magog</i>, a autora tem obras que já
foram traduzidas em diversos idiomas. Ela recebeu prêmios por produções como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Elogio da mentira</i>, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Inferno</i> e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ladrão de cadáveres</i>.
O romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O matador</i> foi indicado ao
prêmio Femina na França e tornou-se filme em 2003, intitulado <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O homem do ano</i>, com roteiro de Rubem
Fonseca e direção de José Henrique Fonseca. Atualmente, a autora vive na Suíça.
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Gog Magog</i> é o décimo romance da
escritora.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A proposta nesse romance advém da necessidade contínua de
dar uma resposta ao imediatismo a à dissolução das relações humanas na
sociedade contemporânea. A narrativa aborda muitos aspectos presentes na
realidade brasileira. São apresentadas algumas das diversas dificuldades de
comunicação do nosso tempo. O barulho da vida moderna aparece como uma metáfora
dessa incomunicabilidade nas relações pessoais e coletivas. Além de deixar em
aberto as delimitações entre a violência estrutural – institucionalizada – e
todas aquelas praticadas no âmbito privado. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">As relações sociais neste início do século XXI têm sido delimitadas
por um aglomerado de informações que se acumulam nos diversos âmbitos da vida.
Há, muitas vezes, uma acumulação de informações, interesses e vontades que se
sobrepõem constantemente. Logo, as relações privadas e públicas são
reconstruídas sem as mesmas proporções de reflexão ou de entendimento com
relação à organização mais complexa da sociedade e das relações humanas.
Consequentemente, notamos uma contínua ressignificação dessas relações. O
imediatismo e a pouca profundidade desses vínculos levam a experiências de
frustração e inconformidade. Essa sociedade inconformada, diluída na
insatisfação consigo mesma e na negação da alteridade do outro, forma
indivíduos que menosprezam e assumem o ódio como resposta aos diferentes
conflitos que essa organização social constrói. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O ápice desse processo é o não reconhecimento do outro e a
própria banalização da vida humana, que levam a práticas de violência, de
racismo, de homofobia, de xenofobia, de extermínio, de opressão e de
silenciamento das diferentes vozes. É nesse sentido que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Gog Magog</i> busca captar na realidade alguns desses elementos e
experiências da sociedade contemporânea, na tentativa de ressignificar esses
abusos estruturais através do texto literário. O barulho, o ruído que incomoda
o personagem central é o mesmo que constrói as relações sociais hoje. O romance
é uma tentativa de compreensão e percepção de algumas das práticas humanas
irracionais. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O romance tem como protagonista um professor de biologia,
que mora em uma metrópole – São Paulo. A narrativa de Patrícia Melo é tecida
dentro de uma relação espaço-temporal que rapidamente identificamos como
brasileira, expondo aspectos da violência e das desigualdades próprias do nosso
país. O professor, cidadão honesto e pacato, não tem nome, ao contrário do seu
vizinho, Ygor, que se muda para o apartamento de cima. Ygor, ou Senhor Ípsilon,
apelido atribuído pelo professor a ele, é a peça fundamental que levará o
personagem central a ter sua vida completamente transformada e orientada de
acordo com os hábitos e atitudes do seu novo vizinho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Os ruídos provocados pelo Senhor Ípsilon vão ocupando a
cabeça do professor de biologia, que vai se perder na sua própria
irracionalidade. Esse movimento demonstra a incapacidade do sujeito de
racionalizar diante de situações que dizem respeito a vida urbana
contemporânea. O professor que já tinha um casamento fracassado, que não
encontrava muita razão na sua própria existência, nem qualquer sentido na
realidade na qual se confrontava, revela sua incapacidade em compreender a
organização da vida humana. Sua vivência insignificante e sua visão de mundo
limitada o levou a adotar atitudes violentas e criminosas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Na medida em que recusa a relação social presente no
romance, a qual deveria ser construída mutuamente, o professor, imbuído pela
sua frustração, constrói concepções equivocadas do seu direito com relação ao
de outro cidadão com quem precisa compartilhar um código social. É exatamente a
perda desse código social como instrumento que orienta as relações pessoais e
coletivas do indivíduo, que acaba levando o professor a tomar atitudes
contrárias não somente ao código, como também opostas a vários princípios
éticos, morais e filosóficos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Além da sobreposição inadequada de um direito individual
sobre o de outro indivíduo, quando na verdade deveria haver a conformação entre
ambos, a narrativa revela ainda a dificuldade que o personagem tem diante dos
diferentes conflitos que a vida apresenta no dia a dia. Ou seja, a atitude do
professor de biologia é um reflexo do próprio movimento de interrupção do
diálogo diante de uma situação na qual tem-se interesses divergentes. O barulho
metafórico presente no romance representa os ruídos provocados nas tentativas
infrutíferas de comunicação entre os indivíduos na atualidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Nessa zona de incomunicabilidade não há lugar para o
diálogo nem para o consenso. A dificuldade do personagem em lidar com o barulho
reflete a impossibilidade da contemporaneidade de convivência entre ideias
diferentes em um espaço em comum. O senhor Ípsilon, integrado à organização da
vida urbana moderna, tirava o sossego e interrompia o silêncio do professor.
Esse silêncio, que a princípio poderia ser entendido como um direito de cada
indivíduo, nos levando a interpretar as atitudes do personagem a partir de
parâmetros racionais, era, na verdade, a revelação da incompreensão e da
irracionalidade do personagem diante das situações dinâmicas da vida moderna. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Da irracionalidade vai-se ao ódio e à violência. O ato de
violência é o ápice da relação entre o professor e o seu vizinho. É o encontro
entre as seguintes estruturas do romance: personagem, desejo e conflito. As
atitudes desse personagem autoritário que se perde em si mesmo, nas suas
irrealizações e nas suas limitações, expõem algo muito mais estrutural presente
na organização social. A indiferença e a falta de empatia diante das
confrontações pessoais e coletivas, muitas vezes, colocam o indivíduo em uma
posição ilusória de superioridade. Daí advém o menosprezo e as diferentes
formas de preconceitos como dito anteriormente. Todo esse movimento leva em
muitos casos a uma histeria coletiva. Essa histeria é resultado de
comportamentos e percepções que levam os cidadãos a fazer escolhas
injustificadas e inumanas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">No romance, a chave girando na trinca da porta do senhor
Ípsilon, os seus passos ecoados embaixo, os objetos que caem no chão, tudo é
motivo para desestabilizar o conforto do professor. A reprodução dos sons
produzidos pelo senhor Ípsilon dentro da estrutura narrativa vai apontando
pouco a pouco a maneira como o personagem central se perde na pequenez da sua
própria existência. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Na vida real, basta uma fechada no trânsito, a recusa da
sexualidade e da subjetividade do outro, um olhar atravessado, um negro
carregando um guarda-chuva ou condenado por portar um desinfetante em um ato
político, um homem que ameaça e agride a companheira ou um terceiro diante da
fragilidade da sua própria masculinidade, para revelar estruturas sociais
desiguais e excludentes. Todas essas práticas denunciam as diferentes formas de
violência estruturais e suas desigualdades. A pluralidade cria alguns ruídos em
determinadas camadas da sociedade, levando-as a agir em interesse próprio por
motivo ideológico, econômico, político ou filosófico.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O senhor Ípsilon, assim como nessas situações corriqueiras
do dia a dia, noticiadas ou não, o indivíduo (a vítima) não é mais visto como
ser humano, mas como um objeto. O seu direito é reduzido diante do direito do
agressor, do indivíduo autoritário e violento. Ocorre um processo de
animalização daquele que é posto em uma posição de inferioridade por aquele
outro que se sobrepõe arbitrariamente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4.0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">Eu – o
professor: (...) E eu não pensava no senhor Ípsilon como um ser humano. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 4.0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">E o
médico perguntaria: Não? Como você pensava então no seu vizinho?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 8.0pt; margin-left: 4.0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">E eu responderia: Como
um objeto. Um emissor de ruídos variados e desnecessários. Sem conteúdo (MELO,
2017, p. 111).<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não é estabelecida uma relação mútua, orientada pela
conformação dos interesses divergentes, mas um movimento de silenciamento e de
apagamento do outro. O outro provoca ruídos desnecessários; para o agressor é
alguém vazio, sem conteúdo. Para ele, a única forma de experienciar a vida é a
sua, não a reconhecendo como limitada e como apenas mais um movimento dentro de
toda uma estrutura social. É essa mesma incompreensão da complexidade da
realidade que leva o sujeito agressor, homem honesto e pacato – como podemos
ler no romance, a violentar uma mulher, a agredir uma pessoa da comunidade
LGBT, a perseguir ou prender alguém por posicionamento político ou ideológico
diferente do seu, a torturar, a defender torturadores, a aprisionar ideias, a
apagar vivências do outro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Em todos esses casos o outro é objetificado. Há esse ruído
entre a minha experiência e a alteridade do outro. No romance, o silêncio é o
produto de luxo do personagem central, pelo qual está disposto a pagar qualquer
preço, inclusive com a vida de outras pessoas. Na nossa realidade, esse produto
(barulho) pode ser uma ideia, um preconceito, uma crença religiosa, etc. Nesse
sentido, a obra literária se coloca como possibilidade de compreensão de uma
realidade formada por inúmeros ruídos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-indent: 42.55pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A incomunicabilidade das relações humanas na
contemporaneidade é ressignificada no texto literário, de forma com que
busquemos compreender essas relações, criando possibilidades de intermediação
no encontro com outro. Por essa perspectiva, a literatura é uma possibilidade
de construção crítica, uma ferramenta de conhecimento da relação mútua do eu
face a alteridade do outro. A obra literária procura demonstrar que o eu não se
apaga diante da experiência de vida do outro, demonstra, ao contrário, a
possibilidade de interação entre ambas vivências por meio de processos de
aprendizagem, reflexão e troca de experiências. A literatura surge como espaço
de mediação dos diferentes conflitos.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0cm; margin-right: -28.4pt; margin-top: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Referência bibliográfica: </span></b><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><br /></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">MELO, Patrícia. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">GOG MAGOG</i>. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. <o:p></o:p></span></div>
<br />Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4986884430782165533.post-34241204461687467812019-08-03T00:00:00.000-07:002019-08-07T07:09:30.695-07:00Na favela e no hospício: a escrita de si em Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado<h3 style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt;">
<div align="right" class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva<o:p></o:p></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">Mônica Horta Azeredo<span style="font-variant-caps: small-caps; font-variant-east-asian: normal; font-variant-numeric: normal;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-9KdigPoitrQ/XUXTecR7BOI/AAAAAAAABjk/ET4gR61rtL4VlLv8vJKVtMuP0weVWqfawCLcBGAs/s1600/44148877_10210219562644755_682202005317353472_o.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="848" data-original-width="1600" height="337" src="https://1.bp.blogspot.com/-9KdigPoitrQ/XUXTecR7BOI/AAAAAAAABjk/ET4gR61rtL4VlLv8vJKVtMuP0weVWqfawCLcBGAs/s640/44148877_10210219562644755_682202005317353472_o.jpg" width="640" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Uma fachada para Mondrian, de Devair Antônio Fiorotti</span></td></tr>
</tbody></table>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: right;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;"><br /></span></div>
</h3>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Em seus textos autobiográficos, as
escritoras Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado buscavam, ao falar de
si, alcançar a comunicação com o Outro. Suas escritas situam-se, assim, como
espaço de interação entre interlocutores, o que é, segundo postula o filósofo
Mikhail Bakhtin (1997), o princípio fundador da linguagem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Um diálogo entre as produções dessas
duas autoras justifica-se pelos aspectos éticos e estéticos em comum de suas
obras e contextos de vida. Suas palavras circulam em dispositivos de poder e
fazem falar uma parcela da sociedade, de uma classe social, de um grupo de
indivíduos que, de outro modo, não teriam reconhecida sua existência teimosa e
lírica frente aos cânones literários, por vezes tão impermeáveis e surdos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A escrita de si nas duas autoras, a
despeito das acusações de egocêntricas e egoístas, contempla um universo mais
amplo que apenas seus mundos particulares. Como escritoras, criam uma fala de
si que se volta para o outro e também para a escritura, dialogando com a
sociedade e com a tradição literária brasileira.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Da favela, Carolina Maria de Jesus fala de si<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Negra, pobre, favelada, catadora de
papel e outros materiais recicláveis, mãe de três filhos, criando-os sozinha, a
escritora Carolina Maria de Jesus viveu em condições que poderiam tê-la levado
a sucumbir às forças opressoras que faziam dela e de outros na mesma condição, não
pessoas, não cidadãos, indivíduos desimportantes para a sociedade brasileira de
meados do século passado. Em 1958, seu destino começa a mudar, com o impacto da
publicação de reportagens sobre seus escritos, seguidas, em 1960, da publicação
de <i>Quarto de </i></span><i><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">d</span></i><i><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">espejo: diário de uma favelada</span></i><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">. Escritora por vocação, ela buscou representar sua vida e trabalho na
hoje extinta favela paulista do Canindé por meio da palavra escrita. Escrevia
ininterruptamente e até mesmo quando a fome, o cansaço, a miséria teimavam em
impedi-la. De discurso individualizado, restrito, os escritos passaram a ter <i>status</i>
de diálogo com o social.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O livro <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Quarto de despejo</i>, um diário, é um entre a numerosa produção de
Carolina Maria de Jesus; e hoje, traduzido em pelo menos 13 idiomas e vendido
em mais de 40 países, serve como referencial do identitário nacional. Quando
foi “descoberta” por Audálio Dantas, a escritora contava com mais de 20
cadernos manuscritos e cuidadosamente armazenados, à espera de um golpe de
sorte que pudesse tirá-la, e seus filhos, da miséria e obscuridade, mas
principalmente libertar a fala de si que recheava aquelas páginas encardidas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Carolina usa o diário como espaço de
confissão e na condição de objeto da esperança. Ela acredita que escreve para
alguém especial, um interlocutor ideal. A esse leitor imaginário, ela reserva a
tarefa de ser também o seu redentor. Alguém com poderes especiais para alçá-la
da miséria e da dor em situação de silêncio absoluto. O diário é para ela o
objeto que lhe garante continuar seu percurso sem desistir da luta, como relata
ter sido tentada a fazer em diversas ocasiões. Assim como seus filhos, por quem
vive e trabalha sem se entregar ao desespero, seus escritos têm a função de
ancorá-la à dolorosa realidade e de lhe garantir a coragem para permanecer na
lida, no diálogo constante com a adversidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A escrita de si é elemento emancipador
para as angústias pessoais, ao mesmo tempo em que se traduz em texto de
denúncia das mazelas que a atingem e aos que estão em semelhantes condições.
Seu discurso contextualiza sua fala e pereniza sua condição, sua história, sua
luta, por meio de um recorte peculiar do que pode ser entendido como parte da
sociedade brasileira onde esteve inserida. Seu discurso nega, portanto, a noção
de que a fala de si acaba por negligenciar as “forças sociais impessoais”,
ideia difundida pelo crítico russo Dmitry Pisarev (<i>apud</i> HOLQUIST, 2010,
p. 40).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ao falar de si, Carolina Maria de Jesus
debruça-se sobre o sofrimento do outro, ao lado de quem ela opta por ficar do
ponto de vista político, como escreve em diversas passagens. No relato em 22 de
maio de 1958, olha para fora de si e encontra o outro, em situação de miséria
que, assim como ela, sofre por causa dos descaminhos da política social
instituída no Brasil:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: normal; margin-bottom: 24.0pt; margin-left: 4.0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">(...) </span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São
Paulo que sofre mais do que eu. (...) Para não ver os meus filhos passar fome
fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas
deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se
desenrola. A ironia com que são tratados os pobres (...). (JESUS, 2004, p. 37</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">)<a href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=4986884430782165533&pli=1#_edn1" name="_ednref1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><sup><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><sup><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 107%;">[1]</span></sup><!--[endif]--></span></sup></a>.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Carolina não se priva da autocrítica e
da crítica ao social que a circunda. Lúcida e curiosamente analisa, no dia 21
de maio de 1958, o Brasil do seu tempo e conclui que<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: normal; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 4.0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">(...) Quem deve dirigir é quem tem a capacidade.
Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso pais é quem tem dinheiro,
quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria
revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o
braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores (JESUS,
2004, p. 35</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt;">).</span><span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A escrita de si é a fala da denúncia,
do grito de indignação, do pedido de socorro, buscando se libertar do universo
da dor, da miséria e do sofrimento, mas principalmente do silêncio.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Carolina descreve-se como leitora voraz
e refere-se à leitura como forma de enobrecimento, como caminho para o
desenvolvimento intelectual, ou como entretenimento. A literatura é
referenciada em cerca de catorze passagens, incluindo o registro de poemas
escritos por Carolina e a citação de escritores, como Casemiro de Abreu. A
própria descrição de sua rotina é feita, em várias passagens, de forma poética,
como no dia 13 de maio de 1958: “A noite está tépida. O céu já está salpicado
de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para
fazer um vestido (...)” (JESUS, 2004, p. 28</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">).</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Registros como “passei a tarde
escrevendo” (JESUS, 2004, p. 22</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">)</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">; “nunca vi uma preta gostar tanto de
livros quanto você” (<i>id</i>., p. 23</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">)</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">; “eu estava inspirada e os versos eram
bonitos” (<i>id</i>., p. 26</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 150%;">)</span><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">, mostram que de um lado está o gosto
pela escrita e a leitura de vários gêneros literários, de outro a necessidade
de sobreviver à fome. Em tempos fáceis e difíceis, ela relata que o mais
importante é escrever.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E tamanha importância tem a escrita
também para Maura Lopes Cançado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Do hospício, a escrita de si em Maura Lopes Cançado<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Branca, rica, jornalista, herdeira de
terras e filha predileta do pai fazendeiro, Maura Lopes Cançado é autora de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Hospício é Deus</i>, publicado em 1965. Escrito
em forma de diário, a obra cobre o período de 25 de outubro de 1959 a 7 de
março de 1960. A narradora-personagem encontra-se na condição de interna no
Gustavo Riedel, hospital psiquiátrico situado no bairro do Engenho de Dentro,
no Rio de Janeiro. Até o momento da narração, é a terceira vez que ela se
interna nesse tipo de instituição, agora a seu pedido e com conivência do
médico.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ainda que o diário seja autobiográfico,
isso não contraria a afirmação de que o eu do discurso constitui uma
ficcionalização do eu da escritora, isto é, a autora cria a personagem Maura
Lopes Cançado. Além da radiografia do sistema psiquiátrico que é possível fazer
a partir da visão da narradora-internada, o diário reconstitui a trajetória de
uma carreira de doente mental, nos termos do antropólogo social Erving Goffman
(2018), registrando a dor da solidão, da culpa, da vergonha, do abandono e do
medo, presentes na experiência solitária e singular da loucura.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Uma vez adaptada ao cotidiano do
hospício, a autora ergue-se firme em seu propósito de denunciar a realidade
miserável de uma categoria excluída de todos os processos e dinâmicas sociais,
e o faz tanto na descrição subjetiva de suas angústias inerentes ao dia a dia
no espaço asilar quanto na história de vida e na fala de tantas personagens ali
esquecidas. Ao expor seu desconforto no mundo trágico da reclusão, a narradora
infere que a condição de louco e o fantasma da loucura prometem o grau máximo
de marginalização social. Isso porque a loucura pode atingir o ser humano
naquilo em que, a princípio, todos são de fato iguais – o juízo, o pensamento,
a razão – e arrastá-los à perda de si mesmos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Em toda a narrativa persiste o diálogo
entre sua condição de escritora, o contexto em que se formou e viveu, e a
realidade do sistema psiquiátrico. Conforme registra, o hospício, até mesmo
pelo seu aspecto físico, é um espaço que segrega a miséria e pobreza da maior
parte da população brasileira acometida de transtornos psíquicos, mas funciona
também como um espelho da sociedade, no qual se podem mirar representantes das
distintas classes sociais, igualados pela insanidade: <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: normal; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 4.0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: PT-BR;">Dificilmente alguma família está em condições de
manter, por muitos anos, um doente internado em sanatórios dêsse tipo. Daí
encontrarmos pessoas de alto nível social, cultural, até artístico, em meio a
indigentes para os quais o hospital oferece confôrto nunca antes experimentado
(CANÇADO, 1965, p. 71).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A escrita tem papel crucial nessa
jornada de autoconhecimento, traduzindo-se como uma bem-sucedida experiência
literária de enfrentamento da angústia e depressão. Posicionando-se no espaço
do hospício e como interna, mas sobretudo como alguém que deseja explorar o tema
e suas diferentes implicações, converte as páginas do diário em um espaço de
discussão sobre o fenômeno da loucura, problematizando os vários sentidos do
conceito, seus aspectos filosóficos e culturais e a hierarquização segundo o
estado de arruinamento psíquico. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Assim como Carolina, Maura se reafirma
como escritora que precisa cuidar de sua literatura e que conhece a força
literária de sua escrita. Formula conceitos sobre estética, moral, ética, e
registra suas reflexões acerca da criação e da crítica literária, de obras e
autores consagrados. Invoca fatos literários e artísticos da época. Nomes da
literatura brasileira, como Assis Brasil, Ferreira Gullar, Maria Alice Barroso
e outros participantes do movimento literário concretista, tornam-se personagens
de sua narrativa, registrando seu convívio intenso com o mundo literário. E o
diário é o espaço sagrado de que precisa cuidar: “meu diário é o que há de mais
importante para mim. Levanto-me da cama para escrever a qualquer hora, escrevo
páginas e páginas – depois rasgo mais da metade (...)” (CANÇADO, 1965, p. 260).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O trabalho com a palavra impõe-se como
uma exigência interior, de modo que sua maior luta consiste em equilibrar esse
movimento ao mesmo tempo de entrega – “Meu conto ‘O Sofredor do Ver’ está me
custando. (...) É o conto que mais tem exigido de mim. Considero-o muito
cerebral. Talvez seja minha obra prima” (CANÇADO, 1965, p. 86-87)<sup> </sup>–
e de resistência –“Até quando seria escritora em potencial? Até quando, se não
escrevo? Apenas um futuro me acenando brilhante? (...) Esta consciência me
mata. Não quero nada, não desejo nada” (<i>id</i>., p. 260).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Maura admite sua contumácia em falar de
si própria; e sua escrita se volta obsessivamente para o eu. Mas mesmo que se
afirme como egocêntrica, megalomaníaca e doente do eu, ela se trai ao
verbalizar o desejo de homenagear cada interna com um conto, desde que isso
pudesse melhorar um pouco a condição de cada uma, como o fez com Alda, no seu <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Introdução a Alda</i>, o qual despertou a
atenção de todos para o drama da colega. Sua consciência da condição de
escritora emerge nessa autodeterminação de escrever por aqueles que não
escrevem, falar pelos que não falam, enfim, tentar reconstituir um pouco
daquela realidade que, pensa ela, “só o cinema será capaz de mostrar” (CANÇADO,
1965, p. 275).</span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A importância das obras de Carolina
Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado não se restringe ao seu valor estético e
literário. Revestem-se de sentido político, pois extrapolaram o espaço da
subjetividade e atingiram o campo da cultura,<sup> </sup>auxiliando o leitor na
compreensão de si mesmo e de sua sociedade. No diálogo com a tradição literária
brasileira, essas obras vieram causar um estranhamento que acabaram por abrir
espaço não só para as suas falas, mas para outras vozes que, da mesma forma,
estavam e permaneceriam silentes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Carolina e Maura falam na condição de
personagens de si mesmas, vivendo e construindo suas narrativas-limites, mas
sobretudo sabem da força de sua escrita e arriscam-se a afirmar o valor da
narrativa e seu poder transformador, buscando sua emancipação dos sistemas
coercitivos que as mantinham prisioneiras da miséria e da loucura,
respectivamente. No entanto, ao falarem de si, impulsionadas pelo desejo de
gritar suas dores ao mundo, elas se debruçam sobre o sofrimento do outro.
Conscientes de seu papel, de sua opção e responsabilidade como escritoras,
reconhecem que essa sua condição exige que deem conta, em um âmbito mais amplo,
do sofrimento humano, dos meandros e dinâmicas de funcionamento da vida nos
limites, dos arredores da favela e dos muros do hospício.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="border: none; line-height: 150%; margin-bottom: 12.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 12.0pt; mso-border-shadow: yes; mso-padding-alt: 31.0pt 31.0pt 31.0pt 31.0pt;">
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="color: black; font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">REFERÊNCIAS<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">BAKHTIN, Mikhail. <i>Estética
da criação verbal</i>. Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">CANÇADO, Maura
Lopes. <i>Hospício é Deus</i>. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">GOFFMAN, Erving. <i>Manicômios,
prisões e conventos</i>. 9. ed. Trad. de Dante Moreira Leite. São Paulo:
Perspectiva, 2018.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">HOLQUIST, Michael.
Dialogismo e estética. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor
(Orgs.). <i>Mikhail Bakhtin</i>: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 115%; margin-bottom: 10.0pt;">
<span style="font-family: "arial" , sans-serif; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">JESUS, Carolina
Maria de. <i>Quarto de despejo</i>: diário de uma favelada. 8. ed. São Paulo:
Ática, 2004.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div style="mso-element: endnote-list;">
<!--[if !supportEndnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<br />
<div id="edn1" style="mso-element: endnote;">
<div class="MsoEndnoteText" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif;"><a href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=4986884430782165533&pli=1#_ednref1" name="_edn1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-size: 10pt; line-height: 107%;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
<span class="TextodenotaderodapChar">Assim como o jornalista e editor do livro
QD, Audálio Dantas, optamos por manter o texto fiel à sua escrita original,
embora essa seja ainda uma questão que suscita posicionamentos contrários
dentro e fora da academia.</span></span><o:p></o:p></div>
</div>
</div>
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporâneahttp://www.blogger.com/profile/02339150294387038689noreply@blogger.com0