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Ilustração de capa do portal Praça Clóvis, de Francisco Dalcastagnè Miguel |
A pesquisa e a crítica literária costumam ser entendidas como atividades solitárias. Fazemos a leitura do livro e em seguida o analisamos, dialogando apenas com outras obras, teóricas ou ficcionais, mas todas já prontas, sem espaço para questionamentos diretos ou dúvidas. Não é exatamente assim que as coisas acontecem, é claro, especialmente no meio acadêmico, onde a crítica nasce, muitas vezes, do debate em sala de aula, com enfrentamentos que passam por uma multiplicidade de interpretações, acolhendo diferentes perspectivas sociais e abordagens teóricas.
De qualquer forma, volta-se, ao final, para a escrita. É na escrita que concretizamos o conhecimento e ela é uma atividade solitária, especialmente se não houver um retorno.
"Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir, ela fez barulho?", se perguntavam os filósofos. Mas, "se eu faço uma pesquisa, publico um texto e ninguém lê, foi produzido conhecimento?" Talvez seja essa nossa principal aflição. O que fazer para que nossas pesquisas atinjam um público maior e adquiram relevância? Para que elas cumpram sua função? Mesmo que seja a de não permitir que um determinado autor, uma determinada língua, se perca na terrível máquina picotadora da História.
Penso que é possível ampliar o interesse em nossas pesquisas tanto dentro do meio acadêmico quanto em suas cercanias. Mas é necessário estabelecer estratégias diferentes para isso. Talvez incorporar aos nossos estudos outras produções literárias sobre as quais costumamos ter preconceitos. Mas também podemos ir para além do livro e incluir a reflexão sobre o próprio campo literário, em um debate aberto com os seus agentes – livreiros, bibliotecários, editores, tradutores, booktubers, os próprios autores. Com isso, as possibilidades de trabalho também se expandem, exigindo novas metodologias e permitindo aproximações inesperadas.
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Ilustração de Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, por Ruben Zacarias. |
EXPERIÊNCIA
Apresento, então, a experiência da construção do portal Praça Clóvis: mapeamento crítico da literatura brasileira contemporânea, um projeto que parte da ideia de que não temos que trabalhar sozinhos, que somos muito melhores quando somamos nossas forças, quando ousamos olhar juntos o mundo ao redor e imaginar novas perguntas e outras respostas possíveis, quando entendemos que nosso objeto de estudo cresce quando juntamos nossas habilidades, nossas ferramentas, para compreendê-lo.
O Praça Clóvis é um site que pretende mapear o que se produziu de mais significativo em termos literários no Brasil dos anos 1970 aos dias de hoje, livros e autores muitas vezes esquecidos, uma vez que os estudiosos da literatura contemporânea costumam ser impelidos em direção à obra mais recente, à próxima obra-prima, esquecendo escritores que passaram 20, 30, 40 anos pensando o Brasil e ampliando os recursos estéticos para falar sobre ele.
Visite nossa praça: https://pracaclovis.com/
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Ilustração de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, por Carolina Vigna. |
METODOLOGIA
O site é um projeto colaborativo, mais de trezentas pessoas estão envolvidas, até o momento, em sua montagem e disponibilização. É um trabalho imenso, que envolve não só a busca por informações, mas também um compromisso social e político, seja com a universidade pública brasileira, a partir do empenho na formação de novos pesquisadores, seja com os diferentes agentes do campo literário do país, que, informados de suas escolhas e seus vieses, podem buscar soluções que julguem necessárias.
Em sua primeira etapa, disponibilizada em maio deste ano, o site reuniu 230 resenhas críticas de romances, sempre acompanhadas de ilustrações feitas especialmente para elas por artistas de todo o país e do exterior.
A ideia era chamar a atenção para um grande conjunto de obras que estão deixando de ser lidas, seja porque não são reeditadas, seja porque o volume de novas publicações lança uma sombra sobre elas, seja porque o esquecimento é uma marca dominante na cultura nacional. O que não significa que esses livros e autores/as não tenham ainda muito a nos dizer.
Não há a intenção de abarcar toda a produção do período, mas atuar na seleção e reflexão sobre nossa literatura. Buscando escapar das ausências que notamos nos dados dos levantamentos anteriores realizados pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, estabelecemos uma série de critérios para a seleção dos livros.
Um deles é a representatividade das obras dentro de determinadas correntes estilísticas, temáticas e mesmo políticas. Outro, é o critério que envolve a representatividade regional, de períodos e de autoria. Por uma série de indicadores, sabemos que a literatura brasileira está muito concentrada no Sudeste – em especial, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A pesquisa tem a preocupação de reduzir este efeito, abrangendo obras importantes das diferentes regiões e unidades da federação.
Também buscamos observar um equilíbrio entre os diferentes períodos de publicação, evitando, por exemplo, um volume maior de resenhas sobre livros publicados nos últimos anos. E, em relação à autoria, está sendo dada uma atenção especial à produção de grupos minorizados, que costumam ter menor espaço de divulgação, como os negros, indígenas, LGBTs, moradores de periferia.
Um critério adicional é a repercussão dos livros escolhidos junto a críticos, leitores e outros produtores literários. Não são critérios infalíveis, é claro. Mas não pretendemos criar um corpus canônico para a literatura brasileira contemporânea, apenas abrir caminho para uma sistematização possível.
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Ilustração de A ocupação, de Julián Fuks, por Léo Tavares. |
EXPANSÃO
Em sua segunda fase, que já está em andamento e será disponibilizada em breve, o projeto visa ampliar a abrangência do mapeamento, logo do portal, incluindo outros romances, outros gêneros literários, como o conto, a poesia, a dramaturgia, as memórias, além de entrevistas com escritores do período (a partir do acervo disponibilizado pelo pesquisador italiano Giovanni Ricciardi de uma centena de entrevistas realizadas por ele nos últimos anos do século XX com os principais autores brasileiros da época).
Haverá ainda levantamentos sobre o funcionamento do campo literário brasileiro (passando por uma reflexão sobre o mercado editorial, as livrarias, a crítica, as feiras literárias etc.) e discussões sobre a tradução, edição e recepção da literatura brasileira contemporânea no exterior – inicialmente, serão trabalhados Itália, França, Reino Unido, Alemanha, República Tcheca, Japão, Estados Unidos e Argentina. Junto a isto, estamos disponibilizando traduções das resenhas para diferentes línguas, incentivando, assim o estudo da língua portuguesa e de nossa literatura no exterior.
Também estamos abrindo um espaço para os professores, buscando o necessário diálogo entre a universidade e as escolas. Há um formulário, aqui, que pode ser usado para sugestões e outras conversas.
É comum compreender as praças como dispositivos que tornam o espaço das cidades muito mais acolhedor. O acesso às praças também costuma ser reconhecido como a materialização do direito humano à cidade, enquanto espaço livre de inclusão social. A praça é um espaço público de circulação, de lazer, de encontro e convívio para os usuários que por ela passam. Com o tempo, seus frequentadores reconhecem nela um espaço de pertencimento, um lugar que permite a construção de uma memória coletiva. De forma análoga, e considerando a literatura como um direito humano, o projeto Praça Clóvis – nome que homenageia também uma canção de Paulo Vanzolini – pretende reproduzir esse espaço comum no ambiente virtual.
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Ilustração de Ikamiabas, de Regina Melo, por Espírito Objeto. |
Em função dos próprios critérios estabelecidos para a seleção das obras e dos assuntos a serem discutidos, esse projeto tem um caráter inclusivo. Busca-se tensionar o cânone, evitando os mecanismos que naturalizam obras e autores como pretensamente representativos, ao passo que produzem o apagamento de toda uma literatura produzida à margem, que não se beneficia dessa dinâmica.
Estamos, assim, intervindo em uma discussão que não é de hoje sobre a distorção de perspectiva que faz com que muito do que se pensa e se produz seja apagado do retrato convencional da literatura brasileira (e não só dela). Em 1904, Euclides da Cunha escrevia ao seu pai desde Manaus, capital do Amazonas: “a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”.
A crítica mordaz do autor apontava o risco de se reduzir a percepção sobre a realidade do país a essa perspectiva tão estreita – o Rio de Janeiro dos intelectuais do início do século XX (somando-se à elite da São Paulo dos dias de hoje, acrescentaríamos). Dizer que o Brasil chega muito mais longe do que costumamos imaginar é pouco se não nos esforçarmos para ir até lá.
O site Praça Clóvis apresenta, assim, um convite para aprofundar a reflexão coletiva sobre a literatura brasileira contemporânea, com a disponibilização pública de um acervo ampliado de informações e de leituras sobre a produção do período, reforçando o vínculo entre escrita, crítica, mercado e campo literários – e com a sociedade brasileira.
O projeto mantém ainda um perfil no Instagram (@pracaclovis), um podcast no Spotify e uma newsletter no Substack.
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Ilustração de Dois irmãos, de Milton Hatoum, por Kléber Sales. |





