24 de junho de 2017

A literatura de autoria indígena

Marina Sousa Teixeira


Foto: Fábio Nascimento / Mobilização Nacional Indígena


"Aquela sociedade tinha alguma coisa que nós perdemos". 

Darcy Ribeiro


A primeira experiência que eu tive relativa à cultura indígena foi na pré-escola, quando a turma confeccionou um cocar de papel e o pintou com giz de cera. Saímos correndo pelo colégio, batendo com a mão na boca para fazer aquele barulho supostamente selvagem. A atividade só acontecia no Dia do Índio. E o que tem de errado com essa brincadeira de criança? O problema é ser a única atividade proposta que tem como objetivo retratar o indígena. Essa brincadeira é uma prática escolar que acompanha algumas gerações. Desde muito cedo é criada e enraizada uma alusão à cultura indígena com uma vestimenta de falsificação.

Essa ideia continua nos anos escolares posteriores. No ensino médio, lemos Gonçalves Dias, cujas descrições só nos ajudam a formar a imagem de um índio nu e robusto, protetor da floresta e destemido, armado com seu arco e flecha. E a esse ideal de índio devemos combinar a filosofia rousseauniana do bom selvagem, com a finalidade única de decorar conceitos porque é cobrado no vestibular. A finalização desses anos escolares inclui ler Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. O momento aqui é de catalogar um herói que corresponde ao povo brasileiro e Mário de Andrade constrói um índio plural em raça, etnia, cultura, e claro, preguiçoso. Porém, o escritor indígena Daniel Mundukuru faz uma observação importante: na mitologia indígena de Roraima, Macunaima – sem acento – é um ente legislador que nada tem a ver com a versão literária de Mário de Andrade.

O percurso que a educação brasileira segue sobre a história indígena faz com que toda a população não-indígena se fixe na ideia de que o lugar do índio é exclusivamente na floresta. A inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino é obrigatória e está garantida por lei. Mas por que esse equívoco no conteúdo escolar continua acontecendo, com as práticas indo na contramão do que dizem as diretrizes? Porque a perspectiva que é passada e trabalhada em salas de aula não é de autoria indígena. Enquanto essas vozes e esses espaços continuarem ocupados pela perspectiva do invasor, as ideias reproduzidas serão de preconceito e de estereótipo.

O que deve ser trabalhado é a consciência de uma literatura indígena que vem sendo produzida há mais de trinta anos e que, na minha saga educativa, com todos os meus privilégios, só tive acesso no ensino superior. A produção literária indígena é expressamente contemporânea e carrega um viés particular, uma afirmação de uma identidade coletiva e real, referente a cada povo. A língua portuguesa, que foi imposta a esses povos de diferentes formas, é usada por eles próprios para travar uma comunicação de continuidade e resistência presente nessas culturas. É o índio como protagonista da sua história, com acesso a novas tecnologias da informação, sustentando a ideia de “eu posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou”.

Ler literatura indígena é adentrar um mundo desconhecido, repleto de diversidade. As cores e os cheiros quase ultrapassam as páginas. É fazer a mente passar por um processo de criação de formas e objetos antes inimagináveis, não deixando de ser desafiador. É notar que os índios ainda conseguem enxergar coisas que nossos olhos já perderam, dado nosso distanciamento com a natureza. E, acima de tudo, afirmar que temos um compromisso em ajudar e aprender a perpetuar essa história de resistência.

18 de junho de 2017

Bissexualidade e a necessidade de dizer

Isadora Maria Santos Dias


Imagem: Toni Frame

“Mas, fulano não era gay?”, “Virou lésbica?”, “Voltou a ser hetero?”, “Você só está com medo de sair do armário e se assumir gay/lésbica.”, “É só uma fase!”, “Você pre-ci-sa se decidir!”. A cada dez bissexuais, vinte já se perceberam ou perceber-se-ão tendo que lidar com esse tipo de colocação sobre sua orientação sexual. Uma afirmação estatisticamente incorreta que, entretanto, não deixa de ser verdadeira.
A compreensão da bissexualidade como derivação ou “mistura” de hetero e homossexualidade faz com que, no senso comum, esta orientação seja vista como impossível e/ou incompleta, uma vez que para heterossexuais a bissexualidade seria um "disfarce para esconder a sua real homossexualidade” e para homossexuais significaria “um heterossexual confuso e intruso na comunidade LGBT”. Nesse sentido, haveria uma dupla discriminação: por parte das pessoas enquadradas na norma da matriz heterossexual e também por parte de quem foge a ela.
Assim, este embate entre forças monossexuais — ou seja, de pessoas que se atraem e se relacionam romântica e/ou sexualmente com apenas um gênero — acaba por violentar e, por diversas vezes, apagar a bissexualidade. Não há espaço para quem se atrai por mais de um gênero. Não há espaço para quem, portanto, se identifica como bissexual. “Você pre-ci-sa se decidir!", e por se decidir entende-se se sentir atraída/o e se relacionar com um só gênero.
Não havendo espaço para a compreensão de que a bissexualidade é uma orientação sexual válida, é provável, também, que não exista muito espaço para narrativas sobre personagens bissexuais nas quais a bissexualidade não é negativada. São exemplos as incontáveis histórias, no Brasil principalmente em telenovelas, cujas personagens que estão em um relacionamento heterossexual passam a se relacionar com alguém do mesmo gênero e “viram gays ou lésbicas”. Ou, ainda, a personagem num relacionamento heteroafetivo que passa a se relacionar, fora do casamento, com alguém do mesmo gênero e “vira gay ou lésbica”. A identificação com a bissexualidade é impensável, e, ainda que em raros casos a personagem se nomine bissexual, a sexualidade dela será questionada e apagada.
Ainda sobre narrativas na mídia, o relatório The Where We Are on TV? (Onde nós estamos na TV?, em tradução livre para o português), produzido pela Organização Não Governamental GLAAD, monitora as representações da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) na mídia. A partir de dados estátisticos, o relatório investiga a diversidade em séries televisivas produzidas pelos maiores estúdios dos Estados Unidos da América.
Esta análise revelou que, no período 2015-2016, dentre as 70 personagens LGBT presentes nas principais séries de televisão dos canais de TV aberta NBC, Fox, ABC, The CW e CBS, 23 são lésbicas (33%); 33 são gays (47%); 12 mulheres são bissexuais (17%); e 2 são homens bissexuais (3%). Totalizando 20% de personagens bissexuais e 80% homossexuais. No relatório do ano seguinte 2016-2017, houve um aumento de 20% para 30% de personagens bissexuais. Contudo, a representação negativa se manteve.
De acordo com este relatório, as personagens bissexuais são geralmente retratadas da seguinte forma: não confiáveis, propensas a infidelidade, e/ou à falta de moralidade; personagens que usam o sexo como meio de manipulação ou não possuem a capacidade de manter relacionamentos duradouros; possuem comportamento autodestrutivo; e a atração dessas personagens por mais de um gênero é abordada como temporária e raramente retomada ao longo do enredo.
Em literatura, e, mais especificamente, em literatura brasileira contemporânea, esse tipo de representação não tem se mostrado diferente. Trabalhando a partir dos dados de extenso levantamento sobre autoras/es e personagens de romances brasileiros publicados por grandes editoras entre os anos de 2005 e 2014, retirados da pesquisa "A personagem do romance brasileiro contemporâneo", coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, nota-se que em um conjunto de 303 romances, com 1140 personagens analisadas, 50 personagens são identificadas como bissexuais, das quais 32 das personagens são mulheres e 18 homens. A maioria dos autores são homens – de um total de 39 romances, 23 foram escritos por autores e 16 por autoras, sendo que Carola Saavedra, Flávio Braga e Marcelo Carneiro Cunha aparecem duas vezes cada como autores.
Tendo lido até agora pouco mais de um terço desses livros, a minha impressão geral e inicial tem sido a de que a bissexualidade é uma sexualidade ainda sem nome. Entre personagens protagonistas e secundárias, poucas são as que se dizem bissexuais com todas as letras. Muitas vezes, portanto, a bissexualidade depende do entendimento do leitor de que a atração sexual e/ou romântica da personagem por mais de um gênero é válida. Temos com isso um problema de representação: como identificar personagens bissexuais, se muitas vezes essas personagens não usam esse termo? Como dizer que uma narrativa representa uma perspectiva sobre bissexualidade, se há um espaço ambíguo na interpretação da história? E, principalmente, como esperar que essa leitura aconteça dentro de uma sociedade que sistematicamente invisibiliza bissexuais?
Uma explicação plausível para o não uso do termo “bissexual” por personagens que se relacionam com mais de gênero pode ser o estilo da autoria, uma escolha narrativa. Ou o que Kenji Yoshino denomina apagamento bissexual: mecanismos sócio históricos, políticos e discursivos que tornam a bissexualidade uma forma impossível e distorcida de identificação e expressão sexual.
Seja em representações associadas a estereótipos negativos na mídia, seja na ausência do termo em narrativas, o que tenho observado até aqui é a necessidade de se falar sobre a bissexualidade para além dos discursos médicos, para além da figura do bissexual "insaciável por sexo”, “indeciso”, “pouco confiável” ou “proliferador de doenças sexuais devido à conduta sexual exacerbada”, porque esses têm sido o lugar-comum sobre o assunto. E esses clichês têm invisibilizado, deslegitimado e generalizado um grupo muito diverso de pessoas.

Ao longo desse texto, talvez, eu tenha usado exaustivamente os termos “bissexual/bissexualidade”. Em minha defesa, admito que foi proposital.


16 de junho de 2017

Aquarius: diante da dor dos outros

Jorge Luiz Miguel


Cena do filme Aquarius

Algumas coisas são imperdoáveis. Em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, a cena em que a personagem da empregada doméstica Ladjane, interpretada por Zoraide Coleto, mostra à família da patroa a foto de seu falecido filho é uma delas. Que a câmera não se dirija ao rosto dessa mãe, dessa pessoa, que a câmera não encare este olhar, não encare sua dor, é o primeiro imperdoável. Que as outras personagens não retornem com uma palavra, um gesto de reconhecimento à dor daquela que está diante deles, este é o segundo imperdoável. Evidentemente, é apenas um filme, à nossa frente são mostradas personagens. Mas isso não resolve a questão. A chave está no advérbio “apenas”, que é inapropriado. A representação não desculpa seu autor, como se fosse menos, porque a representação talvez seja até mais.
Kleber Mendonça Filho diz fazer um cinema sobre aqueles a quem conhece bem, os da classe média alta, o meio onde ele é um peixe dentro d’água. Ele conhece a burguesia pernambucana, derivada direta da classe latifundiária local. Assim sendo, o diretor explicaria a cena descrita acima dizendo que, por fazer um filme que fala dessa classe, o faz da perspectiva dela, filmando com o olhar “dela”. Daí a negação da dor alheia.
Há concepções de cinema, e liberalmente cada um pode ter a sua, mas com consequências. Fato é que não existe câmera neutra, porque não existe olhar neutro, e o diretor sempre mostra o que quer deixar ver. O diretor, onde cala, está sempre consentindo. Na arte é assim. Quando deixa falar sem réplica, também. A fala das personagens favorecidas pela montagem do filme, quando não é disputada por nenhum discurso concorrente que tenha espaço de fala torna-se a voz do autor. Falo do autor enquanto ser público; evidentemente não estou inquirindo as crenças políticas e sociais da pessoa Kleber; estou dizendo que o diretor Mendonça Filho se posiciona com seus filmes no campo do cinema e da cultura, marcando aí posições. É a concepção de mundo, de vida e de sociedade que se extrai do filme Aquarius o que me interessa.
Vamos então a Aquarius, filme bem educado. Podemos dizer algo que não seja tão educado quanto este filme? Podemos, antecipando nossas conclusões, e abusando de adjetivos – todo bom escritor sabe que deve poupar os adjetivos, deixando as qualificações brotarem na mente do leitor ao invés de impô-las em explosões retóricas – dizer que Aquarius é um filme conformista e burguês, falsamente heroico, e bem feito.
Pois então aí está um filme com uma heroína. Clara, a personagem de Sônia Braga, um monumento de integridade, de vida bem vivida, de independência e de autonomia. A personagem que “resiste às pressões”. Quem é Clara? Isto está dito em toda parte. Isto é o que o filme mostra. Que tal outra pergunta?
Quais as condições materiais de sobrevivência de Clara? Quem garante a reprodução dessa personagem? O dinheiro, sim o dinheiro. Mas algo além do dinheiro, embora com a sua mediação. Ladjane. A empregada doméstica, trabalhando há dezenove anos para a patroa Clara. Aquela que vela pelo sono de Clara, quando esta dorme. Aquela que lhe traz a primeira bebida quente da manhã. Ladjane preparou esta bebida quente. Ladjane ajudou a criar, não sabemos em que medida, os filhos de Clara. Ladjane cuida do neto de Clara. Ladjane conta a Clara coisas que ela não sabe sobre as maldades da construtora Bonfim. Ladjane é a condição de possibilidade da existência de Clara, morando sozinha em um apartamento de um prédio esvaziado, contra seus ex-vizinhos e contra parte de sua família.
Dada a importância real da personagem Ladjane no universo do filme, seria de se esperar um tratamento mais digno da personagem, e da relação entre esta e Clara. O diretor, que está muito ocupado filmando a beleza de Sônia Braga – e ele filma esta beleza belamente – , não se apercebeu disso. O silêncio que encobre a personagem Ladjane, o pesado manto de silêncio que a envolve, escondendo o peso dessa personagem no universo do filme, este silêncio é uma injustiça.
Que direitos tem a personagem Ladjane de ter seus sentimentos reconhecidos e sua história contada? Como ela é mostrada pelo filme? Ladjane é o suporte que permite à protagonista Clara expor certos afetos. Recebe um carinho aqui e ali, como aqueles dados a um gato ou um cão. A ela não é dada a palavra em nenhum diálogo. Dela não sabemos nenhuma opinião. Mas ela é capaz de gestos de profundo afeto, como quando beija a foto do filho morto, em sua festa de aniversário. Ou nas várias vezes em que demonstra sua admiração por Clara, tentando protegê-la das ações da construtora, amparando-a, compartilhando impressões sobre a estranha situação de vida de ambas.
Engraçado eu escrever vida de ambas. Porque pelas escolhas do diretor, sabemos qual vida importa, e qual não. Tudo devemos saber sobre Clara, não precisamos nos importar com nada de Ladjane. Esta é a lição – silenciosa, subliminar – de Aquarius.
Há muitas outras coisas no filme, por certo, inclusive coisas boas. Há outros erros, que são todos perdoáveis. Este é o imperdoável.
A fratura do filme se aprofunda na cena que comentei inicialmente, tornando-se irremediável. É o ponto mais dolorido. Por que a câmera não mostra a personagem, que é filmada de costas, com até mesmo sua cabeça fora do quadro? Por que não mostra a foto do filho de Ladjane? E por que Clara, que deve tanto a Ladjane – que se apoia na empregada muito além daquilo que é contabilizado monetariamente e que, portanto, deve a ela muito mais do que ela paga –, por que Clara, neste momento, não tem uma palavra para sua leal empregada? Não sei. Perguntem ao Kleber.
Resta a beleza inegável do filme, a perfeição formal de seus recursos. Mendonça Filho, que segundo consta é crítico de cinema bem mais e bem antes de ser um realizador, é sem dúvida um mandarim do filme, uma espécie de erudito impecável em seu repertório cinematográfico. Vocês sabem, os eruditos são aquela espécie de burguês manso e dedicado, historicamente ultrapassado, que hoje pode reviver para manter artificialmente viva alguma arte, como a arte de filmar. São sempre impecáveis na sua área de competência os eruditos. Como o personagem do romance de Elias Canetti, o erudito especialista em chinês e amante dos livros em Auto-de-fé. Resta saber de que serve esta arte que respira por aparelhos.
Ah, sim, a perfeição formal de Aquarius. Sônia Braga está muito bem. A fotografia do filme é belíssima, cada tomada é uma bela imagem. As cores são ótimas. Mendonça Filho sabe conduzir situações de suspense que nunca dão em nada. O filme vive desse recurso ao suspense, desse sobressalto que é suscitado e contido seguidamente. Nisso o diretor é um mestre. A música também se encaixa de forma primorosa. Um primor formalista, no som e na imagem.
Como retrato de uma personagem excepcional e sedutora, o filme também funciona. Mas na feitura desse retrato monumental da sua heroína, Mendonça Filho consegue simplificar e distorcer as questões políticas do Brasil. Ele reduz as questões políticas a questões morais, e reduz a moral ao comportamento. O Brasil se cola ao corpo de Clara. Ela quer morar onde ela quer morar. Ela tem cinco apartamentos, uma aposentadoria e outros patrimônios. Ela incorporou as conquistas da moral sexual revolucionária que libertou uma fração das mulheres de certos constrangimentos. Ela tem uma sensibilidade estética apurada expressa em seu gosto musical e na decoração refinada da sua casa. Ela é fiel ao amor a seu marido, mesmo depois de morto, e a seus valores. Ela pode gozar. Os valores de Clara não contradizem seu prazer. A visita ao cemitério do finado companheiro e o intercurso sexual com o garoto de programa não se contradizem, expressam a força da personagem. Clara conciliou o presente com o passado, o princípio do prazer com o princípio de realidade. Ainda assim, quando precisa tratar humanamente a pessoa que mais a apoia, sua empregada, Clara não consegue.
Numa sociedade injusta, onde a representação cultural e política foi, desde sempre, negada a vastos contingentes da população, o artista se beneficia do prestígio emprestado aos que portam a palavra não apenas em seu nome, mas em nome dos outros. Como, no exemplo de Rancière, o dramaturgo da Grécia Antiga que dá a palavra ao escravo em sua peça de teatro, numa sociedade em que o escravo não pode tomar a palavra da forma que o faz enquanto personagem da peça, cumpre um papel social que o ultrapassa. Este é o valor da arte, seu alcance para além do que seriam caprichos de um ser humano idiossincrático; a fonte de sua ressonância, no real que ela toca, dizendo o não dito, dando forma ao que seria informe. Podem adjetivar esta visão como preferirem – socialista, modernista, passadista, paternalista, militante. Mas é preciso admitir algo se passou no transcurso da história da arte quando alguma arte permitiu que por ela passassem fluxos – existenciais, políticos, sociais – que não correriam em outros canais oficiais.
Essa definição de arte política tem limitações. Corre o risco de ser um engodo, ou uma máscara. Porque não é o escravo que efetivamente toma a palavra, mas a personagem de um escravo, o que está longe de ser a mesma coisa; porque não podemos confundir os oprimidos com a representação que deles certos artistas fazem; porque o artista, suspeito desde a origem, sempre pode estar falando a mais ou menos, colocando ou tirando as palavras da boca da personagem oprimida; porque tudo pode ser de mentirinha, da carochinha, ou pior, um complô conciliatório, tolerância repressiva, algo assim. Quando a personagem Paulo Martins põe a mão na boca da personagem “povo”, do sindicalista sem nome filmado por Glauber em Terra em Transe, em 1967, já estava colocado em questão o problema, o limite já está claro.
Este limite, uma parede transparente como o vidro de um aquário, é ultrapassado quando são sujeitos oriundos dos contingentes de oprimidos que se tornam artistas e fazem sua própria representação. Hoje ninguém precisa ocupar o lugar do artista que “fala por todos”, do corajoso que ultrapassa fronteiras, Prometeu que ilumina os ignorantes etc. Mas precisamos ainda assim de coragem como um valor humano que segue em falta, entre artistas e não artistas.
Se o lugar do artista que fala pelos outros já não é exclusivo, se os oprimidos falam por si e até demais, como diriam alguns bons homens brancos que se descabelam de culpa em meio a tantas histórias e acusações, o que fazer?
Há muitas coisas para se fazer. Algo a não se fazer é fingir que o problema da relação entre representação artística e cultural das personagens oprimidas numa sociedade desigual não existe. Afirmar ser classe média podendo assim filmar os da classe média entre si e silenciar personagens subalternas não é uma boa solução. Voltamos a um elitismo que é pior que o populismo do período anterior. É preferível ser o Glauber Rocha ou ser o Leonel Brizola ou até ser um homem branco bom e culpado a fingir que não se tem nada a ver com isso e filmar sua classe como se ela não devesse nada às demais.
Por isso podemos dizer: Kleber Mendonça Filho é um diretor competente. Aquarius é um filme bem feito, mas nunca será um filme bom.


10 de junho de 2017

Notas sobre Moonlight, de Barry Jenkins, e masculinidades negras

Waldson Gomes de Souza

Cartaz do filme Moonlight (2016)


Os estudos sobre gênero focados em masculinidades são poucos. De um modo geral, ainda prevalece a ideia de que estudar gênero é, necessariamente, falar sobre mulheres, mas os homens estão inseridos na mesma sociedade patriarcal e machista. Não podemos supor que as construções de gênero não afetam também o gênero masculino. Principalmente quando pensamos de forma interseccional e entendemos que não existe apenas um tipo de masculinidade e que noções de desigualdade ganham novas configurações dependendo do contexto. Osmundo Pinho, no texto “Qual é a identidade do homem negro?”, diz que existe um modelo ocidental de masculinidade hegemônica: o homem branco, heterossexual e de classe média. Sendo assim, homens negros, homossexuais ou pobres ocupam posições subalternas perante esse modelo.
O discurso racista moldou um tipo de masculinidade negra fundamentada em atributos físicos que desumaniza, objetifica e vê o homem negro como um corpo forte e com aptidão para a realização de trabalhos braçais. Quando não está sendo representado como ladrão ou traficante, o homem negro é hiperssexualizado. O mito do órgão genital avantajado em relação às outras raças o torna um animal que só serve para sexo, atribuindo-lhe uma ideia de virilidade nata. E essa hiperssexualização também ocorre em relações homossexuais, pois não é um problema exclusivo da heteressexualidade e sim da branquitude.
Recentemente, Moonlight (2016), de Barry Jenkins, nos trouxe questões relevantes para pensar a intersecção entre raça, sexualidade e masculinidade. Um filme importante não só por suas qualidades técnicas, mas também por ter repercutido e alcançado um público grande, principalmente por ter ganho o Oscar em três categorias, incluindo de melhor filme. Digo isso porque filmes com essa temática geralmente circulam somente em festivais, não ganham estreia mundial e alcançam um público restrito ou já interessado nessas discussões. Como é o caso de Blackbird (2014) e Naz & Maalik (2015), também produções estadunidenses com protagonistas negros gays e que, até onde sei, não foram lançados no Brasil.
Em Moonlight, a história de Chiron é dividida em três partes: infância, adolescência e vida adulta. Não há marcações temporais, mas tudo indica que há intervalos de aproximadamente dez anos entre cada parte. O filme todo é marcado pelos conflitos de Chiron em relação a sua sexualidade, seu sentimento de não pertencimento e seu isolamento, potencializados por constantes perseguições e violências que sofre na escola. A postura sempre cabisbaixa e as poucas palavras são características evidentes nas três fases, mas seus problemas não se encerram em questões sobre sexualidade. A família desestruturada, a relação conturbada com a mãe viciada em drogas e a ausência de uma figura paterna são elementos presentes na trajetória de Chiron. Juan substitui essa ausência paterna por algum tempo, procurando cuidar do garoto e lhe ensinando aquilo que considera importante. E mesmo após a morte de Juan, sua casa continua sendo um lugar de refúgio para Chiron.
A adolescência mostra a continuação das perseguições na escola e uma relação ainda mais complicada com a mãe. No desenrolar da narrativa, Chiron e Kevin, seu amigo mais próximo, se beijam sob a luz do luar. E o que poderia ser o início de uma relação entre os dois é quebrado com os próximos acontecimentos. Terrel, principal agressor de Chiron, propõe um desafio a Kevin que consiste em bater em outro garoto até deixá-lo no chão. Terrel escolhe justamente Chiron e a cena seguinte é uma das mais devastadoras. Kevin faz o que Terrel lhe pede. Kevin bate em Chiron, que se levanta após cada soco. Kevin pede para Chiron ficar no chão para aquilo acabar logo. Chiron quer saber até onde Kevin irá. Chiron e Kevin, amantes em um dia, vítimas de um sistema heterossexista opressor no outro. O fim da segunda parte é a comprovação do que pode acontecer com alguém que é reprimido e violentado constantemente. A resposta de Chiron é decidida e também violenta.
Na vida adulta, Chiron assume a masculinidade esperada, na verdade, uma masculinidade que lhe foi exigida desde criança. Uma posição que, confortável ou não, retira-o de um lugar de opressão a partir do momento em que suas características não indicam mais sua sexualidade, como ocorria na infância. As semelhanças do Chiron adulto com Juan são perceptíveis e reforçam como este foi uma figura importante e influente em sua vida. Não temos dados de quanto tempo Chiron passou na prisão, mas vemos as consequências do acontecimento traumático da adolescência. Chiron se isola e não desenvolve outras relações amorosas ou sexuais além daquele único momento com Kevin.

Em sua primeira cena do filme, Chiron aparece correndo de outros garotos que o chamam de “viadinho”. Ele só quer fugir o mais rápido possível e se esconder, se for pego, a próxima agressão será física. Não aparenta ter nem dez anos, é pequeno, magro, e não entende o significado daquela palavra que insistem em chamá-lo. Mas sabe que é algo ruim, indesejável. A palavra é dita com muito ódio. Como não seria ruim? Fugir e se esconder: soluções imediatas. Uma vida inteira lidando com a impossibilidade de dar tempo ao tempo e encontrar sua própria identidade. Exigiram tanto uma heterossexualidade de Chiron que ele se enquadrou em um tipo de masculinidade esperada, assumiu um dos estereótipos do homem negro. O reencontro com Kevin e o desfecho do filme criam um tom de esperança, nos dizendo que talvez Chiron fique bem depois de tanto tempo. Talvez, finalmente, Chiron possa ser quem ele é.

3 de junho de 2017

MC Soffia e Betina: meninas negras que discursam

Dalva Martins de Almeida

Imagem: Ruud Van Empel

Como pesquisadora de literatura infantil brasileira de autoria negra, certamente não é a primeira vez que leio Betina, de Nilma Lino Gomes. Porém, procurei desta vez fazer uma leitura conjugada: enquanto lia Betina, escutava a música “Menina Pretinha”, da MC Soffia, rapper paulista de doze anos. Ao ler o texto, parei na página nove, que mostra a imagem da protagonista refletida em um grande espelho, cabeça e metade do tronco.

Ver a imagem de Betina através do espelho não é somente agradável aos olhos: de fato, ela é uma menina linda! No entanto, ao expressar apenas que a menina negra que se mostra no espelho de sua sala, é bonita, bem arrumada, limpa e feliz, pode significar que estou somente reproduzindo o discurso do colonizador. Para fugir dessa armadilha, recorro a algo dito por Judith Butler em torno do corpo desvalorizado da mulher, que é o corpo abjeto: ele é excluído, negado.

A despeito do que era reservado à menina negra em narrativas brasileiras, como exemplo, no conto Negrinha de Monteiro Lobato, que apresenta uma menina negra, mirrada, usando trapos, faminta, a quem o narrador chama ironicamente de órfã, e morava em um canto escuro da cozinha da casa da bondosa sinhá, Betina mora com a família, tem uma infância cuidada, vai para a escola, tem espaço e voz em sua casa, na escola e demais ambientes em que frequenta. Então, nos perguntamos: mas isso não é o que toda criança merece, ser bem tratada?

A resposta é complexa: envolve o modo como nós, brasileiros, lidamos com as estruturas de racismo em nossa sociedade, isto é, como praticamos a tal democracia racial no Brasil. Ao nos declararmos miscigenados, frutos da combinação das três raças: indígena, branca e negra, estamos repetindo aquele mesmo discurso velado: somos todos iguais. Não, não somos todos iguais no Brasil, pelo simples fato de que as oportunidades não são iguais. E lembro: os meninos negros são a maioria da população carcerária brasileira.

Betina comunica ao mundo que a pessoa negra que está ali refletida, possui um corpo não abjeto.  Ao invés de denominar que ela é bonita, usa vestido azul e possui um lindo sorriso, podemos e precisamos ler em suas entrelinhas o que a personagem quer nos revelar. Uma leitura possível, é que rompe com o processo de branqueamento praticado pela pessoa negra para ser aceita pelo outro que a oprime, ao mostrar as suas tranças produzidas pelas mãos de sua avó, que representa, entre outros, a guardiã das memórias e culturas africanas. Ao trançar o cabelo da neta, a avó lhe conta os segredos africanos dos seus antepassados. Quando se mira no espelho, a menina quer parecer com ela mesma, o seu cabelo é o modo peculiar de se fazer presente no mundo.

O discurso de Betina se legitima no modo como ela se enxerga: um sujeito que pode transgredir com o silenciamento, com os processos de assimilação. Desse modo, a cor da pele, a textura do cabelo, os traços europeus - padrões que foram, sutilmente, sedimentados em nossa cultura - precisam ser combatidos. Frantz Fanon alertou-nos em relação aos processos de racismo na infância negra, que injeta ali seus contornos definitivos. Betina, ao olhar para o espelho, discursa pelo corpo, discursa pelo cabelo, e ressignifica o olhar sobre a menina negra.

Por isso, não é a postura de subalterno a que vemos surgir em Betina, pois percebemos a sua voz. Talvez porque reli o texto de Gomes juntamente com a canção da rapper, surgiu um diálogo entre as duas: Soffia fala com Betina: “Menina pretinha, exótica não é linda/Você não é bonitinha/Você é uma rainha”. Ao quebrar com o discurso do exótico (o que fala de fora), a rapper discursa que o que a menina negra quer não é a assimilação, ela busca pertencimento.

Confesso que gosto muito do texto da Ana Maria Machado, sua escrita é exímia. As leituras de suas obras infantis são ritmadas e nos encantam. No entanto, causa-me um estranhamento ao ver o Coelho, que é branco, olhando a Menina Bonita do Laço de Fita, preta, linda, dançando balé. Ele, o coelho, quer saber o porquê da menina ser bonita, e essa lhe responde de modo alheio, sem saber exatamente o que dizer. O olhar do coelho, é o que aponta MC Soffia, é o olhar do outro, do exótico.

Nesse contexto, Betina não é bonitinha, talvez a rainha cantada por MC Soffia. Destarte, rainha significaria aqui, quem sabe, um meio de dizer que muitas meninas princesas, muitas mulheres rainhas vieram nos tumbeiros, subtraídas do convívio de suas famílias e de suas pátrias na diáspora negra. Então, esse adjetivo de rainha cabe.

Na construção da identidade negra feminina infantil cabem outros elementos lembrados pela rapper: a necessidade das meninas negras brincarem com bonecas negras, as Makenas, de ouvir histórias de griôs, ou de quem faz esse papel, das culturas africanas. A rapper também discursa que é preciso pertencer. Ou seja, assumir que: Sou criança, sou negra. Sou resistência. Para tanto, é preciso se reconhecer negro, saber que as histórias africanas foram apagadas dos livros didáticos por décadas, ou, quando presente, nunca eram lidas nas escolas. As histórias dos negros foram contadas com filtros da colonização, da indiferença. O preconceito praticado no Brasil foi sutilmente alimentado pela visão de que tudo relacionado ao africano e seus descendentes relaciona-se aos processos de inferiorização.

Quantas meninas negras são ainda escravizadas pelas amarras da negação? Todavia, numa força contrária, muitas mulheres e meninas negras proferem outros discursos. Acredito que Soffia e Betina teceram um longo diálogo. A nossa fala se interrompe aqui. Não se conclui, no entanto.