27 de maio de 2017

O corpo em que habito

Edma de Góis

Imagem: Educação pela pedra, de Cinthia Marcelle


Moro em uma nova cidade, meu sexto pouso até aqui, e como é de se esperar, tenho experimentado a transmutação do olhar de turista para o de quem enxerga o lugar em que se habita sem filtro ou retoque, com a dureza que lhe garante a existência real. Nessa travessia, que a vida me ensina ser bem mais complexa que a simples troca domiciliar e o encaixotar bagagens, não há aprendizado melhor do que andar de transporte público ou a pé. Isso porque o que mais me interessa, desde um tempo que eu nem lembro onde começa, sempre foi o Outro. E esse Outro me chega de muitas maneiras nesses espaços de mobilidade; é o vendedor de doces de corpo visivelmente cansado dentro do ônibus, são mulheres, muitas e sempre a maioria, que passam apressadas com sacolas e bolsas indo e voltando do trabalho, são jovens e adultos que, ao fechar a sinaleira, fazem malabares, sopram fogo, sugerem que nos sessenta segundos de sinal vermelho nossos olhos se percam à procura das bolas no ar. Tem também os idosos que sobem no contra fluxo do enxame de trabalhadores que tentam subir no coletivo e os vendedores de várias mercadorias nas paradas pelo trajeto a fora.

O ônibus, qualquer que seja a linha, segue seu rumo cruzando pelo caminho com uma legião de pessoas que sobrevivem na informalidade, vivendo a urgência de cada dia num mundo aparentemente paralelo e distante das discussões no Congresso Nacional. É que, muitas vezes, não dá tempo de debater sobre partido de oposição ou base do governo, sobre o golpe contra Dilma ou a queda de Temer, os irmãos Batista e a carne de papelão financiada pelo BNDES. A urgência do dia é a venda da manhã, que garante o almoço, e a da tarde, que assegura o jantar. E assim a vida vai se orquestrando entre o balanço do coletivo e a venda apressada para uma clientela também trabalhadora.

O que vejo do meu assento junto com formas, cores, idades e gêneros é que toda ação política sacrifica o corpo. E aqui me refiro a política no sentido mais restrito possível (longe portanto do verbete de Norberto Bobbio), o que tange a representação a partir do sistema político implementado no país, no nosso caso uma república federativa presidencialista com as pernas bambas depois de um ano de muitas rasteiras e das delações que escandalizam a cada dia a população dadas as cifras bilionárias. É no corpo que a pobreza, a fome, a dor, a desesperança e mesmo a resistência se manifestam. É nesse corpo que violências também são investidas, como afirmou Michel Foucault há mais de quarenta anos.

Outro dia, enquanto esperava um ônibus para a universidade, acompanhei a abordagem policial na faixa oposta em que estava. Não se admirem, mas em Salvador há um contingente policial especializado em abordagens nos coletivos, segundo justificativa oficial, devido às estatísticas elevadas de assaltos em ônibus. Na vistoria que pude ver e que imagino ser a padrão, a carne negra, “a mais barata do mercado”, foi a primeira abordada. Sem civilidade alguma, policiais encostaram três jovens negros na lateral do coletivo, revistaram, mandaram que se abaixassem, ficassem de costas e levantassem os braços e, sem que eu conseguisse ouvir o que diziam, no final, liberaram os garotos sem encontrar nada suspeito. O ônibus seguiu e eu fiquei ali, parada, abismada, imaginando o constrangimento dos jovens subindo no coletivo novamente e seguindo suas vidas. Pensei o pior, que talvez, para alguns deles, abordagens como aquela sejam vistas como algo comum, corriqueiro e em algum momento acabam por naturalizar o lugar que seus corpos podem ocupar. É o tal limite, vindo de fora para dentro, de medida variável, mas que existe. Lembrei inevitavelmente dos mandados de prisão dos delatados pelos irmãos Batista. Na casa de qualquer um deles, na ausência de alguém que receba aos agentes da Polícia Federal, chama-se um chaveiro. Igualzinho ao que ocorre nas favelas, podemos aferir.

Recentemente, a artista mineira Cinthia Marcelle recebeu a menção honrosa na Bienal de Veneza. Marcelle ocupou todo o pavilhão nacional com grades de ventilação que lembram bueiros e encaixou pedras brancas típicas dos jardins venezianos. A obra que faz alusão a uma prisão foi acompanhada da exibição de um vídeo em que homens acampados em um telhado portam tochas e sinalizadores. A tomar pelas chacinas carcerárias ocorridas no começo deste ano, não é precipitado associar o vídeo às rebeliões de 2017. Marcelle foi convidada para representar o Brasil, o que visto da vereda do público pode soar problemático em um ano apocalíptico politicamente.

De poucas palavras em entrevistas, a artista deixou que a obra respondesse aos incômodos e às dúvidas. Do pouco que falou, ao final da cerimônia de premiação, recomendou que rasgassem a página do catálogo da mostra que traz o nome de Michel Temer. É bom que se diga: a última vez que uma artista brasileira conquistou tal feito tem quase três décadas. Há oito anos, Lygia Pape ganhou uma menção honrosa por sua obra na mostra principal. Portanto, a visibilidade dada ao trabalho de Marcelle, cuja temática não foge à luta, é de ser reconhecida nesse momento. Obviamente, não descarto com isso o fato de que muitos outros criadores estão produzindo literatura, artes plásticas, performances, instalações, filmes e documentários movidos pela crise desses tempos ou colando o agora a uma revisão da ditadura militar, em uma espécie de sinal vermelho para que o passado não volte, apesar da sensação de que caminhamos para trás.

Em dias de mais pessimismo, traço uma cartografia do golpe a partir dos vários corpos que me vem, seja perambulando pela cidade, seja pelas artes ou pela crueza do noticiário diário: os dos desempregados ou os que atuam em trabalhos informais, o dos trabalhadores e trabalhadoras rurais à mercê da reforma da previdência, a dos índios decapitados em uma luta desigual pela demarcação de terras, portanto assassinados com a conivência do Estado, os das travestis espancadas até a morte em diferentes estados do Nordeste, sob a alegação estapafúrdia, doentia e criminosa de “higienização” social, da mulher agredida recentemente por um policial militar em Fortaleza, de Mateus Ferreira da Silva, agredido com um cassetete por policial durante a manifestação da Greve Geral, dia 28 de abril em Goiânia, de Rafael Braga Vieira, preso em janeiro de 2016 no Rio de Janeiro e condenado a onze anos de prisão, porque habita um corpo negro, pobre e favelado.

Apesar disso tudo, ou melhor dizendo, por isso tudo, é que outros corpos precisam resistir. Enquanto alguns poucos podem se mover, outros com mais mobilidade precisam se mexer por dois, por três, por milhões. É na minha movência como pesquisadora, professora, jornalista, cidadã que posso falar minimamente do interdito. É na movência de criadores vários, escritores, artistas visuais, cineastas, que se pode mostrar para dentro e para fora o fosso para onde estamos sendo jogados. E nós, mais uma vez podemos atuar, fazendo muitas vezes a mediação do trabalho desses artistas com nossos alunos, escolhendo temas, sugerindo obras, mostrando novas abordagens, instigando discussões que estreitem as relações entre arte e sociedade.

Antes de iniciar este texto relutei ter como mote um assunto que me acompanha há doze anos, talvez por uma timidez de que, diante da chance de escrever sobre o que bem quisesse, escolhesse mais uma vez o que me tem me movido academicamente. Mas não é bem isso. Suspeito que eu quisesse lembrar, dizer a mim mesma que o meu corpo político e o seu, de quem me lê agora, ainda é um corpo privilegiado, enquanto outros precisam de esclarecimento, de solidariedade, de apoio e de ação. Porque o corpo não é apenas um corpo, é o nosso habitar em risco no mundo.



20 de maio de 2017

A mulher no texto literário amazônico

                                                                                                     Joanna da Silva



Imagem: Vânia Mignone

Ao incorporar propósitos pessoais e políticos, a partir de uma visão crítica dos autores, o texto literário nos permite problematizar práticas sociais e culturais vigentes em nosso meio, e assim “viver dialeticamente” o problema, como assinala Antônio Cândido em Literatura e sociedade, ao reafirmar a importância da literatura enquanto instrumento de conhecimento e representação da realidade, do mundo, de nós mesmos e do Outro.

Falar da representação de grupos subalternos e marginalizados na literatura, embora possa parecer um discurso já “superado”, não perdeu sua importância na atualidade, sobretudo quando se trata da mulher, da sua alteridade, do (não)lugar que ocupa no âmbito das relações sociais e familiares. Além disso, observamos que o cruzamento com outras categorias influencia na “fabricação” e (de)formação de identidades dentro de um processo político/social contínuo e atemporal, onde questões relacionadas à classe, raça e etnia, interseccionados às relações de gênero, subsidiam complexas relações de poder entre os indivíduos. A esse respeito, Regina Dalcastagnè, no texto Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea, nos alerta a respeito do cuidado que devemos tomar diante do texto literário, haja vista nem todas as representações sociais tenderem a um posicionamento crítico que busque desarticular o sentido das construções racistas e estereotipadas, algumas delas podem até mesmo legitimar ainda mais tal preconceito com base na forma representada.

Ao esboçar um breve painel da representação feminina na Literatura Amazônica, ou amazonense, é importante assinalar que a Amazônia, desde sua “descoberta”, tem inspirado inúmeros textos cujo pensamento reflete-se envolto em mistérios e exotismos comum ao imaginário daqueles que buscaram/buscam descrevê-la. Concebida no imaginário europeu sob uma visão exuberante, berço de mitos e lendas, “território do Eldorado” e “país das amazonas”, a Amazônia tornou-se conhecida no mundo a partir da famosa viagem inaugural comandada pelo espanhol Francisco Orellana (1541-1542), e relatada pelo frei dominicano Gaspar de Carvajal. Seguida de outras comissões, entre elas a de cunho científico chefiada pelo francês La Condamine (1735), além também das missões religiosas associadas ao período colonial e os ciclos econômicos na região, e todas com um ponto em comum: a irrefreável curiosidade em conhecer e explorar a “nova terra”.

Os primeiros textos produzidos durante o período colonial revelam não só o choque cultural entre diferentes nações, mas também conteúdos enredados por conflitos sangrentos envolvendo as populações indígenas e a empresa colonizadora de ocupação do território, a exemplo do poema épico Muraida, de autoria do militar Enrique João Wilkens, publicado inicialmente em Portugal no ano de 1819. Composto numa estética “bem medida”, a obra conta a luta do povo mura para resistir à opressão dos colonizadores que desejavam ocupar suas terras e escravizar sua gente. Muraida é considerada um texto fundador da literatura amazônica, cuja leitura, segundo Yurgel P. Caldas (2007), nos ajuda a entender a construção ideológica do colonizador ao considerar o índio a “encarnação do Mal e do atraso econômico da região”.

A produção de uma literatura brasileira na Amazônia avessa à cultura importada do Império Português iniciou-se com a publicação do romance indianista Simá, de autoria de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, publicado em Recife no mesmo ano que O Guarani, de José de Alencar (1857). Simá é uma obra que também se reporta ao sofrimento do povo indígena vitimado por genocídios e massacres coletivos apoiados pela Religião e pela Coroa Portuguesa. A personagem central do enredo é quem dá título à obra, a jovem índia Simá, nascida do estupro praticado pelo comerciante português Régis a sua mãe Delfina. A perspectiva apresentada no romance é a do encontro traumático e violento entre a civilização europeia e os povos indígenas da Amazônia, além de tematizar um assunto inédito para a época: o estupro, que simboliza não só a heterogeneidade das raças, mas também a violência praticada contra a mulher nativa, tema este que será reiterado por outros autores.

A partir dos ciclos econômicos na região, iniciados com a exploração do cacau e das drogas do sertão, as narrativas passam a ter um caráter mais realista/naturalista, priorizando o homem acima da paisagem e do exotismo regional. Em meio a esse contexto político e social em transformação, o escritor paraense Inglês de Souza se destaca por uma escrita que transcende os ideais e a estética romântica em obras como: Histórias de um Pescador (1876), O Cacaulista (1876), O Coronel Sangrado (1877), O Missionário (1891). Nesta, inclusive, temos o elemento “meio” como influenciador dos instintos humanos e responsável por colocar à prova as “virtudes” do jovem padre que, contrariando os princípios éticos e religiosos de sua doutrina, envolve-se num relacionamento amoroso clandestino com uma jovem “matutinha” que, após engravidar, é relegada ao abandono, pois o religioso precisa “zelar” pelo seu ofício.

O chamado “ciclo da borracha”, ocorrido no final século XIX e início do século XX, foi palco de grande efervescência cultural na região, tornando-se ponto de referência na consolidação de uma tradição literária contextualizada na Amazônia. Alberto Rangel inaugura esse período com a obra Inferno Verde (1908), publicada primeiramente na França. Composta por uma coletânea de onze contos, o livro traz em sua abertura um longo e primoroso prefácio escrito pelo ilustre amigo Euclides da Cunha. Maibi é um dos contos que compõem a obra, e o enredo encena de forma emblemática a morte da índia Maibi que, após ser entregue pelo companheiro a outro seringueiro para saldar uma dívida, é sequestrada e amarrada junto ao tronco de uma seringueira. A jovem tem seu corpo retalhado no mesmo molde em que as árvores eram cortadas para colher o látex, retratando assim uma cena de extrema violência e crueldade cometida contra a mulher.

O romance A Selva (1930), de autoria do escritor português José Maria Ferreira de Castro, publicação que não só o tornaria precursor do Neo-Realismo português, mas também seria traduzido para diversos idiomas, hoje se encontra em sua 47ª edição. Esta obra ocupa um lugar significativo nesse contexto do “ciclo gomífero”, nela o autor retoma o discurso dos primeiros viajantes e cronistas na Amazônia à medida que os motivos que compõem a trajetória do personagem protagonista são os da confrontação do homem com o meio bárbaro. É uma obra de cunho social e de denúncia do trabalho escravo dos seringueiros, assim como as obras do amazonense Álvaro Botelho Maia, Gente do seringais (1956), Beiradão (1958) e do acreano José Potyguara, Terra caída (1961), entre tantas outras, que buscaram retratar não só o drama e o desespero humano daquela sociedade degradante que vivia no interior da floresta, expostos aos ataques de índios, de animais ferozes, pragas de insetos, doenças, mas também expuseram a violência sofrida pela mulher, considerada “mercadoria escassa” no ambiente dos seringais. Em tais narrativas a mulher é vista como “objeto” de troca entre seringueiros e seringalistas, e vítima dos mais diversos tipos de violência e abusos.

Numa perspectiva mais contemporânea e de aproximação com a realidade atual do homem amazônico, o escritor paraense Dalcídio Jurandir é considerado um dos nomes mais consistentes da ficção de intervenção no norte do Brasil, chegando a receber o título de “maior romancista do extremo norte”. Sua produção, segundo Assmar (2003), ocorrida entre os anos de 1947 a 1978, contextualiza-se à época de afirmação gloriosa da ficção modernista e trata a realidade regional não só como movimento estético, mas também como mecanismo de denúncia das mazelas sofridas pelo homem no meio que o circunda.  A maioria dos personagens negros presentes na obra do escritor paraense, de acordo com José Alonso T. Freire (2006), são descendentes de cabanos, e marcados por um preconceito racial que se apresenta de maneira crítica. Esse preconceito pode ser observado através de D. Amélia, mãe de Alfredo, personagem central do enredo e fio condutor da narrativa em nove dos onze romances dalcidianos. O protagonismo de D. Amélia, reiterado por sua condição social e racial, chama a atenção já na primeira obra, Chove nos campos de Cachoeira (1941), e se consolida numa trajetória de vida degradante ao longo dos demais romances. D. Amélia é uma mulher negra, descendente de escravos, dançarina de coco, de isguetes, que cortava seringa, apanhava açaí, porém, ao se “amasiar” com o Major Alberto, homem branco e viúvo que ambicionava uma vida tranquila e sossegada ao lado de uma mulher que cuidasse da casa e também tivesse “disposição na cama”, ela passa a ser hostilizada pela comunidade Cachoeirense, que a considerava uma pessoa “sem qualidades”.

Já no contexto romanesco do escritor manauara Milton Hatoum, é a mulher de descendência indígena que ocupa um lugar de exclusão e subalternidade no interior da narrativa. Sua característica étnica atua como elemento de discriminação a permear o convívio com o outro, fato que se anuncia já no primeiro romance, Relato de um certo Oriente (1989), observado, por exemplo, na fala do personagem alemão, Dorner, que ao estudar a identidade dos habitantes da Amazônia, e o convívio entre brancos, caboclos e índios, constata existir “um senso comum bastante difundido aqui no norte: de que as pessoas são alheias a tudo, e que nascem lerdas e tristes e passivas” (HATOUM, 1989, p. 83). Pensamento esse já anunciado anteriormente nos relatos dos primeiros expedicionários europeus que visitaram o território amazônico no séc. XVI-XVII, e afirmavam que os nativos da Amazônia “são inimigos do trabalho, indiferentes a toda ambição e glória, incapazes de qualquer previdência e reflexão; envelhecem sem sair da infância, cujos defeitos todos são conservados” (La Condamine, Chales-Marie de, apud GONDIM, 2007, p. 140).

Consoante as relações sociais e de gênero que envolvem homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, nativos e imigrantes no interior dessas narrativas, observamos que a “fabricação” de identidades e subalternidades são fortemente perpassadas pelos conceitos de classe e raça, que atuam como marcas reiteradoras de suas alteridades dentro de um discurso de “diferenciação” que, conforme nos aponta Frantz Fanon, em Os condenados da terra (1968), busca acentuar as desigualdades de classe existentes entre as partes, mostrando um mundo divido em dois, habitado por espécies diferentes, e com enorme diferença nos modos de vida. São narrativas que, sem dúvida, ultrapassam os limites de um regionalismo exótico ao dar vazão a questões mais amplas e universais, e tudo isso sem deixar de estabelecer um forte vínculo com a cultura e a paisagem amazônica, cujos rios e florestas lhes servem de cenário. A partir do exposto, indico a leitura das obras produzidas por autores do norte do nosso país que, embora de grande qualidade estética, literária, e valor sociocultural, com exceção da produção de Milton Hatoum, infelizmente ainda são pouco conhecidas no circuito cultural/intelectual brasileiro. 

13 de maio de 2017

Da leitura e do silêncio

Patrícia Trindade Nakagome


Escultura japonesa em marfim, Era Meiji, autor não identificado: Avó com criança


A minha avó paterna era uma mulher muito frágil: pequena, magra e miúda. Eu me lembro de puxar sua pele fininha, que se descolava fácil da mão. Nela, qualquer pequeno arranhão se convertia num arroxeado por semanas.  Recorrendo à minha memória infantil, tenho a sensação de que minha avó já nasceu velha. E me parecia ir ficando mais velha e mais frágil conforme eu crescia.

São muitas as recordações que tenho da minha avó e muito poucas as que compartilho. Quero preservar o segredo, a que vou sozinha, no escuro e em silêncio.  Nos últimos tempos, relances dela me surgem, rompendo o tempo em que tento mantê-la. O estranho é que ela surge no que não é ela, onde ela não está. Porque uma avó japonesa como a minha não pode mais estar em muitos lugares do meu mundo atual. Ela não é possível nem mesmo junto à família de meu pai, com as risadas altas e as adaptações feitas nas comidas. Ah, minha avó morreria (de novo) se soubesse que a maionese agora se junta ao arroz grudadinho!

Não há situação que me permita reviver a minha avó. Não há mais a mesma sopa. Não há mais a oração budista que se repetia sem eu entender. Não há mais cheiro de incenso. Não há mais, principalmente, silêncio.  Ela era o silêncio mesmo quando falava. Por ter o pulmão fraco, ela tinha que soprar um aparelho com bolinhas. Ela ficava cansada e a última bolinha não subia. E eu, tão criança, queria mostrar para ela, todos os dias, como eu conseguia fazer as bolinhas se mexerem sem qualquer esforço. E ela sorria o sorriso dela.

Minha avó falava baixo e devagar. E todos os movimentos dela tinham essa leveza.  Para conversar, era necessário que eu acalmasse o meu corpo. Era necessário que eu controlasse minha voz. Para poder ouvi-la, era preciso que eu me entregasse inteira a ela, ao seu ritmo, aos seus suspiros. Era como se a cada fala dela houvesse um “espera”, um “escuta”. Não porque ela enunciasse um pedido ou uma ordem. Mas é que nós vivíamos num tom abaixo do mundo.

Minha avó me marcou para além do que consigo pensar. E ela nem esteve tantos anos assim na minha vida.  Na quarta série, para o livro da turma, a professora me deu um tema de redação específico “Falo pouco, mas aprendo muito”. E foi a primeira vez que percebi que o meu silêncio não era comum. No meio de tantas crianças com tantas palavras, aquele silêncio foi ouvido por uma professora que me ensinou, assim como minha avó, mais do que posso imaginar. E hoje, já adulta, penso que talvez eu fale mais e não aprenda tanto quanto supunha minha professora Bete.

É esperado que eu fale. Alguém que trabalha com a palavra deve falar. E há, hoje, tantos canais para isso. Revistas, comunicações, redes sociais. E eu me sinto acuada.  Em momentos em que a escrita foi tomada por mim como exercício da palavra, não como resultado do silêncio, era mais simples. Mas agora, escrever um texto como este está longe de ser uma tarefa fácil. O tempo dos meus dedos acompanhava as demandas, mas o tempo do meu pensamento, das minhas dúvidas, das minhas ponderações, mal consegue reverberar em mim.

Talvez o silêncio possa ser identificado com indiferença, recusa ou negação. É o seu risco. Penso, porém, no silêncio indispensável a um verdadeiro diálogo, como sua condição primeira. É o silêncio que, como no movimento de amor à minha avó, obriga a estar de corpo inteiro à disposição do outro, à escuta, à espera do seu ritmo e da sua necessidade de colocar sons ao tempo.

Há alguns anos, ao abraçar o leitor e a leitura como objetos de pesquisa, sobrepondo-os mesmo à obra, eu passei a me silenciar um pouco para ouvir o outro. Não porque fosse altruísta, mas porque reconheci que o outro, em sua multiplicidade e potência, é sempre mais interessante. Mais do que as minhas interpretações, mais até do que livros que eu  amo e que me formaram. O silêncio indispensável às minhas leituras permanece intocado. Mas hoje temo quando ele ganha ares de erudição, num melancólico olhar para a reclusão e solidão, ecoando os tantos brados de um “país sem leitores” (uma ideia a ser problematizada, como faz inclusive aqui no blog Mirian Zappone).

Reivindicar o meu silêncio e abrir-me ao do outro. Entender que o silêncio que ele necessita para ler o grande texto que é o mundo pode vir da oralidade, da leitura acompanhada por fone de ouvido e balanço de ônibus, das obras que a crítica insiste em recusar. Trata-se do silêncio daquilo que podemos não entender, que não é o nosso, mas que ecoa no outro. E ele, no silêncio da sua leitura, encontra o que me é invisível. É um privilégio ouvir sobre esse silêncio em textos (como o do Pedro Ivo aqui mesmo), em conversas, em sala de aula. 

O lugar do ensino é talvez o espaço público em que eu mais acredite. Eu o reconheço como reivindicação concreta do lugar de fala e principalmente como espaço de escuta. Mas há, inevitavelmente, numa sala de 50 alunos, generalizações e silenciamentos. Então eu tento, com falhas, angústias e dúvidas, silenciar-me, ouvir no silêncio deles, respeitar o silêncio e desejar, muitas vezes, sua ruptura. Armar-se de silêncio leva à dúvida e ao imponderável; à lágrima e à confissão. E isso nem sempre se ajusta tranquilamente ao papel de professor e à condição de responsável pela aula. Talvez os alunos sequer imaginem: mas eu levo muito deles comigo, em perguntas feitas tempos atrás para as quais não tenho resposta. E eles serão, como algumas memórias, acalentados em mim. Até o momento em que seja possível (ou indispensável?) dizer. Ou então agradecer. E aqui, neste texto, preciso nomear um estudante específico, a quem leio e que também me lê: obrigada, Douglas.

Eu não quero mais dizer que levanto as bolinhas sem me cansar. Com a repetição, soprar e dizer cansam sim. Eu quero ouvir o suspiro sempre único do outro. Preciso ouvir inclusive meu próprio suspiro.

6 de maio de 2017

Literatura indígena: arma contra o genocídio

Pedro Mandagará


Imagem: Devair Fiorotti


“Os ancestrais no início não comiam os alimentos que comemos hoje. Eles comiam a pasta que se forma nas árvores junto à pasta de cupim. Dizem que a comiam com gula. Apesar de só comerem isso, não ficavam doentes, pois não existia malária, e não precisavam curar ninguém, pois não havia doença, não havia dor, nem tosse, portanto não havia necessidade de remédio – não havia doença, pois não havia napë. Viviam bem, sem doenças, até terem muitos cabelos brancos. As mulheres ficavam velhas até terem a cabeça branca, pois não havia doença.
(...)
Era assim quando não existia napë, antes de os napë se misturarem; nessa época, os napë existiam? Sabemos que não! Não existiam.
Os rios, apesar de serem grandes, dizem que eram vazios. Dizem que não se escutava o som de motor subindo o rio fazendo “Tu, tu, tu, tu, tu, tu!”.
“Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ!” Não se escutava o som do avião, por isso os velhos não morriam de doença.”
(Parahiteri, Soares, 2016: p. 16-17)


No dia 25 de abril de 2017, cerca de três mil indígenas foram violentamente atacados pela Polícia Legislativa, em frente ao Congresso Nacional. No ato, levaram duzentos caixões até o espelho d’água do Congresso. Protestavam contra a paralisação de demarcações por parte do poder Executivo, contra o desmonte da FUNAI, contra o estado calamitoso da Secretaria de Saúde Indígena, contra as inúmeras iniciativas anti-indígenas do Legislativo, contra interpretações abusivas do Judiciário como o marco temporal. Protestavam chamando o Estado brasileiro atual do que é: negligente e genocida. E o Estado assinou embaixo com bombas de gás e spray de pimenta.

Estive com minha família no Acampamento Terra Livre 2017, próximo ao abandonado Teatro Nacional de Brasília, dois dias depois. Passando os camburões da PM do Distrito Federal que faziam a “segurança” do Eixo Monumental, pudemos sentir a tensão no ar, após dias de provocações e abusos. Era uma diversidade de gentes, de línguas diversas entreouvidas, de pessoas se conhecendo e se divertindo, mas sempre com um olhar em direção à avenida. Vi pessoas que admiro há tanto tempo, como o grande Raoni. Senti algo do nervosismo que surge quando expectativas se superam: os organizadores esperavam mil e quinhentos participantes e apareceram mais de três mil. Em pouco tempo, senti o arrependimento de não ter estado ali desde o princípio, de só presenciar este evento quando ele já acabava.

À tarde, voltei sozinho ao acampamento, pois seguiria dali direto para as aulas na UnB. Cheguei num momento em que dezenas de povos haviam feito rodas de dança e canto paralelas, em preparação para o toré que seria celebrado pouco depois na Esplanada. Podia ouvir, ver, sentir povos do Xingu, do Acre, de Pernambuco, de São Paulo – como percorrer milhares de quilômetros (e muitas vidas) em poucos metros e minutos. Acompanhei a marcha por algum tempo, o suficiente para ver o quão desmesurado foi o aparato militar montado naquele dia. E segui para o campus de ônibus, para dar aula de literatura indígena no primeiro horário da noite.

Meu trabalho com a literatura sempre me aproximou de temáticas como a violência e a catástrofe. Em algum momento, foi a tragédia, em outro, a literatura da ditadura militar, ainda em outro, narrativas pós-apocalípticas. Mas a tragédia nunca fez parte da cultura de minha polis, nem vivi a ditadura militar, e creio que ainda falta um pouco (cada vez menos) para a vida humana se tornar insustentável no planeta.

O genocídio indígena, porém, é uma catástrofe que acontece sob os olhos de qualquer um de nós. De vez em quando, alguma notícia fura o bloqueio cultural e ficamos sabendo de algum massacre, de mãos decepadas, da prisão de alguns poucos garimpeiros e dos planos para alguma nova hidrelétrica. No mais das vezes, porém, a ação genocida prossegue lenta, limitando territórios, envenenando rios com mercúrio, matando culturas a golpes de pregação. Vivendo no Rio Grande do Sul, senti o desprezo dos conterrâneos que passavam por famílias kaingang vendendo artesanato no Centro de Porto Alegre. Vivendo em Roraima, vi como parte da população considerava os indígenas como um simples empecilho para o estado e o “desenvolvimento” das monoculturas e do garimpo. Vivendo em Brasília, ouvi a raiva de motoristas que consideravam os índios acampados como um – mais um – empecilho para o trânsito na região central.

Vivendo no Brasil, ouço defesas do ataque criminoso aos índios Gamela. Leio um relatório parlamentar indiciando indígenas, religiosos e antropólogos por lutarem pela demarcação de terras. Vejo monumentos a assassinos como o bandeirante Borba Gato. Percebo a romantização de uma história de violência. Sinto em tantos à volta o permanente rancor contra gente que insiste em estar viva.

É constante a referência, nos textos indígenas, à escrita como técnica de resistência ou como arma. A literatura indígena engloba muitos mundos, muitas temáticas e muitas culturas, mas vejo esta concepção como recorrente. Aprendi a ler assim o trabalho de autores como Kaká Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara e Graça Graúna. Aprendi, também, a ler assim os trabalhos de autoria coletiva, as reuniões e traduções de mitos e cantos, toda a maravilhosa oralidade que espero, um dia, poder compreender em alguma das línguas originais.

No caminho do Acampamento Terra Livre para o campus Darcy Ribeiro da UnB fui pensando que parece tão pouco, estudar literatura, perto de tanta violência. Mas a violência parte de representações. Se não consigo empunhar um arco na frente do Congresso, posso pelo menos tentar convencer alguém que devemos estar do lado da flecha e não da bomba. E que, se o genocídio algum dia se completar, teremos perdido muitos outros mundos que mal suspeitamos.

REFERÊNCIAS
Parahiteri, Pajés (autores); Soares, Anne Ballester (org. e trad.). Os comedores de terra ou o livro das transformações contadas pelos yanomami do grupo Parahiteri. São Paulo: Hedra, 2016.