31 de outubro de 2015

A criminalização do pensamento crítico

Luis Felipe Miguel

                                                                      Imagem: Serban Savu
Entre as múltiplas ameaças de retrocesso que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais graves é a voltada à educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças, acostumados ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel, individual e coletivo, na reprodução e na transformação do mundo social. Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação limitada à transmissão de “conteúdos” factuais, dos quais o professor é um mero repetidor e o aluno, receptáculo passivo. O slogan vazio da “escola sem partido” busca passar a ideia de que o ensino acrítico é “neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo existente e inibir a discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo poderoso de reprodução do status quo.

São diversos projetos em tramitação no Congresso, que partem do veredito comum de que haveria um esforço de doutrinamento em curso, seja pelo PT, seja pela esquerda de modo geral, que faria com que as escolas tivessem se tornado centros de difusão do socialismo e/ou do feminismo. É uma reação ao arejamento – na verdade, ainda muito insuficiente – das práticas pedagógicas; uma reação que não vem de hoje, mas que se intensificou com a ofensiva diretista dos últimos anos. Alguns talvez se lembrem que, nos anos finais da ditadura militar, pré-escolas alternativas eram acusadas de adotar cartilhas marxistas. É o mesmo tipo de paranoia, mas agora vendo o pretenso doutrinamento como política de Estado, que está por trás das fantasias do movimento Escola Sem Partido, do repúdio a Paulo Freire nas manifestações públicas da direita ou da reação histérica à recente prova do ENEM.

Cada vez que a escola se desloca, por pouco que seja, de seu papel tradicional de aparelho ideológico reprodutor da ordem social, erguem-se as bandeiras de “doutrinamento”. A manobra argumentativa é evidente. A reprodução transita como “não ideológica” porque a ordem social vigente é naturalizada. É como se ela não fosse o fruto de processos históricos, de conflitos sociais com ganhadores e perdedores, mas um dado da realidade que existe por si só. A “neutralidade” do discurso que não questiona o porquê do mundo social ser como é, nem indica que essa ordenação não é uma necessidade, é falsa: ele é um elemento ativo de perpetuação, uma maneira de bloquear as potencialidade de mudança presentes do mundo em que vivemos.

Na atual ofensiva da direita brasileira, há dois alvos simultâneos. Permanece o ódio ao marxismo e, de modo mais geral, a qualquer forma de questionamento à desigualdade de classe. É sustentado por uma leitura delirante da teoria de Gramsci, difundida pelo astrólogo Olavo de Carvalho, em que a ideia de uma luta pela produção de sentido no mundo social é transformada num plano diabólico de lavagem cerebral em massa.

Mas há uma grande ênfase também na denúncia contra qualquer tentativa de desnaturalizar os papéis estereotipados atribuídos a mulheres e homens. É a “ideologia de gênero”, termo que foi cunhado pelos setores conservadores da Igreja Católica, mas adotado também por denominações protestantes, e colocada em curso em vários países do mundo, entre eles o Brasil, como forma de organizar a oposição aos avanços – mais lentos do que gostaríamos, mas inquestionáveis – na direção de maior igualdade entre os sexos e maior respeito a gays e lésbicas. Ao afirmar que “ideológica” é a luta contra a discriminação de gênero, fica implícito que a desigualdade e a intolerância seriam naturais.

O rótulo “ideologia de gênero” foi rapidamente incorporado à linguagem destes grupos. Sintético, ele permite que se descarte, sem discussão, tudo aquilo que já se sabe sobre a produção social do feminino e do masculino. Quando militantes conservadores reagem à frase de Simone de Beauvoir incluída na prova do ENEM escrevendo coisas como “eu nasci mulher sim, nasci com vagina”, como se viu nas redes sociais, revelam, mais do que apenas uma ignorância brutal e constrangedora, uma impermeabilidade deliberada a qualquer discussão sobre o tema.
Ao lado da ameaça que a emancipação feminina e a conquista dos direitos de gays e lésbicas de fato representa aos privilégios de homens e de heterossexuais, e ao lado também do fundamentalismo religioso de alguns, há no destaque dado à “ideologia de gênero” uma demonstração de oportunismo político. Como afirmei em outro lugar, hoje a homofobia é o ópio do povo

Deslocando o eixo do conflito para as questões “morais” (que, na verdade, são questões de direitos individuais), a direita se põe em sintonia com uma parcela do eleitorado que, sobretudo a partir das políticas compensatórias do governo Lula, se movimentava na direção de seus adversários. Também por isso, para as forças da esquerda a luta pela igualdade de gênero e contra a homofobia não pode ser considerada uma pauta secundária.

Entre os projetos em tramitação no Congresso, vários têm o fantasma da “ideologia de gênero” como alvo. O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014, ambos de autoria de Erivelton Satana (PSC/BA), determinam a mesma coisa: que “os valores de ordem familiar [têm] precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. O primeiro projeto visa instituir esta regra na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o outro, redundantemente, quer torná-la obrigatória nos parâmetros curriculares (que já devem obedecer à LBDE).

A intocabilidade da família, como sujeito coletivo com direitos próprios, irredutíveis aos de seus integrantes, é o que fundamenta tal proposta. Muitas vezes, mesmo os grupos mais progressistas têm receio de discutir o status atribuído à unidade familiar, preferindo deslocar a luta para a necessidade de pluralizar o entendimento do que é família. Claro que que é importante dar a todos que o queiram a possibilidade de buscar formar famílias, no formato que desejem, mas ainda precisamos dessacralizar a “família”. A família é também um lugar de opressão e de violência. A defesa de uma concepção plural de família não pode colocar em segundo plano a ideia de que, em primeiro lugar, estão os direitos individuais dos seus integrantes. E entre estes direitos está o de ter acesso a uma pluralidade de visões de mundo, a fim de ampliar a possibilidade de produção autônoma de suas próprias ideias.

As propostas do deputado baiano impedem a educação sexual e o combate ao preconceito e à intolerância nas escolas, sob o argumento de preservar a soberania da família na formação “moral” dos mais novos. Com isso, retiram da escola a possibilidade de contribuir para disseminar os valores de igualdade e de respeito à diferença, que são cruciais para uma sociedade democrática. E retiram dos jovens o direito de ter acesso a informações que são necessárias para que eles possam refletir sobre sua própria posição nesse mundo e avançar de maneira segura para a vida adulta.

Ainda mais bisonho, o PL 1859/2015, de autoria de Izalci Lucas (PSDB/DF), Givaldo Carimbão (PROS/AL) e outros, propõe que a LDBE inclua dispositivo que proíba as escolas de apresentar conteúdo “que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. A política linguística destes deputados incorpora ao vocabulário legislativo o termo “ideologia de gênero”, inventado recentemente pela direita fundamentalista, e veta do vocabulário escolar os termos “gênero” e “orientação sexual”, impedindo assim que vastos setores do conhecimento produzido na sociologia e na psicologia cheguem ao ensino. O objetivo é evitar qualquer questionamento da percepção naturalizada dos papéis sexuais. É por isso que, quase 70 anos depois, Simone de Beauvoir ainda causa arrepios.

Na mesma linha, o PL 2731/2015, de Eros Biondini (PTB/MG), quer incluir, no Plano Nacional de Educação, uma proibição à “utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”. Para além do absurdo do texto (uma “ideologia” é “utilizada” na “educação nacional”?), o PL é significativo pelas punições previstas. O profissional de educação que descumprir a norma, isto é, que tematizar a desigualdade de gênero ou a homofobia, perderá o cargo e estará sujeito às punições previstas, no Estatuto da Criança e do Adolescente, àqueles que submetem “criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento ilegal”, isto é, seis meses a dois anos de prisão.

O projeto mais ambicioso, porém, é o PL 867/2015, novamente de Izalci Lucas, que é representante da ala do PSDB mais despreparada intelectualmente e retrógrada politicamente. Seu objetivo é incluir, nas diretrizes e bases da educação nacional, um programa intitulado “Escola sem Partido”. De fato, o deputado simplesmente apõe seu nome à iniciativa do “movimento” de mesmo nome. Assim, a educação deve ser baseada na “neutralidade política” e a escola não pode desenvolver nenhuma atividade que possa “estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Embora escolas confessionais privadas possam exercer seu proselitismo, desde que contem com a anuência dos pais. O artigo 5º prevê que serão afixados cartazes nas escolas para que os estudantes saibam que podem denunciar seus professores. O programa se aplica ao material didático e a todos os níveis de ensino, incluindo o superior.

Os dois pilares são, portanto, a soberania da família, que se sobrepõe ao direito do estudante de obter elementos para produzir de forma autônoma sua visão de mundo, e uma ideia de “neutralidade” que se baseia na ficção de um conhecimento que não é situado socialmente. Um relato da história do Brasil ou do mundo que se limite a nomes ou datas, como no ensino do regime militar, pode parecer “neutro”, por não assumir expressamente juízos de valor. Mas, ao negar ao aluno as condições de situar os processos históricos e de compreender os interesses em conflito, cumpre um inegável papel conservador.

Se a “neutralidade” não existe, uma vez que toda produção de conhecimento parte de um lugar social específico, qual é o contrário da doutrinação? É o pensamento crítico, aquele que permite que os estudantes sejam não objetos, mas sujeitos da aprendizagem, refletindo sobre os conteúdos e construindo suas próprias percepções, no diálogo com professores e colegas. É esse pensamento crítico que assusta os promotores da “Escola sem Partido”. Seu discurso ensaiado não disfarça o fato de que são eles que desejam uma escola doutrinária, que imponha aos estudantes um pensamento fechado – o conformismo – e os impeça de pensar com as próprias cabeças e, pensando, quem sabe inventar um mundo novo.


Este texto foi publicado originalmente no blog da Boitempo

24 de outubro de 2015

Reterritorialização em poemas da literatura marginal/periférica

Laeticia Jensen Eble



As I check off my list of privileges, I won’t forget the biggest of 
them all: my passport.
Tim Harford, economista

Phillip Estlund, Adventures in Interior Design 1, 2007

As pesquisas sobre migração, em geral, concentram sua atenção sobre agrupamentos étnicos de europeus, latino-americanos e asiáticos. A diáspora negra, ligada à escravidão – que no Brasil se estendeu desde o período colonial até pouco antes do final do Império –, está, por sua vez, vinculada a um processo de encarceramento e não de migração. Na medida em que são arrancados de suas sociedades de origem, ao serem trazidos para o Brasil como simples mercadorias, pode-se dizer que a exclusão (entendida nos termos de Elimar Pinheiro do Nascimento em “Dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários”) dos negros escravizados ocorre como resultado da ruptura de três vínculos: i) com os valores e representações sociais próprios a sua sociedade; ii) com os laços e relações de afeto e parentesco; e iii) com a capacidade de comunicação com o exterior. Vínculos perdidos que, passados os séculos, faz-se necessário recuperar. 
Após a abolição, e diante da quase total ausência de providências por parte do Estado, na atualidade, a exclusão dos negros, construída histórica e geograficamente, perdura em novas roupagens, com: i) a não integração ao mundo do trabalho por supostamente não terem as qualificações requeridas; ii) o não reconhecimento ou negação de direitos, visto que são representados de forma discriminatória, como um perigo para a sociedade; e iii) a ruptura de vínculos societários, na medida em que são gradativamente afastados dos espaços legitimados de representação.
De acordo com Claude Raffestin, em Por uma geografia do poder, por trás da organização política dos indivíduos supõe-se que existe sempre um poder habilitado a coordenar os que ocupam um determinado espaço. Ou seja, território e poder são duas noções indissociáveis, de tal modo que o território compreende “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”. Mais do que isso, o espaço pode ser utilizado como produto e instrumento do poder. Nesse sentido, para Loïc Wacquant, o espaço também pode configurar-se num processo de confinamento, de tal forma que categorias e atividades sociais particulares são encurraladas, limitadas e isoladas a um espaço físico e social restrito.
No caso da população periférica, esse confinamento tem sido imposto, na medida em que as pessoas são obrigadas, de forma hostil e por pressões externas, sociais, políticas e étnicas, a circunscrever suas atividades e movimentos, bem como limitar sua residência a uma localização específica, configurando-se num verdadeiro gueto.
É o que lemos nas palavras de Michel Yakini, em seu poema “Mapas de asfalto”, publicado em seu livro Acorde um verso (Edição do Autor, 2012). No início, o poema dedica-se a denunciar a condição em que se vive na periferia:


há tempos que o céu
das beiradas
acorda cinzento

as pedras ficam intactas
endurecendo vidas
pelas esquinas

a esperança passa
como ventania
pelas ladeiras

e o asfalto grita
denunciando
mentiras vencidas

são heranças de uma
cidade açoitada
em silêncio

nos mocambos de hoje
germina a resistência
do amanhã

em cada quintal
um trançado
autoestima se firma

no olhar da mulecada
vejo uma trilhas
sedenta de história

é batuque,
rodeando as intenções,
cravando horizontes

grafitando nos
muros, poemas
da nossa virada

declamando ação,
sacudindo vozes

e na espreita das ruas
ecoam as rimas
num versar ritmado de
redenção!


De acordo com Wacquant, a estruturação de um gueto se dá em torno de quatro elementos essenciais: i) o estigma, segundo o qual uma população é marcada e desvalorizada em relação à categoria dominante; ii) a coação, em que a concentração populacional se dá como resultado de uma imposição externa; iii) a atribuição espacial, ou seja, quando a população estigmatizada é forçada a se estabelecer numa área específica; e iv) o paralelismo institucional, na medida em que a população é pressionada a residir unicamente em determinados bairros, desenvolve-se neles uma rede de instituições em substituição às da sociedade pela qual foi rejeitada.
Surgem, então, no seio desse espaço periférico e em prol das necessidades coletivas, organizações culturais e econômicas alternativas, bem como práticas de solidariedade interna, ao passo que novas identidades são forjadas, visando superar a exclusão e proteger-se das representações negativas do resto da sociedade. Assim, o gueto acaba se tornando uma faca de dois gumes. Se por um lado, constitui-se em instrumento de dominação, por outro, viabiliza a coesão e a auto-organização daqueles indivíduos segregados, que se mobilizam e alavancam um poder de resistência que converge para a implosão do próprio gueto. Nesse sentido, o gueto deixa de ser gueto e passa a ser quilombo.
Em resposta à polarização da cidade entre a casa grande e a senzala, o conceito do quilombo insurge em uma perspectiva decolonial, ecoando nas produções literárias que emergem insufladas por movimentos coletivos como o do hip-hop. Não é por acaso que Zumbi dos Palmares é tantas vezes evocado como símbolo de resistência e inspiração. Assim, ainda na continuação do poema de Michel Yakini, podemos ver como, em lugar do sentimento de derrota, instala-se um discurso de exaltação da resistência.
Assumindo que a reterritorialização dos afro-descendentes nunca se deu de fato no Brasil, na medida em que nunca lhes foi permitido recriar seus espaços socioculturais (sendo sempre marginalizados e criminalizados), a força com que esses movimentos culturais têm se estabelecido e os princípios estéticos e éticos que têm difundido, não só por meio da literatura, leva a crer que, finalmente, esteja em processo uma reterritorialização de fato, na medida em que esses atores trazem consigo o potencial de afirmar e assumir novas posições enquanto sujeitos da história, capazes de promover sua transformação. Essa nova reterritorialização envolve, por um lado, uma reconexão com a África, como elo original que une essa população diaspórica em torno da noção de pertencimento e resistência. De acordo com Roland Walter, em “Encruzilhadasafro-diaspóricas”, “com base em e ao mesmo tempo distanciada da memória vivida, a memória imaginada enquanto revisão tem sido uma das medidas mais importantes para recriar um self fragmentado e alienado na ficção negra pan-americana”.
Por outro lado, esse processo de reterritorialização implica também um distanciamento, visto que, imersos em outra realidade, a identificação plena já não é mais possível e é preciso criar novos laços comunitários em outras terras. Por isso que observamos ainda em muitos dos textos produzidos pelos autores periféricos essa sensação de viver em uma fronteira – entendida aqui não como barreira, mas como um entrelugar. É assim que, no poema “Maputo – Moçambique”, do livro Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012), Elizandra Souza pronuncia:

[...]
Que África é essa?
Que diz e não me diz...
Sentimentos vulcões no peito...
Lágrimas tsunamis na alma
Até onde vai minha fronteira
E se tenho fronteiras, que fronteiras eu sou?

No entanto, em outro poema da autora, que considero emblemático em relação ao que venho dizendo, intitulado “À nossa maneira”, o eu-lírico (que também se coloca como um nós-lírico, uma coletividade negra, introduzida pelo possessivo “nossa”) se dirige a um Outro africano para se explicar (seguem aqui apenas as primeiras estrofes):

Descobri que precisamos sim, à nossa maneira
aprender a aprender com a nossa história,
temos as peles negras, que não são tão negras
como as peles que aqui tens.

À nossa maneira
muitas vezes é o estranhamento em qualquer lugar
natural é tão ofensivo que estão cá a nos xingar
a massificação e o capitalismo conseguiram nos cegar,
distâncias existem na nossa aproximação

À nossa maneira
também é o inverso, é nadarmos contra a correnteza
é descobrirmos algumas certezas na diáspora
sequelas violentas, tanto lá como cá
é um redemoinho que jogam poeiras no ar

À nossa maneira
é a busca de um jeito todo nosso de comportar,
é uma ginga que veio sim daqui, mas não é a mesma
Processo em transformação
somos o batuque que estamos a procurar
[...]

Nesse poema, ao mesmo tempo que o eu-lírico reconhece suas raízes, ele enfatiza seu deslocamento. Ao afirmar que as peles negras de cá já não são tão negras como as de lá, não está apenas fazendo referência a uma possível miscigenação, mas também ressaltando que, apesar da origem comum, a distância já não lhe permite mais se afirmar tão africana quanto aquela, é como se uma certa pureza tivesse se perdido. Nesse sentido também afirma que a ginga não é a mesma e que, nesse processo de transformação, ainda está procurando o batuque que vai determinar o ritmo dessa nova ginga. Note-se que esse mesmo batuque aparecia também no poema de Yakini.
É importante destacar a figura simbólica e bastante recorrente do batuque e do tambor nesses poemas. O tambor remete diretamente às religiões brasileiras de matriz africana. Nos rituais, ele é o responsável por anular a distância entre o Brasil e a África, permitindo aos negros reviver sua cultura e religião. O ritmo e a música produzidos pelo batuque proporcionam um transe que, para os adeptos dessas religiões, permite a comunhão daqueles que vivem aqui com os deuses do continente africano.
Mas, além disso, para as religiões afro-brasileiras, o atabaque em si é cultuado como divindade. Então, ao anunciar “somos o batuque”, o poeta assume uma noção de filiação e vinculação a esse sagrado, que ressoara para sempre dentro de si. Não se trata de encontrar “outro batuque”, ou seja, não se trata de assumir uma outra cultura estranha para si, pelo contrário, reconhecendo o batuque como parte de sua identidade, oferece o entendimento de que, mesmo assumindo novas nuances, o tambor, a origem, será sempre a mesma.   
Ainda de acordo com Raffestin, “a territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo das coisas”. Assim, para que a reterritorialização se efetive, será preciso, obviamente, questionar os valores culturais e o poder instituídos nesse espaço a ser ocupado. Na medida em que a exclusão dos negros se pauta pela negação e por uma visão eurocêntrica, racista e elitista, esse movimento implica combater o epistemicídio e reconhecer a filosofia e o conhecimento africanos como capazes de constuir novas representações libertadoras. No que se refere ao nosso objeto, vale lembrar as palavras de Roland Barthes, em Aula, quando afirma que a própria linguagem é opressiva e só se pode sair dela trapaceando com a língua, trapaceando a língua – uma revolução que pode se dar exatamente pela literatura.


*Este texto foi apresentado durante o V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea, ocorrido entre os dias 13 e 15 de outubro de 2015, em Buenos Aires, Argentina.



9 de outubro de 2015

Em torno da ficção e da autobiografia

(sobre Trato desfeito: o revés autobiográfico na literatura contemporânea brasileira, de Pedro Galas)

Bruna Ferreira

                         Imagem: Rob Gonsalves                                                                        Fonte: boredpanda.com.

O chamado “pacto autobiográfico” foi proposto por Philippe Lejeune nos anos 1970, em uma tentativa de estabelecer uma definição precisa da autobiografia como um gênero literário. O pacto de “veracidade” da escrita seria estabelecido entre leitor e autor (pretendido por este e confirmado por aquele) a partir da coincidência entre os nomes próprios do narrador de um texto e do autor que o tenha publicado. A fragilidade desta definição foi discutida posteriormente por vários críticos, e sua aplicabilidade na literatura brasileira contemporânea é o tema central da dissertação de mestrado de Pedro Galas, defendida na Universidade de Brasília em 2011, sob orientação da professora Regina Dalcastagnè. Em sua pesquisa, Galas analisa romances e contos de três escritores contemporâneos cujos textos são narrados em primeira pessoa e cujos narradores guardam semelhanças com seus autores: Sérgio Sant’Anna, Bernardo Carvalho e Marcelo Mirisola.
Em Sérgio de Sant’Anna, Galas aponta as contradições de uma escrita de si que ao mesmo tempo em que se pretende confessional e “verdadeira”, questiona a capacidade da linguagem literária de representar o “real”. Na obscura narração de Sant’Anna, nada é transparente, e ainda que o narrador se confesse o eu que assina a capa do livro e, através da escrita, revele coincidências factuais entre um e outro, definir com precisão o que é ficção e o que de fato aconteceu é impossível. Não só a identidade do narrador é sucessivamente colocada em questão pela tessitura da escrita, como são lançadas dúvidas sobre a própria possibilidade de representação de qualquer identidade coerente por meio da palavra.
Ao analisar a obra de Bernardo de Carvalho, Galas identifica o jogo do autor com os nomes próprios no romance As iniciais, em que os personagens são esvaziados de qualquer identidade fixa e isolada. Em vez de indivíduos que preexistem ao convívio social e dele participam inteiros e acabados, Bernardo de Carvalho cria personagens-função, que só existem em relação ao grupo, e que só ganham significado – sempre flutuante – em relação a um outro e ao desenrolar da narrativa. Já em Nove noites, do mesmo autor, encontramos nomes próprios que remetem a pessoas cuja existência poderá ser comprovada factualmente (Buell Quain, Ruth Benedict, Heloísa Alberto Torres) envolvidos em acontecimentos de uma busca misteriosa que tanto poderá ser real quanto imaginária – a depender da credulidade do leitor que acabará por ter que reconhecer que “neste pacto autobiográfico, somente ele assinou o contrato; o narrador, omisso, se esquivou e o trato foi desfeito”.
Se Sérgio Sant’Anna e Bernardo de Carvalho lançam contínua e conscientemente dúvidas sobre a coincidência entre as opiniões e vivências de seus narradores homônimos e as suas próprias, Marcelo Mirisola parece pretender, segundo a pesquisa de Pedro Galas, identificar-se inteiramente com a persona construída em sua ficção. Mirisola esforça-se por criar uma coerência entre todos os seus narradores – cínicos, críticos do politicamente correto, pretensamente viscerais – e a sua figura pública de autor que se expõe em diversas outras mídias. O autor Mirisola seria, então, um performer, personagem de si mesmo – e contraditoriamente é essa insistência em ser sempre e sistematicamente “autêntico”, dentro e fora dos livros, que nos faz duvidar da “veracidade” desse autor-personagem midiático.
A relação entre literatura e outras mídias é, aliás, o que faz com que Galas inclua em sua discussão mais duas obras: Chove sobre minha infância e O filho eterno, de Miguel Sanches Neto e Cristóvão Tezza, respectivamente. A extensa atividade pública de autocomentário dos dois autores – em uma dinâmica cultural focada no entretenimento e no espetáculo da “vida real” que quase os obriga a isso – leva o crítico a questionar a resistência dos dois autores em assumirem-se publicamente como escritores “autobiográficos”. Para Sanches Neto e Tezza, conclui Galas, assumir o viés autobiográfico de seus romances diminuiria o caráter artificioso – e por isso especial, difícil, “digno de mérito” – de suas obras de ficção: “O escritor procura demarcar as fronteiras: o material que sustenta a obra é autobiográfico; o engenho que o modela é ficcional”.
Esta profusão de escritas de si e narradores em primeira pessoa na literatura contemporânea brasileira está associada, segundo afirma Galas no trabalho que brevemente apresento aqui, a uma intenção de reorganização de uma identidade coerente a partir do discurso. Extrapolando as fronteiras da ficção, na era do “culto da personalidade”, os escritores veem-se a si mesmos transformados em personagens de uma indústria de entretenimento que os transforma em celebridades a serem vistas em festas literárias e em gurus que tudo revelam em repetitivas entrevistas.
É nas fissuras destas contradições do nosso tempo que, por um lado, evidencia o caráter fragmentário, múltiplo e descontinuado do eu, e, por outro – e talvez por isso mesmo – tudo faz para construir narrativas sólidas, coerentes e críveis de personalidades da “vida real”, que autor e leitor se movem e se cortejam, ora cúmplices, ora desconfiados, mas talvez sempre nos domínios da ficção.

Confira o conteúdo completo da dissertação de Pedro Galas, Trato desfeito: o revés autobiográfico na literaturacontemporânea brasileira  (2011, Universidade de Brasília) no novo site do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea.

3 de outubro de 2015

Literatura Periférica e o óleo quente da distância

Michel Yakini

Imagem: Basquiat
Um dos principais questionamentos que recebo quando estou nos bastidores de atividades literárias fora das periferias de São Paulo é sobre a qualidade textual dos autores/as da chamada Literatura Periférica. Os burburinhos que rondam as academias e os espaços de arte colocam em cheque essa literatura, e, em muitos casos, o que se vê é que a distância fala daquilo que pouco conhece, mas teima em jogar óleo quente por cima.

A dificuldade no acesso às publicações faz com que as pesquisas e críticas existentes sobre livros da Literatura Periférica sejam restritas aos poucos autores publicados em editoras de grande porte (cerca de vinte livros de ficção e nove autores: Ferréz, Luiz Alberto Mendes, Sergio Vaz, Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan da Rosa, Dinha, GOG e Rodrigo Ciríaco), enquanto centenas de livros independentes são lançados nos saraus das quebradas e vendidos nos eventos culturais, feiras, palestras, shows, internet, na livraria Suburbano Convicto, e no mangueio diário de cada autor. E mesmo com alguns títulos em grande circulação, com uma antologia organizada no exterior e a participação, nacional e internacional, de alguns autores/as em atividades literárias, os livros dificilmente chegam nas mãos de quem está fora do circuito dos saraus.

Esse contexto dificulta a consolidação de novos autores/as no mercado editorial brasileiro, o surgimento de pesquisas acadêmicas que abordem esse fazer literário, a ampliação do perfil autoral e de uma fortuna crítica que valorize e dialogue com essa produção.

A partir da pesquisa da antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, em Vozes marginais na literatura, podemos considerar que a primeira divulgação ampla dessa produção foi a edição especial da revista Caros Amigos: Literatura Marginal (2001). Mas de lá pra cá muitas outras publicações surgiram e são divulgadas nos saraus. Os pioneiros desse segmento são o Sarau da Cooperifa e o Sarau do Binho – inaugurados em 2001 e 2004, respectivamente –, que motivaram novos grupos e coletividades a criarem encontros nos arrabaldes da cidade, de onde saíram diversas publicações (antologias e autorais) e a projeção de carreiras literárias, ampliando o interesse nessa produção.

No entanto, mesmo com toda efervescência editorial e da autoria independente, os livros estão em segundo plano quando se trata de estudos, matérias, reportagens, eventos e outros registros que abordem a Literatura Periférica. Uma justificativa possível é o fato de que muitos desses autores/as estão na linha de frente da organização de algum sarau – o que faz com que as abordagens sobre sua ação cultural sejam predominantes em relação ao seu fazer literário.

É importante lembrar que os saraus literários das periferias de São Paulo surgem, majoritariamente, como um encontro comunitário, de incentivo à leitura e à criação poética, e não como clubes de escritores, que na premissa se identificam como tais. Nesse contexto, os poetas e os escritores dos saraus emergem do anonimato e da invisibilidade e se mantêm pelo encorajamento. A palavra poeta é uma forma de tratamento dada a quem recita no sarau, mas que não necessariamente escreve poesia.

A prática literária contínua de pessoas anônimas nos saraus revela potenciais escritores. Na maioria dos casos, esses poetas publicam em uma antologia e quando têm maior incentivo acabam por organizar um livro autoral. Entre esses, há uma minoria que busca se consolidar na carreira, alguns por produzirem há mais tempo, outros por se identificarem com o fazer literário, e além da participação na récita, vão amadurecendo esteticamente, passam a acumular obras autorais e a escrever em outros gêneros, pra além da poesia.

A qualidade literária dos textos da Literatura Periférica, mesmo quando enaltecida, é pouco veiculada no circuito comercial, pois essa literatura não corresponde ao perfil predominante de autores/as, temas, gêneros, personagens e espaços narrativos, apresentados na maioria das obras que obtêm destaque e investimento por parte das editoras de grande porte, como apontam as pesquisas de Regina Dalcastagnè. Mas há ainda um outro problema. A premissa de que na literatura o que importa é o texto fortalece os argumentos de fragilidade dessa produção, desconhecendo que ela, embora tenha a escrita como fundamento, assume também outras formas estéticas e de comunicação que extrapolam a solidão e o silêncio que os apreciadores e estudiosos da literatura tanto prezam. 

Como em qualquer contexto, a quantidade de obras publicadas na Literatura Periférica não garante sua qualidade, mas supor que essa produção é inferior ou menor por não corresponder às expectativas da crítica tradicional, ou por não ocupar as estantes-jabás das grandes livrarias, cria uma dicotomia rala do que é bom ou ruim na literatura brasileira contemporânea sem qualquer aprofundamento teórico.

De fato, os manifestos publicados em torno dessa produção, como: Terrorismo literário, de Ferréz, que saiu pela primeira vez na Caros Amigos-Literatura Marginal Ato I, em 2001; o Manifesto da Antropofagia Periférica, escrito por Sérgio Vaz pro lançamento da Semana de Arte Moderna da Periferia, em 2007; o texto A elite treme, do Sarau da Brasa, publicado em sua primeira antologia, em 2009; e o Manifesto da literatura divergente, escrito por Nélson Maca pro lançamento do I Encontro de Literatura Divergente, em 2012, propõem muito mais um embate social do que um rompimento estético em relação a outras vertentes literárias. Mas não é por não anunciarem uma nova estética que as letras que emergem das periferias de São Paulo deixam de ser expressões peculiares na literatura brasileira contemporânea.

A poesia é o gênero mais veiculado entre os autores da periferia de São Paulo, até por conta da prática dos saraus. A poesia falada é a coluna de todo encontro, muito pela influência histórica do rap (ritmo e poesia), do samba, da capoeira, das batalhas de improviso, da embolada, dos contadores/as de causo, das cantigas de terreiro. Por isso, quero apresentar uma breve análise de dois autores, Akins Kinte e Raquel Almeida, que são ligados à Literatura Periférica, organizadores de sarau e que se identificam também com o movimento de Literatura Negra – publicam e colaboram com a série Cadernos Negros, editada pelo Quilomhoje Literatura.

Akins Kinte, 31 anos, é o nome artístico de Fábio Monteiro Pereira, poeta e cineasta, organizador do Sarau no Kintal, fundado em 2013, que acontece mensalmente na zona norte de São Paulo no quintal de sua família. Kinte é coautor do livro Punga (Edições Toró, 2007), lançado em parceria com Elizandra Souza, autor de Incorporos: nuances de libido (Ciclo Contínuo Editorial, 2011, publicado em parceria com Nina Silva) e campeão do 1º Festival de Poesia da cidade de São Paulo (2014), um concurso voltado pra performance poética.

A poesia de Akins Kinte é um bom exemplo pra apresentar um tipo de eu-lírico muito frequente nos saraus, que não fala pra si só, mas interage com a sua roda, com a coletividade, fator importante de sua legitimação. Mesmo na página, sua poesia deixa explícita a marcação oralizada do texto, como no poema “Sintonia”, do livro Punga:

Osso funk
Ai das católicas cruzes
Quem amaldiçoada alma no passado
hoje brilha
sob as luzes
Baila São Paulo ou Harlem
Corpos pretos em sintonia
Tamborilando corações (…)

No verso inicial há uma junção, uma sugestão de dança agarradinha, entre som e sentido, onde osso é vibração sonora que se incorpora no esqueleto – ouço e osso é uma fusão poética, que opera na rememoração das noites do baile, do famoso Sintonia de São Paulo. As católicas cruzes são indigestas, por representar o contraponto da liberdade corporal que o baile permite. No final do poema o baile é recriado no ritmo das palavras, sugerindo música por meio da aliteração:

Osso funk
porque soul sol na noite
Se São Paulo sintonia
Baila entre os bailes
Rumores de amores
Porque soul não só
Sim ser nós sempre
Soul! Sintonia no íntimo
De nós mesmos.
                                   pro kl jay

Oferecida pro kl jay, do grupo de rap Racionais Mc´s e Dj residente do baile Sintonia, a poesia chama pra dançar, pro par, pra roda, diz em voz alta, exalta o encontro, o baile, lugar de gente preta, em São Paulo ou no Harlem. Por prezar uma literatura de periferia com identidade negra, os valores culturais da cosmovisão africana – como a circularidade (estrutura do baile), o comunitarismo (encontro) e a tradição ancestral (celebração com música), além da relação entre palavra/corpo e oralidade/escrita sem enquadramentos rígidos – estão presentes na poética de Kinte. Essa proposta também está no poema “Brasilândia – 8542”, do mesmo livro:

No busão das seis
as nega véia

anseio de chegá às oito

subi morro descê favela
não perdê a novela

(...)
tiram força não sei donde
pra suportá
no horário nobre o terror psicológico
e depois madrugas aflitas
de maridos alcoólicos.

Aqui, o verso e o verbo livre são tomados pela fala das ruas (neste caso da Vila Brasilândia da zona norte de São Paulo, na tradicional linha de ônibus Brasilândia – 8542), e Kinte, mais uma vez, conclama um espaço de pertencimento (antes o baile, agora o bairro), espaço de singularidade e de circulação comunitária.

Neste exemplo, temos a influência das línguas de matriz banto e iorubá no português brasileiro escrito por Kinte. Ao escrever as nega véia, como em as folha ou as menina, o autor segue o padrão dos prefixos das línguas bantos, que marcam o plural somente no primeiro elemento (as/os). Já ao suprimir as consoantes finais das palavras, como em chegá, perdê e suportá, segue a estrutura silábica banto e iorubá, que não apresentam terminação com consoantes.

Outra autora que firma sua literatura na identidade negra, feminina e periférica, é a poeta Raquel Almeida, 28 anos, organizadora do Sarau Elo da Corrente, que acontece desde 2007 no bairro de Pirituba, coautora do livro Duas gerações: sobrevivendo no gueto (Elo da Corrente Edições, 2008) juntamente com Soninha M.A.Z.O e autora de Sagrado sopro: do solo que renasço (Elo da Corrente Edições, 2014).

Em sua segunda obra, Raquel apresenta textos que se religam à sua ancestralidade feminina e africana, como no poema “Preciso beber da fonte ancestral”, dedicado à sua avó Adélia:

Preciso beber da fonte ancestral
Comer feijão com farinha
Amassado entre os dedos
Peixe com coco e dendê
Preciso beber da sua fonte
Tomar banho de manjericão
Me acolher no teu colho pedindo proteção
Preciso me alimentar dessa fonte
Ouvir tuas histórias 

Aqui, mais uma vez, o ritmo do texto é marcado por elementos da cosmovisão africana. Na ancestralidade e na oralidade evocada por Raquel Almeida, onde a memória do alimento feito pela avó (fonte ancestral) e o pedido pra ouvir tuas histórias cruzam passado e presente, em que a lembrança e a precisão da fonte são materializadas na crença da energia presente nos alimentos, nas ervas, no corpo e nas palavras que respeitam as tradições, a matrilinearidade, e que se comprometem em semeá-las:

Transmiti-las em sonho e orgulho
Me embalar em tuas lembranças
Colher frutos futuros
Preciso beber dessa fonte materna de inspiração
Prudência
Fazer reverência 
És ave que escuta os ancestrais e a descendência
Preciso beber de tua fonte...

Já no poema “Sagrado sopro” Raquel traz a referência sagrada da cultura iorubá, ao exaltar Oyá, também conhecida como Iansã, divindade cultuada na religião do candomblé.

Colhi a mais bela palavra
O mais belo canto
Pra oferecer aos céus
Pra oferecer ao encanto
Deixei me envolver
Nessa brisa, nesse manto
(…)
Oyá
Envolve sobre mim sua tempestade
Pois tempestiva sou
Me acalenta em serenos sonhos de criança
Me embala nessa dança
Que não cessa e não cansa.
           
Desde o título da poesia, a autora reverencia Oyá, anunciando um dos principais regimentos dessa divindade (o sopro), depois retoma o signo nas palavras brisa e tempestade. Os versos iniciam fazendo uma oferenda (ato comum no candomblé), porém a poeta lhe dedica uma oferenda de palavras, sua matéria-prima. Ao longo do texto, o vento é retomado e provoca o movimento que embala nessa dança, que sugere o bailado no ritmo da rima. Por fim, o elemento sagrado se sobrepõe pela aliteração e sugere uma aproximação entre som e sentido em sobre; sua; sou; sereno; sonho; criança; nessa; dança; cessa; cansa. Vale ressaltar que, além de apontar seta pra mitologia iorubá, a autora também exalta e demarca novamente um espaço pra ancestralidade feminina em sua poesia.

Um detalhe importante nas obras analisadas é que tanto Punga quanto Sagrado sopro apresentam um apelo visual, com ilustrações internas dos artistas Coyote e Carolzinha Teixeira, respectivamente. Trabalho que complementa a identidade e a proposta estética dos autores, mas que não interfere e tampouco anula a força da poesia de ambos os livros.

Como se pode notar, a obra de Akins Kinte e Raquel Almeida, produzida, recitada e publicada nos saraus das periferias de São Paulo, não está ligada às tradições da poesia clássica que a teoria literária tem como referência. Em ambos os casos, podemos propor uma leitura pra analisar métricas, rimas, aliterações e metáforas, porém é fundamental considerar a perspectiva identitária de cada autoria, pois esses poemas dizem pra ecoar, pra reverenciar o que veio antes, provocar mais circularidade, menos divisórias e tornar visível, artisticamente, o verbo que historicamente foi negado.

A novidade na poesia e nas trajetórias de Kinte e Raquel Almeida não está na exaltação do que é considerado popular, pois desde o surgimento do Modernismo, em 1922, os intelectuais brasileiros buscam estratégias pra valorizar e assumir a voz do povo em suas obras, mas em sua possibilidade de dizer de si e de seu povo. Afinal, como lembra Mariana Santos de Assis na dissertação A poesia das ruas, nas ruas e estantes: eventos de letramento e de multiletramento nos saraus literários da periferia de São Paulo: “apesar desse contexto de aparente valorização dos saberes e dizeres do povo, esse povo permaneceu, por muito tempo, apenas como objeto ou tema da literatura. Isto é, suas leituras de si, suas propostas e críticas ao sistema, suas perspectivas de realidade, seus projetos literários, independentes ou coletivos, não conseguiram ocupar lugares privilegiados na crítica e na história”. Que o digam os/as escritores/as negros/as como Solano Trindade, Luiz Gama, Oswaldo de Camargo, Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus, Geni Guimarães, entre tantos/as outros/as. 

Por isso, a maior contribuição que a obra de Akins Kinte e Raquel Almeida pode proporcionar é a experiência singular de artistas que ampliam as referências estéticas e de representação literária, num diálogo contínuo com suas identidades e fazeres. E cada vez que a literatura desses jovens autores é banhada no óleo quente da distância, mantém-se essa poética à margem e invisível, à mercê dos mesmos preceitos e preconceitos que prevalecem na história da literatura brasileira.