13 de dezembro de 2019

Castanha e Alexandre: dois olhares literários sobre o infantil marginalizado

Paula Cruz Pereira

Imagem de Pedro Solis


Antonio Candido, em “A personagem do romance”, diz que a ficção possibilita um conhecimento do outro completamente organizado. Diferentemente da vida real, onde a compreensão de outras pessoas se dá de forma fatalmente fragmentada e relativa, o personagem fictício é “inteiramente explicável” (p. 14). As ações e relações que o compõem constroem uma mensagem deliberada. É interessante pensarmos, então, nas possibilidades de representação contidas em um personagem criança. É o caso de Castanha, da HQ Castanha do Pará de Gildalti Jr. (2016), e Alexandre, de A casa da madrinha, Lygia Bojunga (1978).

Ambos tratam-se de jovens às margens da sociedade. Castanha é um menino que vive nas ruas de Belém do Pará. Após anos sofrendo violência doméstica, a mãe de Castanha assassina seu marido. Vem a polícia, a mãe desaparece e, desde então, o menino passa os dias rondando o mercado aberto da cidade. Já Alexandre, aparece viajando sozinho com um Pavão, no interior do Rio, montando shows para financiar a viagem. Cansou da vida de ambulante em Copacabana e saiu em busca da casa de sua madrinha. Nos deslocamentos, relações e desfechos das narrativas dos dois protagonistas, podemos observar duas abordagens para a vida da criança marginalizada na literatura. A divergência está na perspectiva.

Na contação de histórias, desde a Odisséia a Star Wars, a “jornada do herói” tem um papel incontestável. Viagens e deslocamentos são importantes não apenas no enredo mas também no desenvolvimento dos personagens, e os deslocamentos de Castanha e Alexandre constroem a história de cada um. Mas as diferenças entre a movimentação dos dois geram efeitos variados nas respectivas narrativas. Em Castanha do Pará, os deslocamentos de Castanha se dão de forma um pouco caótica. Como a história é narrada a partir da conversa de uma vizinha com um policial, não há sempre uma cronologia óbvia. O conto inicia com o flashback de uma situação de abuso na casa de Castanha. Na próxima vez que o vemos, está engraxando sapatos na rua, jogando futebol, depois a família outra vez. Essa confusão temporal gera uma aproximação inicial da história de Castanha com a realidade, onde nem sempre nos recordamos das coisas em ordem sequencial. 

A partir daí, nos deparamos com os deslocamentos de Castanha propriamente ditos. São quase sempre forçados: o menino dorme no chão, em frente a uma loja, e é enxotado pelo proprietário de madrugada, na hora de abrir a venda (p. 24). Vemos-no, então vagando pelo mercado Ver-o-peso em meio a buzinas do trânsito e broncas de vendedores diversos, até que em determinado momento, desmaia sob o sol (p. 39). Acorda ainda no mercado e consegue roubar uma banana, foge do policial, corta o pé—porque não tem sapatos (p. 52). Fica debaixo da chuva, ganha esmola em uma igreja (p. 69). Assim até a noite. Castanha é empurrado de um lado para o outro, tendo pouca agência sobre sua própria locomoção. Seu deslocamento não tem destino. Isso cria uma sensação bastante incômoda para o leitor, que vai se sentindo também impotente.

Os únicos momentos em que a situação é amenizada são em pequenos delírios, quando Castanha desmaia e também depois em uma brincadeira na chuva. Aí, sim, ele segura a taça do campeonato no centro do estádio (p. 41), é o herói da Barbie, joga com o Pelé, impersona Ayrton Senna (p. 59). É apenas nessas cenas, também, que estamos  completamente na perspectiva de Castanha, sem a interlocução da vizinha. Damos breves mergulhos na fantasia quando vemos a história através dos olhos do menino.
Já Alexandre, de A casa da madrinha, vive em uma grande fantasia. Ele aparece na cidade onde conhece Vera do dia para a noite, monta shows com um Pavão que fala—mas não pensa porque teve seu pensamento entupido numa escola especial—e leva Vera para a casa da madrinha num cavalo inventado. A casa da madrinha é uma história de criança, não apenas para criança, mas também por. Às vezes as falas de Alexandre se misturam com as do narrador e em meio a jogos de palavra, situações mirabolantes e comentários completamente diretos, a sensação é de que é mesmo uma criança contando a história:
A escola pra onde levaram o Pavão se chamava Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta de trás pra frente. (p. 37)

Nessa história, os mergulhos breves são os para a realidade. Depois de toda uma história do Pavão na Escola Osarta, Vera pede que Alexandre conte “a sua vida” para ela, e ele responde, no que parece quase uma só respiração, “Lá em Copacabana tinha um morro, no morro tinha uma favela, na favela tinha um barraco, no barraco tinha a minha família” (p. 57). Ela pergunta se lá é bom, e ele responde que “Não, tirando a vista, o resto todo é ruim” (p. 58). Mas aí entram no assunto de Augusto, irmão de Alexandre, e ele se lembra da professora que tinha uma maleta cheia de pacotinhos coloridos, e das histórias que o irmão contava antes de dormir, e o tom do romance fica leve novamente.

De vez em quando, percebemos paralelos entre a história sofrida imaginária do Pavão e a sofrida palpável de Alexandre. A Gata da Capa vira-lata, de vida difícil, briga por causa de comida e tem que escapar de carro, de ônibus (p. 119). Chega em casa de língua de fora. E Alexandre? Foi trabalhar arranjando táxi porque sorvete não tava vendendo. Tem que escapar de carro, de ônibus. “Tinha que escapar de tanta coisa, que chegava em casa de língua de fora” (p. 89). Mas  ainda assim, esse deslocamento sofrido e obrigado é colocado no mundo da fantasia e dos bichos falantes. Alexandre, na sua visão da sua história, foi quem quis sair do Rio por vontade própria: “Resolveu que a caixa de sorvete ia servir de mala, e se mandou mesmo sozinho lá pra casa da madrinha” (p. 91). Seu deslocamento, diferentemente do de Castanha, tem intenção e rumo. Assim, apesar de a realidade dos dois meninos não ser tão distinta, uma soa muito mais alegre do que a outra.

Passando para relações, a situação familiar dos dois protagonistas também se assemelha. Castanha assiste ao padrasto espancando a mãe, gritando palavras chulas que o menino também repete depois. “Te tirei da lama, sua piranha!” grita o homem quando a mãe tenta defender o filho, “SLAP!” (GIDALTI JR., 11). Castanha vira menino de rua. Enquanto isso, Alexandre é menino das favelas de Copacabana que saiu da escola para vender sorvete na praia; o pai “virou bêbado” (BOJUNGA, 58); o irmão e melhor amigo se casou e foi pra São Paulo. Alexandre abandona a casa e, pelo que tudo leva a crer, vira também menino de rua, sozinho uma cidade do interior.

Mas enquanto um menino é visto constantemente com desgosto e repreensão por todos que o cercam, o outro tem amigos. A própria vizinha de Castanha, em seu relato para o policial, diz, “Se a coisa só traz problemas e faz os outros sofrerem… é melhor que ela não exista!” se referindo ao menino (p. 75). Ele é constantemente rechaçado, expulso pelos vendedores do mercado, perseguido por guardas, mandado embora até mesmo da igreja, onde sua presença incomoda tanto que recebe um dinheiro para ir “fazer um lanchinho” (p. 69). Alexandre, apesar do desagrado dos pais de Vera—talvez até mesmo por causa desse desagrado—encontra nela uma grande amiga. São eles dois contra os adultos, contra a “gente grande” que “tem uma inveja danada de madrinha de gente pequena” (p. 131). Desde o começo do livro, enquanto todos olham para o Pavão, Vera está curiosa sobre Alexandre (p. 15). Somando isso ao próprio Pavão, companheiro de Alexandre, ainda que no plano da fantasia, e a Augusto, o irmão que antes de se casar, contava histórias e colocou Alexandre na escola, percebemos que ele recebe atenção o suficiente para sonhar. Castanha, não.

E isso nos leva aos desfechos. Castanha do Pará encerra com uma cena de  atropelamento, em que segundos antes do impacto com um ônibus, Castanha cria asas e desaparece pelo céu como um corvo (p. 75). O policial noticia a vizinha de um corpo não-identificado encontrado (p. 74). Não fica explícito, mas entendemos que o menino morreu. Em A casa da madrinha, Alexandre e Vera combinam de trocar correspondência. Abraçam-se forte. E aí Alexandre e o Pavão “foram sumindo e sumindo” numa dobra do caminho (p. 169). É um final deixado em aberto, não se sabe para onde Alexandre vai. Mas a melancolia da despedida ressalta a existência de uma conexão que Castanha, em sua história, não tem.

Observamos, então, dois caminhos que se pode tomar na representação de crianças em situações, objetivamente, vulneráveis. Com um deslocamento forçado e fragmentado, ausência de relações pessoais e desfecho de morte, Gidalti Jr. opta por uma abordagem mais presa à realidade. Bojunga, por outro lado, utiliza-se da perspectiva infantil para criar uma história que parte dos mesmos princípios, mas é fantástica e relativamente alegre: o deslocamento tem destino, amizades são formadas e o fim é incerto. O ponto de partida dos dois autores é semelhante, mas as duas trajetórias que dele decorrem não poderiam diferir mais. Como disse Candido, na ficção, onde tudo se explica, é possível selecionar detalhes para compor uma narrativa específica com ênfases específicas. Pode-se perceber aí o poder transformador das histórias. A vida real é mais complexa.

Referências
BOJUNGA, Lygia. A casa da madrinha. 20a ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2013. CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 2a ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. p. 51-80.
Disponível em .
GIDALTI JR. Castanha do Pará. Pará: Edição do autor, 2016. 

26 de outubro de 2019

A vida como não deveria ser: neorrealismo em Cidade de Deus.

Regilane Barbosa Maceno


Imagem de Anselmo Costa



O Neorrealismo surge como um movimento literário de engajamento crítico-social, cujo objetivo passa a ser, analisando as experiências humanas, expressar os valores da sociedade. Ao recuperar valores do regionalismo romântico, do Realismo e do Naturalismo do século XIX, os autores buscam registrar em suas obras os dramas coletivos do Brasil que apontam para nossa miséria de países subdesenvolvido, submerso no atraso, nas injustiças.
No Brasil, o Neorrealismo é inaugurado a partir de José Américo de Almeida com o romance A bagaceira, publicado em 1928. Essa obra fixa a nova tendência que se anuncia em decorrência, principalmente do descontentamento ao governo ditatorial de Getúlio Vargas.
Seguindo a ideia de representar a realidade brasileira, Rachel de Queiroz, publica O Quinze, em 1930. Jorge Amado surge com O país do Carnaval, em 1931. Menino de engenho, de José Lins do Rêgo em 1932 e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em 1938, somam-se ao romance de José Américo de Almeida e aprofundam o conceito de regionalismo, fazendo-o sair do exotismo romântico e dos excessos do Naturalismo para uma visão mais críticas da realidade.
A visita a esses problemas sociais ganha uma conotação universal e atemporal. Isso porque, o contexto histórico dentro e fora do Brasil era, em sua maioria, ditatorial. O país vivia o declínio da República Velha que culminou com a Revolução de 1930. Mas, o sentimento eufórico provocado pela a Revolução não durou muito, pois logo veio o Golpe de Estado que instituiu o Estado Novo ou Era Vargas. E muitos dos intelectuais e escritores que haviam lutado por ideais revolucionários acabaram presos, vítimas da censura e da perseguição política e, tiveram seus livros proibidos de circular.
Dentro desse cenário, o romance neorrealista mostra uma estreita relação com toda essa efervescência política pela qual o Brasil e o mundo passavam. Corresponde à crença na denúncia e análise dos problemas sociais do país como possibilidade de iniciar os processos de resolvê-los. O que para alguns críticos o tornava panfletário, vez que os romancistas, imbuído do sentimento de missão política, queriam mostrar as tensões que transformavam ou destruíam os homens enquanto construto social.
Em síntese, nas palavras de Bosi, o Neorrealismo parte do

Socialismo, freudismo, catolicismo existencial: as chaves que serviram para a decifração do homem em sociedade e sustentaria ideologicamente o romance ‘empenhado’ desses anos fecundos para a prosa narrativa. [...] difunde-se o gosto da análise psíquica, da notação moral, já radicada no mal-estar que pesava o mundo de entre-guerras. (BOSI, 1994, p. 389).

            Acompanhando a trajetória reafirmada pela obra neorrealista da segunda metade do século XX, alguns autores contemporâneos ainda fazem uso desses mecanismos para retratar os muitos personagens, atores sociais do painel das injustiças locais, nacionais e transnacionais da atualidade. Voltando-se para as mazelas urbanas, para a violência nas periferias, o abandono das forças sociais, os autores criam, de forma verossímil, personagens cujas dificuldades enfrentadas cotidianamente personificam a realidade brasileira atual. São personagens abandonados pela a esperança e pela memória.
            Cidade de Deus é uma fotografia do cotidiano da favela carioca que dá nome ao livro desde sua formação nos anos de 1960 até os anos pouco depois de 1990. Nesse romance Paulo Lins engendra a figura do “herói problemático”, em tensão com as estruturas degradadas vigentes, ou seja, estrutura incapaz de atuar os valores que prega: liberdade, justiça, igualdade social e de direito (BOSI, 1994). O autor transfigura a situação de uma comunidade real para o romance e, como ocorre no livro O cortiço, a comunidade é elevada ao papel de protagonista da história.
            São apresentados os criminosos, os policiais corruptos, os moradores que servem de escudos para o crime e os jovens de classe média em busca pela droga, a hipocrisia da sociedade e a maldade humana. Paulo Lins descreve com riqueza de detalhes, às vezes sórdidos, como os crimes são praticados, perpetuados e jogados sob o grande “tapete” da hipocrisia social, representada pela mídia.
            A obra Cidade de Deus é homóloga da estrutura social. (Goldmann, 1976). Tudo é realista, pois o autor sempre morou nessa favela. Assim, o romance Cidade de Deus pode ser chamado de neorrealista, pois traz consigo características fortes do romantismo, do Realismo e do Naturalismo, pois o autor parte de fatos reais para compor a trama do romance, juntamente com suas pesquisas antropológicas e linguísticas que enriquecem a história e permite apresentar ao leitor uma realidade crua dos acontecimentos. Para além disso, a obra traz também os traços da “cor local” na tessitura do texto, isto é, informações sobre espaço, costumes, e comportamento que permitem ao leitor reconhecer os aspectos típicos, característicos de uma região específica, aqui, a favela que nomeia a narrativa.
            Bosi (1994) distribuiu os romances brasileiros escritos a partir de 1930 do século XX em quatro tendências: o romance de tensão mínima; o romance de tensão interiorizada; o romance de tensão crítica e o romance de tensão transfigurada. Dentro dessas tendências, Cidade de Deus se enquadra no romance de tensão mínima, pois os personagens não se destacam tanto da paisagem que os condiciona.
            Em sua origem, o personagem neorrealista é coletivo, ou seja, é um grupo que vive em condições econômicas, morais e sociais adversas, embora haja um ou outro personagem que se destaque em relação ao grupo. Na obra em estudo, o personagem Busca-Pé cumpre a tarefa de ser o mecanismo de acesso à problemática social que o romance quer enfocar. Ele não sucumbe à realidade que o cerca, apesar dos vários “convites”. “Um dia aceitaria um daqueles tantos convites para assaltar ônibus, padarias, táxi, qualquer porra...” (LINS, 2002, p. 12).
Em Cidade de Deus, magotes de crianças, desde muito cedo, são explorados, os jovens lutam contra o desemprego e o preconceito traduzido na cor da pele:“Argumenta com os amigos que o loiro era filho de Deus, o branco Deus criou, o moreno era filho bastardo e o preto o Diabo cagou.”(idem, p.53). Ou em virtude da região de origem, como é o caso dos nordestinos da Paraíba e do Ceará que fugindo da seca migram para a cidade grande em busca de oportunidade: “Todo nordestino, além de puxa-saco de patrão é alcaguete. Essa raça não vale nada. São capazes de cagar o que não comeram” (idem, p. 140). São esses personagens que, dividindo esses espaços hostis, se debatem nesse romance contra o fatalismo do meio geográfico ou das forças sociais que os comprimem.
            Mas, contrariando o que se possa pensar, a personagem neorrealista, ao invés da sua miséria exterior, possui uma riqueza interior admirável que é a esperança metaforizada pelo sonho. Novamente o personagem Busca-Pé cumpre a função de transmitir o aceno de uma saída. Pensava ele,
Bem que as coisas poderiam ser como as professoras afirmavam, pois se tudo corresse bem, se arranjasse um emprego, logo, logo compraria uma máquina fotográfica e uma porrada de lentes. Sairia fotografando tudo o que lhe parecesse interessante. Um dia ganharia um prêmio. (LINS, 2002, p.12).

            Cabe ao narrador do romance ser o portador da voz que denuncia. E é através do personagem como Inferninho, um sonhador tal qual Sinhá Vitória, de Vidas Secas, que o narrador revela a impossibilidade de se esquivar, mesmo pelo sonho, à indiferença social, ao preconceito, ao crime, à morte. O personagem em questão sonha em fazer o “grande lance”, e constituir família com Berenice, sair da vida do crime, mas não teve saída. Ele simplesmente
Deitou-se bem devagar, sem sentir os movimentos que fazia, tinha uma prolixa certeza de que não sentiria a dor das balas, era uma fotografia já amarelada pelo tempo com aquele sorriso inabalável, aquela esperança de a morte ser realmente um descanso para quem se viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático anúncio de guerra. Aquela mudez diante das perguntas de Belzebu e a expressão de alegria melancólica que se manteve dentro do caixão. (idem, p. 171).

Situando a história no contexto da favela, o Lins acaba apreendendo o cerne das questões mais problemáticas que denuncia, analisando a origem dos conflitos e dilemas, pois “faz das personagens sínteses resultantes das ações e reações que se percebe entre elas e o mundo. Já não é o escritor que domina a personagem e a conduz; simplesmente a vida que o personagem vive é que a conduz, a ela e ao escritor” (REIS, 1981).
Essa independência da personagem é concretizada também na linguagem, pois, com o intuito de ancorar-se na verossimilhança, o escritor neorrealista coloca na boca dos personagens uma linguagem de acordo com seu status social. Linguagem popular, às vezes chula, agarrada à oralidade, mas que não ofusca o entendimento do leitor/interlocutor. “Se pintar os homi, larga o dedo! – avisou Ferroada.” (LINS, 2002 p.162); “comia meu cu dizendo que me amava e agora roba meu dinheiro na maior cara de pau! Filho da puta! – gritava Ana Rubro Negro” (idem, p. 215).
O retrato neorrealista da favela apresentado em Cidade de Deus mostra que o processo de socialização traz as marcas do abandono sócio-político ao qual os moradores estão subjugados: “Cidade de Deus não contava com o incentivo da prefeitura” (idem, p. 81). O sujeito é violentado diariamente em seus direitos de cidadãos pagadores de altos impostos.
O cidadão é obrigado a conviver diuturnamente com a violência banal, que se faz presente não só nas armas que ceifam vidas jovens, mas na maldade humana, incendiada pela ausência do olhar social, como vemos nesta passagem:

Tomou um copo de cachaça, vagarosamente, com um cruel sorriso desenhado no rosto. [...] Pegou a faca na rapidez do Diabo [...] Colocou o recém-nascido em cima da mesa. Este, ainda no primeiro momento, agiu como se fosse ganhar colo. Segurou o bracinho direito com a mão esquerda e foi cortando o antebraço. O neném revirava-se. Teve de colocar o joelho esquerdo sobre seu tronco. As lágrimas da criança saiam como se quisessem levar as retinas, num choro sobre-humano [...] Agia de modo automático. [...] teve dificuldade de atravessar o osso, apanhou o martelo embaixo da pia da cozinha, com duas marteladas, concluiu a primeira cena daquele ato. A criança esperneava o tanto que podia, seu choro era um coração sem jeito e sem Deus para ouvir. Depois não conseguiu chorar alto, sua única atitude era aquela careta, a vermelhidão querendo soltar dos poros e aquele sacudir de perninhas. [...] O bebê estrebuchava com aquela morte lenta. As duas pernas foram cortadas com um pouco mais de trabalho e a ajuda do martelo. O assassino levou a faca um braço acima da cabeça para descê-la e dividir aquele coração indefeso. (LINS, 2002, p.68-69).

Fica evidente a necessidade de se pensar sociologicamente, ou seja, compreender o contexto que envolve essa comunidade fadada a ocupar um lugar fora da memória. O rosário de crimes destrinchados ao longo da narrativa, praticados por todas as instituições sociais como família, o Estado, cuja incumbência é zelar pela a harmonia e o equilíbrio da sociedade como um todo mostra quão efêmero e ineficiente têm sido as preocupações com o ser humano. E os reflexos desse desamparo são reverberados no comportamento dos jovens das “cidades de Deus” espalhadas Brasil a fora, que são levados a buscar, cobrar na criminalidade, a tal da sobrevivência.
Em linhas gerais, Cidade de Deus é um romance neorrealista nos moldes de sua gênese, como Capitães da Areia, de Jorge Amado. É o retrato de uma realidade em que moleques traquinos, nem tão meninos, com a inocência perdida nas esquinas das favelas, carentes de afetos, de instrução transfiguram o cenário social contemporâneo. É a certeza de que nenhuma das camadas sociais está isenta de participação, para o bem ou para o mal.


Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cutrix, 1994.
GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance; tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
LINS, Paulo. Cidade de Deus: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
REIS, Carlos. “Evolução literária”. In Textos Teóricos do Neo-Realismo Português. Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicações,1981.

28 de setembro de 2019

Literatura e princípios morais

(Em memória ao professor Wilton Barroso Filho)

Uirá Rauan


Diary of Discoveries, de Vladimir Kush



                         Descobrir o que somente um romance pode descobrir é a única razão de ser do romance. O  romance que não descobre algo até então desconhecido da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance.
Hermann Broch


O julgamento moral se mostra desprezível dentro da criação literária, ao passo que pode prejudicar tanto a composição da obra, a criação, como também a reflexão filosófica acerca da obra já pronta. É indispensável pensar na composição romanesca como uma grande ferramenta de descobrimento do que é a vida humana nas suas mais diversas facetas, isso traz autonomia e liberdade à criação literária. Essa liberdade, ou libertação, é inclusive moral, posto que no âmbito da criação literária, os julgamentos morais, o preconceito, devem ser extintos. Suspender juízos morais não é uma tarefa razoável para o leitor comum, por exemplo, que geralmente não está interessado na reflexão crítico-filosófica a respeito da obra literária. Já para o leitor pesquisador que, necessariamente, deve enxergar o campo literário como lugar doador de riqueza de possibilidades - principalmente no que diz respeito ao conhecimento sobre a condição humana -, a isenção de julgamento moral, no contato com a criação literária, se torna um dever.
Tendo em vista a criação literária, a moral pode ser explícita, no caso em que o autor é o próprio narrador e “assume” seu pensamento independente das sanções que possa vir a sofrer, implícita ou até mesmo negada, quando, em vias de ser rechaçado, prefere adotar o modelo do narrador ausente e/ou atribuir seu pensamento a um objeto, ou a qualquer outra pessoa que não seja ele mesmo. Isso pode ser considerado uma ironia, no sentido de ironia como uma máscara: se o autor coloca um defunto para narrar, como, por exemplo, Machado de Assis fez em Memórias póstumas de Brás Cubas, ele pode falar tudo o que pensa sem o risco de ser julgado moralmente, pois o narrador defunto lhe protege de possíveis julgamentos de cunho moral. No capítulo cento e dezenove dessa obra, por exemplo, o narrador defunto, Brás Cubas, elenca meia dúzia de máximas muito irônicas. Numa delas lemos: “Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro”. Em outra, ele escreve que, “um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”. Ou seja, Machado, astuciosamente, formula frases de conteúdo extremamente sarcástico, outorga-lhes autoridade axiomática e as coloca na boca do narrador defunto. Tal é o poder dessa escolha estética, que não parece ao leitor, que sejam frases e sarcasmos do autor e sim do narrador. E se o narrador é um defunto, é impossível julgá-lo. Isso confere ao narrador, uma liberdade filosófica imensa - e ao autor consequentemente.
Outra referência importante é a obra de Gustave Flaubert, Madame Bovary, que é capaz de “discutir” a moral, do ponto de vista da infidelidade conjugal. A narrativa é sobre a vida de Emma Bovary, uma mulher que trai o marido e vive oscilante entre paixões e desventuras. É possível afirmar que o autor poderia estar defendendo a infidelidade conjugal como algo normal, aceitável e até tranquilo de se dá. E aconteceu algo parecido à época da publicação: a obra sofreu censura e Flaubert foi processado pelo ministério público francês por insulto à moral pública e à religião, sendo absolvido mais tarde. Nesse caso, especificamente, a intenção de Flaubert não foi defender nem acusar a infidelidade conjugal, mas mostrá-la de modo que Emma fosse valorizada em sua humanidade. O autor chama a atenção para o fato de que Emma, acima da infidelidade, é um ser humano complexo e singular como os seus pares.
A infidelidade conjugal, tem sido desde sempre discutida e vista como algo imoral, no entanto, um número razoável de pessoas, essas mesmas que pregam ser, a infidelidade conjugal, imoral, traem e são traídas. Nesse caso, como falar que a pessoa fiel tem moral se o comportamento humano, na maioria das vezes tem sido “imoral”? Como a produção literária poderia assumir a infidelidade como moral ou imoral sem ferir determinados grupos sociais? Seria razoável, se utilizar da literatura para fazer uma discussão tão polêmica? Qual seria o papel que a produção literária assumiria nesse contexto?
Milan Kundera, escritor romanesco e teórico literário tcheco, nos ilumina a respeito dessa temática da moral no campo literário. Em seu ensaio “Os testamentos traídos”, ele diz que “suspender o julgamento moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral”. Ou seja, um romance é imoral a partir do momento que se priva de liberdade por motivos morais ou por valores pautados em leis desse tipo. Essa moral - própria da criação literária - é o que “se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender”, e é nesse sentido que o julgamento moral está para além do romance e, em verdade, deve ser exterior ao romance.
Penso que, no âmbito da criação romanesca, o conceito de moral é relativo ou particular. A criação literária como território fecundo, de onde emana conhecimento acerca da vida humana e do mundo, é útero perfeito de uma proposição metodológica apoiada na epistemologia, que possibilita uma infinidade de reflexões filosóficas. Epistemologia em seu sentido comum é uma área da filosofia que trata dos problemas que envolvem o conhecimento humano, com vistas ao valor e à essência do mesmo. Uma proposta metodológica de epistemologia do romance seria então a grande resposta para as perguntas feitas anteriormente. A obra romanesca suscita a reflexão filosófica e se nos entregamos a ela, com intenções epistemológicas, somos capazes de decompô-la, esquadrinhá-la e, deste modo, alcançarmos o cerne da sua composição. Portanto, o papel da criação romanesca é fazer conhecer, provocar reflexões e possibilitar uma liberdade estética essencial ao conhecimento.
Finalmente, se for verdade que “o conhecimento é a única moral do romance”, então é possível afirmar que o artista literário pode falar o que quiser independente do pensamento social vigente, que pode produzir julgamentos morais, basta que a obra produza conhecimento e traga à tona o desconhecido acerca da condição humana, da existência. O autor pode, astuciosamente, se utilizar de outros seres para acobertar o seu pensamento e, dessa maneira, se livrar de todo e qualquer julgamento que, por ventura, venham a lhe fazer.
O leitor que tenha acesso ao escrito literário, provavelmente, sentirá amor ou ódio pelo objeto utilizado pelo autor para expor suas ideias. Nesse sentido, o julgamento moral é externo à obra literária e não se trata de confundir a moral própria da obra literária com uma moral externa, pré-fabricada. Portanto, devemos buscar a fruição que a obra literária tem a oferecer, livre de preconceitos e julgamentos morais. Esse exercício, que deve ser natural para o leitor pesquisador, o leitor comum, sem grandes interesses pela reflexão filosófico-epistemológica acerca da arte literária, pode também fazer.

Referências:
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.145.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. Tradução, Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera Mourão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.11.
KUNDERA, Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Tradução, Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 07.

14 de setembro de 2019

A voz da literatura surda

Júlia Lacerda de Souza


Imagem: Nancy Rourke



Como Coda – Children of Deaf Adults –, filha ouvinte de pais surdos, nasci e cresci na fronteira entre dois mundos que se encontram. Aprendi e continuo aprendendo, a cada dia, com as diferentes visões de mundo que tenho o prazer de conhecer, da mesma forma como considero que a todos é fundamental explorar outros “universos”, a fim de que as relações humanas possam ser estendidas para um patamar de maior empatia e cuidado com o outro, exercitando uma relação mais profunda de alteridade.

Este mês de setembro, especialmente, muito me faz refletir sobre a luta dos surdos e as suas conquistas. É claro que, assim como outros movimentos que lutam em prol de algo, a luta da comunidade surda é diária, mas este mês nos afirma algumas marcações que fundamentalmente determinaram a comunidade surda e nos é importante considerar.

Do dia 06 ao dia 11 de setembro tomamos a triste recordação do Congresso de Milão, em 1880, no qual o método oralista foi adotado como o mais correto para os indivíduos surdos e foi promulgado que as línguas gestuais devessem ser proibidas – por uma votação quase unânime, composta, em quase sua totalidade, por indivíduos ouvintes –. Seguindo os marcos de setembro, comemoramos, no dia 23, o Dia Internacional das Línguas de Sinais, oficializada pelo ONU em dezembro de 2017, tomando como base a fundação da WFD – World Federation of the Deaf –, Federação Mundial dos Surdos, no dia 23 de setembro de 1951; no dia 24, a oficialização da Libras – Língua Brasileira de Sinais – através da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002; e, no dia 26, o Dia Nacional do Surdo, oficializado pelo governo federal em outubro de 2008, tomando como base a data considerada como de fundação do INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos –, no dia 26 de setembro de 1857. 

Dessa forma, trago essas lembranças como alguém que anseia por uma realidade em que possamos nos (re)conhecer e (re)conhecer o outro em seu contexto. E, em um cenário como esse, podemos pensar também a literatura, uma vez que uma das visões que comumente é a ela atribuída é a de sua grande capacidade de abrir uma passagem para um outro “plano” e até mesmo para seu conhecido desconhecido.

“Mas, literatura surda?” Desde que decidi dedicar-me a pesquisar a literatura surda, não há tanto tempo, quando apresento meu objeto de estudo, comumente percebo essa indagação intercalada por sinceros “não, nunca ouvi falar”, mas que logo se alinha com um “caramba! O que é?”. É algo para se pensar. Até certo tempo, nem eu mesma sabia realmente o que era essa literatura e, assim como eu, muitos ainda não a conhecem, incluindo até parte dos próprios indivíduos surdos. Assim, faz-se necessário divulgá-la e ampliar o conhecimento e os estudos que permeiam essa manifestação artística. Deve-se falar dessa literatura de representação de uma cultura e identidade própria que é tão bela e se constitui de tantas particularidades e singularidades.

Com base no conceito de Karnopp (2006), compreende-se essa literatura como as produções que representam e fazem parte da comunidade surda, em relação às línguas de sinais, identidade e cultura, que captam a surdez não como uma falta ou como um problema a ser resolvido, mas sim como uma diferença que implica em um estilo de vida, de percepção e de assimilação próprio acerca da realidade que advém da experiência visual. Ela cria uma aproximação do sujeito com a cultura e, para os próprios surdos, auxilia ainda no processo de construção de sua identidade. Isso nos faz refletir sobre a força da literatura e, aqui, uma literatura que expressa a autorrepresentação, que mostra a sua voz e, mesmo no silêncio, tanto fala, tanto ensina e tanto amplia.

Nesse silêncio, me imagino. Penso em como vivemos em um mundo moderno que tanto quer dizer e fala, fala e fala. Será que ele realmente diz? Será que ele realmente escuta? Aprendi desde cedo, com os meus pais, a apreciar o silêncio. Por causa da língua ser a de sinais? Também. Eles me ensinaram a observar mais, a entender a linguagem do corpo e perceber que o silêncio fala, ainda que não queira. Hoje, percebo o quanto a experiência sensível e sensorial é importante. Acredito que a literatura aluda a essa experiência sensível, ainda que não passe por uma percepção essencialmente visual. Ela nos provoca. Provoca dúvidas, provoca risos, provoca paixão, provoca tristeza, provoca inquietação. Ela provoca. E, é nesse deixar a obra falar que possivelmente possamos entender experiências de leitura. Como lemos? Estamos respeitando a voz do outro? 

A literatura surda é algo recente, ainda se consolidando. Nela, observamos uma voz: a voz do surdo, a voz de um grupo, a voz de uma comunidade. E, embora, em sua maioria, se constitua por obras do gênero infantil e infanto-juvenil, já podemos notar características que a particularizam. O que é enxergar o mundo pelos olhos de que quem os utiliza como ouvidos?

Aqui, a representatividade surda é essencial. Autores que reproduzam a experiência mais sincera de quem puramente vivencia esse olhar. Que possamos ter cada vez mais produtores de arte surdos, que sejam os protagonistas da própria narrativa e que possam contribuir para o alavancamento dessa também forma de expressão, a fim de que alguns se identifiquem e outros compreendam. Que conheçam. 

É nesse panorama que penso que possamos nos atentar a possibilitar que a voz do outro se revele. Que possamos enxergar. Que possamos dar visibilidade e espaço para a literatura da qual este texto trata. E que possamos ir além, possamos levantar novas questões, pensarmos juntos e questionar, inclusive. Que a (re)afirmação de uma vida se torne essa voz que aqui, por meio da literatura e, ainda, surda possa fazer ecoar a voz do silêncio.

Referências: 
MIANES, Felipe; MÜLLER, Janete; FURTADO, Rita. Literatura surda: um olhar para as narrativas de si. KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN (Orgs.). Cultura Surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Ed. Ulbra, p. 55-70, 2011.

 KARNOPP, Lodenir Becker. Literatura surda. ETD: Educação Temática Digital, v. 7, n. 2, p. 98-109, 2006. 

7 de setembro de 2019

Afrofuturismo não é só sobre futuros utópicos, mas essas são as imagens que mais precisamos



Waldson Gomes de Souza

Phases, de Manzel Bowman


 

O fim do mundo, para a população negra, veio séculos atrás quando a primeira nave alienígena chegou ao continente africano. Pessoas negras foram abduzidas por estranhos, levadas em navios enormes para terras desconhecidas e foram subjugadas, escravizadas, expostas a experimentos e submetidas a diversos tipos de violência. Essa leitura afrofuturista do colonialismo encara o “contato com o outro” não como mero tema amplamente trabalhado na ficção científica, mas como realidade devastadora que gerou o contexto distópico no qual povos negros se encontram até hoje.
            O afrofuturismo é um movimento artístico e estético que nasce da união entre ficção especulativa (fantasia, ficção científica e horror) com autoria e protagonismo negros. Obras afrofuturistas, independente do formato, trabalham questões que são pertinentes para a população negra, seja questionando as estruturas opressoras do presente, resgatando passados apagados ou projetando imagens futuras que se deseja ou não seguir. Não se trata necessariamente de obras ambientadas no futuro, como o termo pode dar a entender em um primeiro momento. Afrofuturismo também é sobre horrores detectáveis no presente, fantasias mirabolantes, acontecimentos sobrenaturais diversos, contextos ainda mais opressores, futuros múltiplos e ímpares.
            Neste texto, apresento alguns pensamentos centrais da minha dissertação de mestrado sobre afrofuturismo na literatura brasileira contemporânea. Tive a preocupação de estabelecer um conceito rigoroso o suficiente para não ser muito amplo e ao mesmo tempo não limitar demais as obras. Alguns elementos precisam ser definidos, caso contrário, tudo será afrofuturismo — e se tudo for afrofuturismo, não existiria a necessidade de nomear. Nomear é importante, assim como definir critérios.
            O ponto central da minha perspectiva é pensar o afrofuturismo a partir da ficção especulativa, termo que utilizo para aproximar a fantasia, o horror sobrenatural e a ficção científica. Entendo que esses três gêneros conversam entre si ao fugirem das regras do nosso mundo real, ao construírem narrativas com elementos irrealistas, ao especularem outras realidades. E defendo que para o afrofuturismo é mais importante pensar como cada autor usa a ficção especulativa para abordar questões relacionadas à experiência negra e dar destaque ao protagonismo negro, respeitando sim os respectivos recursos, mas sem a necessidade de separar os três gêneros. Através da ficção, o afrofuturismo cria imagens e nos permite visualizar alternativas e outros cenários.
É nesse sentido que o escritor Samuel R. Delany aborda a contribuição de Susan K. Langer em relação ao poder da imagem. Langer diz que a experiência inicial com a imagem de algo que ainda não existe serve como impulso para o progresso humano em vários campos da sociedade. E com isso Delany reforça seu argumento de que a população negra, mais que qualquer outro grupo, precisa de imagens sobre o futuro, imagens do amanhã. Com essas imagens em mente, visualizando muitas alternativas, tanto boas quanto ruins, é que se pode ter algum controle sobre o modo de se chegar a um futuro concreto, um amanhã real. E o afrofuturismo é capaz de fornecer noções de futuro para além de suas obras, pois ao entrar em contato com essas histórias (mesmo que não sejam futuristas), pessoas negras encontram outros modelos tão necessários de representação.
Na década de 1960, Nichelle Nichols interpretou a Tenente Uhura na série Jornada nas estrelas (1966-1969), uma época em que mulheres negras só atuavam como empregadas domésticas, salvo raras exceções. Ytasha Womack conta que Nichols quis abandonar o papel, mas acabou mudando de ideia quando foi convencida por Martin Luther King Jr. a continuar interpretando Uhura. A personagem estava mudando mentes e quebrando paradigmas em um contexto mais que necessário. A importância de Uhura fica mais que evidente na biografia de duas mulheres negras famosas. Mae Jemison, a primeira negra a ir ao espaço em 1992, desejou se tornar astronauta porque assistia Star Trek quando criança. E Whoopi Goldberg também foi influenciada por Uhura na sua decisão de se tornar atriz. Para essas crianças, a personagem Uhura forneceu rupturas, foi uma imagem poderosa que lhes permitiu sonhar com futuros melhores, que forneceu outro caminho além das representações recorrentes.
Com tudo que está acontecendo, pode ser difícil manter a esperança e imaginar alternativas positivas. É difícil não se sentir paralisado e impotente diante de notícias ruins surgindo constantemente. Mas ainda precisamos imaginar futuros prósperos. É por isso que eu gosto tanto da noção desenvolvida por Walidah Imarisha de que pessoas negras hoje vivem uma ficção científica. Ela diz: “Nós somos os sonhos de pessoas negras escravizadas que ouviram que era muito ‘irreal’ imaginar que um dia elas não seriam chamadas de propriedade. Essas pessoas negras se recusaram a limitar seus sonhos ao realismo, e, em vez disso, nos sonharam.” Há força nesse pensamento, uma força que transcende as barreiras do tempo. É ancestralidade, é projeção de um futuro. Futuro ancestral. O afrofuturismo permite que pessoas negras contem suas próprias histórias especulativas e se reconheçam em seus heróis e heroínas. O afrofuturismo pode expandir os horizontes de uma garotinha negra, fazendo-a desejar ser astronauta só porque a imagem de uma personagem lhe diz que isso é possível. O afrofuturismo nos faz sonhar, mesmo com todas as opressões e adversidades do mundo real. E não podemos deixar de sonhar com futuros reais melhores. Não podemos deixar de imaginar as ficções que desejamos encontrar no mundo real.

Referências

DELANY, Samuel R. (1984). The necessity of tomorrows. In: Starboard wine: more notes on the language of science fiction. New York: Dragon Press.
IMARISHA, Walidah. Rewriting the future: using science fiction to re-envision justice. Bitch Media, 11 dev. 2015. Disponível em: .
WOMACK, Ytasha L. (2013). Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture. Chicago: Lawrence Hill Books.

24 de agosto de 2019

A produção literária brasileira sobre a ditadura: uma breve lista



Berttoni Licarião

Anomalie 03, de Eric Lacombe

Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.
José Saramago.


Vez ou outra, preciso me apresentar em uma roda de conversa e dizer que sou um pesquisador de literatura ocupado com a memória da ditadura na ficção contemporânea brasileira. As reações que recebo são as mais variadas e renderiam, elas mesmas, uma longa tese. No amplo espectro das respostas mais comuns, há, naturalmente, num primeiro extremo, aqueles que reconhecem a importância do tema e me parabenizam pela escolha. Em seguida, bem no meio dessa régua imaginária, encontra-se o grande conglomerado dos “incrédulos desinformados”, que ora perguntam se tem mesmo alguma coisa para se estudar, ora preferem encarar um silêncio constrangedor, levemente arrependidos da pergunta. Por fim, localizadas num ponto diametralmente oposto ao primeiro grupo concentram-se as pessoas que mais me preocupam: são as que sugerem, quase entre dentes, meu “desperdício de tempo” com “um tema superado”, isso quando não deixam escapar um alarmante riso negacionista.

A ditadura não é “uma página virada da nossa história”!

Essa percepção da ditadura civil-militar brasileira como página virada de nossa história não é uma onda recente e se alimenta, principalmente, da ausência de políticas da memória efetivadas a nível institucional. Frente a normatização do esquecimento, as esferas culturais reagem como podem. Para ficarmos apenas no campo da literatura, textos literários sobre a ditadura brasileira não apenas existem como são abundantes, enchem bibliotecas, recebem prêmios, são discutidos e estudados nas universidades. No entanto, por falhas estruturais em nossa transição para a democracia, eles carecem de capilaridade e rapidamente caem no ostracismo dos livros que não ocupam as listas de mais vendidos. As exceções existem, ainda que raras, como foi o caso de O irmão alemão (2014), de Chico Buarque, autor que sabemos ser capaz de transformar em best-seller até mesmo um livro de receitas com 150 maneiras de preparar chuchu.  
O silêncio que muitas vezes sufoca ficções e relatos sobre a ditadura é um projeto de longa data. Após assumir o controle do país em 1979, o ditador João Batista Figueiredo enviou ao congresso, sob enorme pressão de vários setores da sociedade civil, o projeto de lei que concedia anistia aos crimes cometidos durante os anos de exceção. Na época, o militar declarou: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento [...]. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco.”[1] Com efeito, o desejo do ditador fez-se lei, e o trauma da ditadura foi varrido para debaixo do tapete, ao invés de ser encarado coletivamente.
A falta de elaboração coletiva de um período em que crimes contra a humanidade foram cometidos por um Estado autoritário gera incompreensão e mal-estar social, e suas consequências podem ser sentidas ainda hoje. Quem aí tentar enxergar as filigranas de nosso tecido democrático, conseguirá perceber o quanto a Constituição Cidadã de 1988 guarda trechos inteiros da Constituição autoritária de 1967 (e sua emenda de 1969). Como nossa lei da Anistia, de 1979, apesar de não prever o perdão para torturadores (porque crimes de tortura não são anistiáveis) foi considerada como valendo para todos e prossegue garantindo impunidade a quem torturou, matou e desapareceu aqueles que se opuseram ao regime. Que o nosso direito à verdade e à justiça — condição para o funcionamento de uma democracia — tem sido constantemente negado pelas Forças Armadas que mantém escondidos da sociedade os arquivos da ditadura. E que pesquisas da última década[2] comprovam que o uso da tortura e da violência pela polícia brasileira aumentou após a redemocratização, não mais direcionado aos “comunistas subversivos”, mas à juventude negra e aos moradores das periferias.

A literatura e o resgate da memória coletiva

O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua Comissão da Verdade — iniciada em 2012 e finalizada em 2014. Tornando-se, portanto, o último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante atraso em um processo de resgate fundamental à memória coletiva gera aquele temerário quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. Afinal, a literatura sempre foi, e continuará a ser, “a maldição das ditaduras”, nas palavras do crítico e escritor argentino Alberto Manguel. Foi assim que, resistindo à censura das décadas de 1960 e 1970, ela nos presenteou com obras-primas como Quarup (Antonio Callado, 1967), Incidente em Antares (Erico Verissimo, 1971), Sombras de reis barbudos (José J. Veiga, 1972), As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1973) e Os que bebem como cães (Assis Brasil, 1975), entre tantos outros grandes romances.
Nas décadas seguintes, a literatura sobre a ditadura civil-militar brasileira se sustentou com força no testemunho de exilados, ex-guerrilheiros e sobreviventes das torturas. Como exemplo, temos os relatos imprescindíveis de Renato Tapajós (Em câmara lenta, 1977), Frei Betto (Batismo de sangue, 1982), Luiz Roberto Salinas (Retrato calado, 1988), Salim Miguel (Primeiro de abril, 1994), Flávio Tavares (Memórias do esquecimento, 1999) e, mais recentemente, aquele curto e belíssimo livro da Maria Pilla chamado Volto semana que vem (2015). Além, claro, das narrativas conciliatórias e, por isso mesmo, bastante problemáticas, de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?, 1979) e Alfredo Sirkis (Os carbonários, 1980).
Na falta de monumentos, tribunais e lugares de memória, nosso trauma resiste ao esquecimento e se reelabora por meio da literatura, através de um complexo inventário que recria tudo aquilo que a historiografia é incapaz de dizer: a dor e as feridas, as lágrimas e o sangue, a tensão e o horror. O arquivo é duro, de pouco acesso, lugar para historiadores com suas luvas e máscaras de proteção; a literatura, ao contrário, consegue ser um pouco mais democrática, cabe na mão e atinge um público mais amplo, ávido por conhecer seu passado.
Durante os anos 1990 e início do século XXI, mais ficções apareceram para dar conta dessa memória áspera e ainda dolorida. Para exemplos, temos Amores exilados (Godofredo de Oliveira Neto,  1997), Romance sem palavras (Carlos Heitor Cony, 1999), Cinzas do norte (Milton Hatoum, 2003), Não falei (Beatriz Bracher, 2004), A chave de casa (Tatiana Salem Levy, 2007), Nem tudo é silêncio (Sonia Regina Bischain, 2010) e o surpreendente Azul corvo (Adriana Lisboa, 2010), uma das poucas narrativas que tratam da Guerrilha do Araguaia, massacre de opositores ao regime promovido pelas Forças Armadas e que foi negado durante muitos anos pelos militares.

K. Relato de uma busca: divisor de águas

Em 2011, às vésperas da criação da Comissão Nacional da Verdade, a novela K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, se torna um verdadeiro divisor de águas da literatura nacional. De forma pioneira, misturando dados biográficos e históricos à invenção literária, Kucinski denuncia a precarização da memória brasileira sobre os anos de repressão através da história de um pai à procura da filha e do genro, desaparecidos políticos da ditadura. Esse ponto nuclear da narrativa parte da vivência do autor, que perdeu a irmã e o cunhado — Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva — quando ambos foram sequestrados em 1974 pelas forças de segurança do estado de São Paulo. A partir de K. um novo ciclo cultural tem início, no qual as obras literárias não apenas visitam o passado recente, mas apontam para a relação indissociável entre a violência do presente e o “mal de Alzheimer nacional”. Ainda sobre a ditadura, Kucinski publicou outros três livros, Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), Os visitantes (2016) e A nova ordem (2019).
Com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), a literatura brasileira sobre a ditadura ganhou novo fôlego e se transformou num palco para o acerto de contas entre história nacional e memória coletiva. Fomentados pelo rebuliço nos arquivos, os livros se tornam, neste momento, “obstáculos levantados contra o convite ao esquecimento”, na expressão de Beatriz Sarlo.[3] Em 2012 foram lançados Mar azul (Paloma Vidal), Estive lá fora (Ronaldo Correia de Brito) e Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (Liniane Haag Brum), e em 2013, Vidas provisórias, do Edney Silvestre. Já em 2014 foram publicados a coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato, Nos idos de março, e os romances Damas da noite (Edgard Telles Ribeiro) e Qualquer maneira de amar (Marcus Veras). O ano de 2015 nos trouxe Ainda estou aqui (Marcelo Rubens Paiva), Cova 312 (Daniela Arbex), Mulheres que mordem (Beatriz Leal Craveiro), O amor dos homens avulsos (Victor Heringer), Palavras cruzadas (Guiomar de Grammond) e o vencedor dos prêmios Jabuti e José Saramago, A resistência, de Julián Fuks.

A literatura continuará a falar da ditadura

Nas palavras de Beatriz Sarlo, “as palavras são, de fato, testemunhas informantes”,[4] especialmente contra a atrofia da memória. Muito a contragosto de grupos conservadores ou negacionistas, o último triênio não apresentou qualquer queda na produção de textos literários sobre os anos de exceção. Preocupados em demonstrar como a violência da ditadura ocupa os mais diversos espaços da contemporaneidade, uma nova leva de livros continua a surgir sem descanso: é o caso de Cabo de guerra (Ivone Benedetti, 2016), Felizes poucos (Maria José Silveira, 2016), Outros cantos (Maria Valéria Rezende, 2016), O indizível sentido do amor (Rosângela Vieira Rocha, 2017), A noite da espera (Milton Hatoum, 2017), Silêncio na cidade (Roberto Seabra, 2017), Paris – Rio – Paris (Luciana Hidalgo, 2017), o infanto-juvenil Clarice (Roger Mello, 2018), Uma mulher transparente (Edgard Telles Ribeiro, 2018), Sob os pés, meu corpo inteiro (Marcia Tiburi, 2018), Correio do fim do mundo (Tomás Chiaverini, 2018) e Setenta (Henrique Schneider, 2018). Merece destaque, neste período, a Trilogia infernal da pernambucana Micheliny Verunschk composta pelos romances Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018).
Esta lista poderia ser muito mais longa, mas nunca foi seu propósito exaurir o assunto. Pelo contrário, deve ser encarada como um convite para leitoras e leitores que, seguindo o conselho de José Saramago que ficou lá em cima, reconhecem que somos, de fato, a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Se o que está em jogo é a capacidade ou não de reconhecermos nossa responsabilidade pela memória de um autoritarismo que continua a assombrar o presente, é preciso estar atento e forte para que, seguindo o exemplo da personagem kafkiana, a vergonha também não seja a única coisa que nos sobreviva.


[1] Monteiro, Tânia. Venturini: “O grande mentor da anistia foi Figueiredo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 ago. 2009. Disponível em: . Último acesso: 16 ago. 2019.
[2] Penna, João Camillo.  “Estado de exceção: um novo paradigma da política?”. In: Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, jan./jun. 2007.
[3] SARLO, Beatriz. Os militares e a história. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EdUSP, 2005. p. 25-34.
[4] Idem.