Waldson Gomes de Souza
Phases, de Manzel Bowman |
O fim do mundo, para a população
negra, veio séculos atrás quando a primeira nave alienígena chegou ao
continente africano. Pessoas negras foram abduzidas por estranhos, levadas em
navios enormes para terras desconhecidas e foram subjugadas, escravizadas, expostas
a experimentos e submetidas a diversos tipos de violência. Essa leitura
afrofuturista do colonialismo encara o “contato com o outro” não como mero tema
amplamente trabalhado na ficção científica, mas como realidade devastadora que
gerou o contexto distópico no qual povos negros se encontram até hoje.
O
afrofuturismo é um movimento artístico e estético que nasce da união entre
ficção especulativa (fantasia, ficção científica e horror) com autoria e protagonismo
negros. Obras afrofuturistas, independente do formato, trabalham questões que
são pertinentes para a população negra, seja questionando as estruturas
opressoras do presente, resgatando passados apagados ou projetando imagens
futuras que se deseja ou não seguir. Não se trata necessariamente de obras ambientadas
no futuro, como o termo pode dar a entender em um primeiro momento. Afrofuturismo
também é sobre horrores detectáveis no presente, fantasias mirabolantes,
acontecimentos sobrenaturais diversos, contextos ainda mais opressores, futuros
múltiplos e ímpares.
Neste
texto, apresento alguns pensamentos centrais da minha dissertação de mestrado
sobre afrofuturismo na literatura brasileira contemporânea. Tive a preocupação
de estabelecer um conceito rigoroso o suficiente para não ser muito amplo e ao
mesmo tempo não limitar demais as obras. Alguns elementos precisam ser
definidos, caso contrário, tudo será afrofuturismo — e se tudo for
afrofuturismo, não existiria a necessidade de nomear. Nomear é importante,
assim como definir critérios.
O
ponto central da minha perspectiva é pensar o afrofuturismo a partir da ficção
especulativa, termo que utilizo para aproximar a fantasia, o horror
sobrenatural e a ficção científica. Entendo que esses três gêneros conversam
entre si ao fugirem das regras do nosso mundo real, ao construírem narrativas
com elementos irrealistas, ao especularem outras realidades. E defendo que para
o afrofuturismo é mais importante pensar como cada autor usa a ficção
especulativa para abordar questões relacionadas à experiência negra e dar
destaque ao protagonismo negro, respeitando sim os respectivos recursos, mas
sem a necessidade de separar os três gêneros. Através da ficção, o
afrofuturismo cria imagens e nos permite visualizar alternativas e outros
cenários.
É nesse sentido que o escritor
Samuel R. Delany aborda a contribuição de Susan K. Langer em relação ao poder
da imagem. Langer diz que a experiência inicial com a imagem de algo que ainda
não existe serve como impulso para o progresso humano em vários campos da
sociedade. E com isso Delany reforça seu argumento de que a população negra,
mais que qualquer outro grupo, precisa de imagens sobre o futuro, imagens do
amanhã. Com essas imagens em mente, visualizando muitas alternativas, tanto
boas quanto ruins, é que se pode ter algum controle sobre o modo de se chegar a
um futuro concreto, um amanhã real. E o afrofuturismo é capaz de fornecer
noções de futuro para além de suas obras, pois ao entrar em contato com essas
histórias (mesmo que não sejam futuristas), pessoas negras encontram outros
modelos tão necessários de representação.
Na década de 1960, Nichelle Nichols
interpretou a Tenente Uhura na série Jornada
nas estrelas (1966-1969), uma época em que mulheres negras só atuavam como
empregadas domésticas, salvo raras exceções. Ytasha Womack conta que Nichols
quis abandonar o papel, mas acabou mudando de ideia quando foi convencida por
Martin Luther King Jr. a continuar interpretando Uhura. A personagem estava
mudando mentes e quebrando paradigmas em um contexto mais que necessário. A
importância de Uhura fica mais que evidente na biografia de duas mulheres
negras famosas. Mae Jemison, a primeira negra a ir ao espaço em 1992, desejou
se tornar astronauta porque assistia Star
Trek quando criança. E Whoopi Goldberg também foi influenciada por Uhura na
sua decisão de se tornar atriz. Para essas crianças, a personagem Uhura
forneceu rupturas, foi uma imagem poderosa que lhes permitiu sonhar com futuros
melhores, que forneceu outro caminho além das representações recorrentes.
Com
tudo que está acontecendo, pode ser difícil manter a esperança e imaginar
alternativas positivas. É difícil não se sentir paralisado e impotente diante
de notícias ruins surgindo constantemente. Mas ainda precisamos imaginar
futuros prósperos. É por isso que eu gosto tanto da noção desenvolvida por
Walidah Imarisha de que pessoas negras hoje vivem uma ficção científica. Ela
diz: “Nós somos os sonhos de pessoas
negras escravizadas que ouviram que era muito ‘irreal’ imaginar que um dia elas
não seriam chamadas de propriedade. Essas pessoas negras se recusaram a limitar
seus sonhos ao realismo, e, em vez disso, nos sonharam.” Há força nesse
pensamento, uma força que transcende as barreiras do tempo. É ancestralidade, é
projeção de um futuro. Futuro ancestral. O afrofuturismo permite que pessoas
negras contem suas próprias histórias especulativas e se reconheçam em seus
heróis e heroínas. O afrofuturismo pode expandir os horizontes de uma garotinha
negra, fazendo-a desejar ser astronauta só porque a imagem de uma personagem
lhe diz que isso é possível. O afrofuturismo nos faz sonhar, mesmo com todas as
opressões e adversidades do mundo real. E não podemos deixar de sonhar com
futuros reais melhores. Não podemos deixar de imaginar as ficções que desejamos
encontrar no mundo real.
Referências
DELANY, Samuel R. (1984). The necessity of tomorrows. In: Starboard wine: more notes on the language
of science fiction. New York: Dragon Press.
IMARISHA, Walidah. Rewriting the future: using science
fiction to re-envision justice. Bitch
Media, 11 dev. 2015. Disponível em:
.
WOMACK, Ytasha L. (2013). Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture.
Chicago: Lawrence Hill Books.
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