7 de setembro de 2019

Afrofuturismo não é só sobre futuros utópicos, mas essas são as imagens que mais precisamos



Waldson Gomes de Souza

Phases, de Manzel Bowman


 

O fim do mundo, para a população negra, veio séculos atrás quando a primeira nave alienígena chegou ao continente africano. Pessoas negras foram abduzidas por estranhos, levadas em navios enormes para terras desconhecidas e foram subjugadas, escravizadas, expostas a experimentos e submetidas a diversos tipos de violência. Essa leitura afrofuturista do colonialismo encara o “contato com o outro” não como mero tema amplamente trabalhado na ficção científica, mas como realidade devastadora que gerou o contexto distópico no qual povos negros se encontram até hoje.
            O afrofuturismo é um movimento artístico e estético que nasce da união entre ficção especulativa (fantasia, ficção científica e horror) com autoria e protagonismo negros. Obras afrofuturistas, independente do formato, trabalham questões que são pertinentes para a população negra, seja questionando as estruturas opressoras do presente, resgatando passados apagados ou projetando imagens futuras que se deseja ou não seguir. Não se trata necessariamente de obras ambientadas no futuro, como o termo pode dar a entender em um primeiro momento. Afrofuturismo também é sobre horrores detectáveis no presente, fantasias mirabolantes, acontecimentos sobrenaturais diversos, contextos ainda mais opressores, futuros múltiplos e ímpares.
            Neste texto, apresento alguns pensamentos centrais da minha dissertação de mestrado sobre afrofuturismo na literatura brasileira contemporânea. Tive a preocupação de estabelecer um conceito rigoroso o suficiente para não ser muito amplo e ao mesmo tempo não limitar demais as obras. Alguns elementos precisam ser definidos, caso contrário, tudo será afrofuturismo — e se tudo for afrofuturismo, não existiria a necessidade de nomear. Nomear é importante, assim como definir critérios.
            O ponto central da minha perspectiva é pensar o afrofuturismo a partir da ficção especulativa, termo que utilizo para aproximar a fantasia, o horror sobrenatural e a ficção científica. Entendo que esses três gêneros conversam entre si ao fugirem das regras do nosso mundo real, ao construírem narrativas com elementos irrealistas, ao especularem outras realidades. E defendo que para o afrofuturismo é mais importante pensar como cada autor usa a ficção especulativa para abordar questões relacionadas à experiência negra e dar destaque ao protagonismo negro, respeitando sim os respectivos recursos, mas sem a necessidade de separar os três gêneros. Através da ficção, o afrofuturismo cria imagens e nos permite visualizar alternativas e outros cenários.
É nesse sentido que o escritor Samuel R. Delany aborda a contribuição de Susan K. Langer em relação ao poder da imagem. Langer diz que a experiência inicial com a imagem de algo que ainda não existe serve como impulso para o progresso humano em vários campos da sociedade. E com isso Delany reforça seu argumento de que a população negra, mais que qualquer outro grupo, precisa de imagens sobre o futuro, imagens do amanhã. Com essas imagens em mente, visualizando muitas alternativas, tanto boas quanto ruins, é que se pode ter algum controle sobre o modo de se chegar a um futuro concreto, um amanhã real. E o afrofuturismo é capaz de fornecer noções de futuro para além de suas obras, pois ao entrar em contato com essas histórias (mesmo que não sejam futuristas), pessoas negras encontram outros modelos tão necessários de representação.
Na década de 1960, Nichelle Nichols interpretou a Tenente Uhura na série Jornada nas estrelas (1966-1969), uma época em que mulheres negras só atuavam como empregadas domésticas, salvo raras exceções. Ytasha Womack conta que Nichols quis abandonar o papel, mas acabou mudando de ideia quando foi convencida por Martin Luther King Jr. a continuar interpretando Uhura. A personagem estava mudando mentes e quebrando paradigmas em um contexto mais que necessário. A importância de Uhura fica mais que evidente na biografia de duas mulheres negras famosas. Mae Jemison, a primeira negra a ir ao espaço em 1992, desejou se tornar astronauta porque assistia Star Trek quando criança. E Whoopi Goldberg também foi influenciada por Uhura na sua decisão de se tornar atriz. Para essas crianças, a personagem Uhura forneceu rupturas, foi uma imagem poderosa que lhes permitiu sonhar com futuros melhores, que forneceu outro caminho além das representações recorrentes.
Com tudo que está acontecendo, pode ser difícil manter a esperança e imaginar alternativas positivas. É difícil não se sentir paralisado e impotente diante de notícias ruins surgindo constantemente. Mas ainda precisamos imaginar futuros prósperos. É por isso que eu gosto tanto da noção desenvolvida por Walidah Imarisha de que pessoas negras hoje vivem uma ficção científica. Ela diz: “Nós somos os sonhos de pessoas negras escravizadas que ouviram que era muito ‘irreal’ imaginar que um dia elas não seriam chamadas de propriedade. Essas pessoas negras se recusaram a limitar seus sonhos ao realismo, e, em vez disso, nos sonharam.” Há força nesse pensamento, uma força que transcende as barreiras do tempo. É ancestralidade, é projeção de um futuro. Futuro ancestral. O afrofuturismo permite que pessoas negras contem suas próprias histórias especulativas e se reconheçam em seus heróis e heroínas. O afrofuturismo pode expandir os horizontes de uma garotinha negra, fazendo-a desejar ser astronauta só porque a imagem de uma personagem lhe diz que isso é possível. O afrofuturismo nos faz sonhar, mesmo com todas as opressões e adversidades do mundo real. E não podemos deixar de sonhar com futuros reais melhores. Não podemos deixar de imaginar as ficções que desejamos encontrar no mundo real.

Referências

DELANY, Samuel R. (1984). The necessity of tomorrows. In: Starboard wine: more notes on the language of science fiction. New York: Dragon Press.
IMARISHA, Walidah. Rewriting the future: using science fiction to re-envision justice. Bitch Media, 11 dev. 2015. Disponível em: .
WOMACK, Ytasha L. (2013). Afrofuturism: the world of black sci-fi and fantasy culture. Chicago: Lawrence Hill Books.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.