Júlia Lacerda de Souza
Imagem: Nancy Rourke |
Como Coda – Children of Deaf Adults –, filha ouvinte de pais surdos, nasci e cresci
na fronteira entre dois mundos que se encontram. Aprendi e continuo aprendendo, a
cada dia, com as diferentes visões de mundo que tenho o prazer de conhecer, da mesma
forma como considero que a todos é fundamental explorar outros “universos”, a fim de
que as relações humanas possam ser estendidas para um patamar de maior empatia e
cuidado com o outro, exercitando uma relação mais profunda de alteridade.
Este mês de setembro, especialmente, muito me faz refletir sobre a luta dos
surdos e as suas conquistas. É claro que, assim como outros movimentos que lutam em
prol de algo, a luta da comunidade surda é diária, mas este mês nos afirma algumas
marcações que fundamentalmente determinaram a comunidade surda e nos é
importante considerar.
Do dia 06 ao dia 11 de setembro tomamos a triste recordação do Congresso de
Milão, em 1880, no qual o método oralista foi adotado como o mais correto para os
indivíduos surdos e foi promulgado que as línguas gestuais devessem ser proibidas – por
uma votação quase unânime, composta, em quase sua totalidade, por indivíduos
ouvintes –. Seguindo os marcos de setembro, comemoramos, no dia 23, o Dia
Internacional das Línguas de Sinais, oficializada pelo ONU em dezembro de 2017,
tomando como base a fundação da WFD – World Federation of the Deaf –, Federação
Mundial dos Surdos, no dia 23 de setembro de 1951; no dia 24, a oficialização da Libras
– Língua Brasileira de Sinais – através da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002; e, no dia 26,
o Dia Nacional do Surdo, oficializado pelo governo federal em outubro de 2008,
tomando como base a data considerada como de fundação do INES – Instituto Nacional
de Educação de Surdos –, no dia 26 de setembro de 1857.
Dessa forma, trago essas lembranças como alguém que anseia por uma realidade
em que possamos nos (re)conhecer e (re)conhecer o outro em seu contexto. E, em um
cenário como esse, podemos pensar também a literatura, uma vez que uma das visões
que comumente é a ela atribuída é a de sua grande capacidade de abrir uma passagem
para um outro “plano” e até mesmo para seu conhecido desconhecido.
“Mas, literatura surda?” Desde que decidi dedicar-me a pesquisar a literatura
surda, não há tanto tempo, quando apresento meu objeto de estudo, comumente
percebo essa indagação intercalada por sinceros “não, nunca ouvi falar”, mas que logo
se alinha com um “caramba! O que é?”. É algo para se pensar. Até certo tempo, nem eu
mesma sabia realmente o que era essa literatura e, assim como eu, muitos ainda não a
conhecem, incluindo até parte dos próprios indivíduos surdos. Assim, faz-se necessário
divulgá-la e ampliar o conhecimento e os estudos que permeiam essa manifestação
artística. Deve-se falar dessa literatura de representação de uma cultura e identidade
própria que é tão bela e se constitui de tantas particularidades e singularidades.
Com base no conceito de Karnopp (2006), compreende-se essa literatura como
as produções que representam e fazem parte da comunidade surda, em relação às
línguas de sinais, identidade e cultura, que captam a surdez não como uma falta ou
como um problema a ser resolvido, mas sim como uma diferença que implica em um
estilo de vida, de percepção e de assimilação próprio acerca da realidade que advém da
experiência visual. Ela cria uma aproximação do sujeito com a cultura e, para os próprios
surdos, auxilia ainda no processo de construção de sua identidade. Isso nos faz refletir
sobre a força da literatura e, aqui, uma literatura que expressa a autorrepresentação,
que mostra a sua voz e, mesmo no silêncio, tanto fala, tanto ensina e tanto amplia.
Nesse silêncio, me imagino. Penso em como vivemos em um mundo moderno
que tanto quer dizer e fala, fala e fala. Será que ele realmente diz? Será que ele
realmente escuta? Aprendi desde cedo, com os meus pais, a apreciar o silêncio. Por
causa da língua ser a de sinais? Também. Eles me ensinaram a observar mais, a entender
a linguagem do corpo e perceber que o silêncio fala, ainda que não queira. Hoje,
percebo o quanto a experiência sensível e sensorial é importante. Acredito que a
literatura aluda a essa experiência sensível, ainda que não passe por uma percepção
essencialmente visual. Ela nos provoca. Provoca dúvidas, provoca risos, provoca paixão,
provoca tristeza, provoca inquietação. Ela provoca. E, é nesse deixar a obra falar que
possivelmente possamos entender experiências de leitura. Como lemos? Estamos
respeitando a voz do outro?
A literatura surda é algo recente, ainda se consolidando. Nela, observamos uma
voz: a voz do surdo, a voz de um grupo, a voz de uma comunidade. E, embora, em sua
maioria, se constitua por obras do gênero infantil e infanto-juvenil, já podemos notar
características que a particularizam. O que é enxergar o mundo pelos olhos de que
quem os utiliza como ouvidos?
Aqui, a representatividade surda é essencial. Autores que reproduzam a
experiência mais sincera de quem puramente vivencia esse olhar. Que possamos ter
cada vez mais produtores de arte surdos, que sejam os protagonistas da própria
narrativa e que possam contribuir para o alavancamento dessa também forma de
expressão, a fim de que alguns se identifiquem e outros compreendam. Que conheçam.
É nesse panorama que penso que possamos nos atentar a possibilitar que a voz
do outro se revele. Que possamos enxergar. Que possamos dar visibilidade e espaço
para a literatura da qual este texto trata. E que possamos ir além, possamos levantar
novas questões, pensarmos juntos e questionar, inclusive. Que a (re)afirmação de uma
vida se torne essa voz que aqui, por meio da literatura e, ainda, surda possa fazer ecoar
a voz do silêncio.
Referências:
MIANES, Felipe; MÜLLER, Janete; FURTADO, Rita. Literatura surda: um olhar para as
narrativas de si. KARNOPP, Lodenir; KLEIN, Madalena; LUNARDI-LAZZARIN (Orgs.).
Cultura Surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações.
Canoas: Ed. Ulbra, p. 55-70, 2011.
KARNOPP, Lodenir Becker. Literatura surda. ETD: Educação Temática Digital, v. 7, n. 2,
p. 98-109, 2006.
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