31 de março de 2021

As certezas autoritárias em festa

 

Berttoni Licarião

Certos tipos de trauma que se abatem sobre os povos são tão profundos, tão cruéis, que, ao contrário do dinheiro, da vingança, e até mesmo da justiça, ou dos direitos, ou da boa vontade dos outros, apenas escritores são capazes de traduzi-los, transformando em significado e afiando nossa imaginação moral.

– Toni Morrison

Imagem: Shadow Chamber, Roger Ballen

Em 2018, quando se completavam 50 anos do AI-5, o Brasil elegeu para presidente da república Jair Bolsonaro, notório representante do pensamento necropolítico segundo o qual “a violência constitui a forma original do direito, e a exceção proporciona a estrutura da soberania”.[1] Durante o primeiro ano na chefia do Poder Executivo, o presidente brasileiro afirmou ter informações sobre as circunstâncias da morte de Fernando Augusto de Santa Cruz, preso por agentes do DOI-Codi no Rio de Janeiro em 1974, em provocação ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido. Ainda em 2019, por meio do decreto nº 9.759, que extinguiu conselhos e comissões que permitiam a participação da sociedade civil no governo federal, Bolsonaro encerrou os Grupos de Trabalho “Perus” e “Araguaia” responsáveis, respectivamente, pela identificação de corpos de desaparecidos políticos da ditadura em valas clandestinas do Cemitério Dom Bosco (São Paulo/SP) e pela busca e identificação de restos mortais de guerrilheiros assassinados na região do Araguaia. Através de outro decreto, nº 9.831, assinado em 10 de junho de 2019, o presidente da república alterou o funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) suspendendo, entre outras mudanças, a remuneração dos peritos da comissão que trabalhavam monitorando denúncias de maus tratos em presídios brasileiros.[2]

Em 29 de fevereiro de 2020, por meio de um vídeo divulgado em suas redes sociais, Bolsonaro se dirigiu novamente às vítimas de perseguição política durante a ditadura: “tortura é cascata para ganhar indenização”. Em meio à pandemia mundial do vírus COVID-19, no dia 4 de maio de 2020, Bolsonaro recebeu como “herói nacional” no Palácio do Planalto Sebastião Curió, oficial do exército denunciado seis vezes pelo Ministério Público Federal por homicídio e ocultação de cadáveres durante a repressão militar à Guerrilha do Araguaia. Curió é um dos 377 agentes das Forças Armadas reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade como autores de crimes contra os direitos humanos. Em 2009, ao ser entrevistado pelo jornal Estado de São Paulo, o militar abriu seus arquivos e confirmou a responsabilidade do Exército na execução de 41 vítimas da ditadura.[3] Em 17 de março deste ano, fomos surpreendidos com a notícia de que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região aprovara um recurso da Advocacia-Geral da União que garantia o direito do governo federal de comemorar o golpe militar de 1964.

Na última terça-feira, 30 de março, o Ministério da Defesa emitiu uma ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964. Pelo terceiro ano consecutivo, uma declaração oficial das forças armadas é publicada — na contramão de toda a produção historiográfica e científica produzida nos últimos anos — embasada no argumento pífio e abertamente mentiroso de uma luta contra “a ameaça à democracia” e pela “responsabilidade de pacificar o país”. Ora, nas palavras do professor Mateus Gamba Torres, do Departamento de História da Universidade de Brasília, “junto a poderosas corporações de empresários, aos Estados Unidos da América, a políticos antidemocráticos, a Igreja Católica e ao STF, as Forças Armadas, entre 31 de março e 1 de abril de 1964, descumpriram sua função institucional de defensores da ordem constitucional e depuseram um presidente legal e legitimamente eleito para se perpetuarem no poder por 21 anos. [...] Foram os militares que acabaram com a democracia! O que se pleiteava eram reformas sociais que foram descartadas pela ditadura após 1964”.[4]

O rosário necropolítico acima é apenas uma amostra dos absurdos que compõem o horizonte simbólico do atual governo. É indigesto repeti-los e quase impossível reunir sob um mesmo teto cada ocorrência nos mais de vinte anos de vida pública da família Bolsonaro. Ainda assim, o percurso pode nos ajudar a perceber como o apagar e o reescrever, a manipulação do discurso, o gesto de desprezo e o desrespeito à memória são algumas das armas de que dispõem os inimigos da verdade. Esses elementos foram muito bem representados no romance O corpo interminável (2019),[5] de Claudia Lage, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020.

Na obra em questão, Lage entrelaça a narrativa de Daniel, filho de uma vítima da repressão no presente democrático, à de uma (ou mais) mulher(es) na sala de tortura, no aparelho clandestino, nas horas de silêncio e espera ocupadas com a certeza da queda dos companheiros e do fracasso do projeto político pelo qual lutava. Daniel cresce “imerso no silêncio do avô” (p. 25), com uma única fotografia da mãe e um quarto mantido da mesma forma à espera de sua ocupante original, um esforço de congelar o tempo que contagia o restante da casa: “o avô sabia o lugar de tudo na casa. [...] O que para outra pessoa é detalhe, como o enfeite sobre a mesa, a posição das caixas nos armários, para o avô não é. Por isso eu precisava prestar muita atenção. Como se cada coisa que eu tirava do lugar deixasse uma marca da sua ausência” (p. 38).

Ao romper com o regime melancólico imposto pelos gestos e obsessões do avô, Daniel busca a história de sua mãe pelas margens do silêncio, mas esbarra em mecanismos de repressão ainda em pleno funcionamento e dos quais se sente herdeiro: “as mesmas forças que aniquilaram minha mãe, que anestesiaram o meu pai, estão aqui, a mesma dinâmica a mover o mundo, os mesmos motivos de revolta, de lutas, estão aqui, cresci aqui, eu nasci disso, eu emergi disso” (p. 76). Atento às intersecções entre diferentes gerações vitimadas pela ditadura, o processo de busca e aprendizagem de Daniel é atravessado pelo fracasso da representação, pelos limites da imaginação para dar conta daquilo que forças institucionais (e também, no romance, patriarcais), desejam reprimidas. Logo, transformar a luta daqueles mortos e desaparecidos em narrativa a partir de um presente falsamente pacificado ganha os contornos caricaturais de uma farsa:

Me sentia como se cometesse um equívoco. Um grande equívoco. Como se forçasse aquelas pessoas, tão reais, tão vivas dentro de suas lutas, desaparecimentos e mortes, a se tornarem meras referências em um texto, ou pior, personagens, meus personagens, como se impusesse a elas, depois de tudo o que viveram, algo tão frágil, capaz de desmantelar ao menor sopro, à mínima insistência, uma farsa, uma representação (p. 24).

A necessidade de narrar para compreender acompanha Daniel desde os tempos de escola, quando escreve uma redação sobre a morte da mãe que deixa perplexas professora e diretora. Mas diferente do que se poderia supor, Daniel escreve “a partir do esquecimento” (p. 22): aguarda até que imagens e palavras ajam sobre o corpo pelo tempo necessário para, só então, colocar qualquer coisa no papel. Esse tempo de depuração representa não a busca idílica, “imagem literária de uma sofrida e bela esperança”, mas sinaliza para o debate tardio da sociedade brasileira e para o reconhecimento de que “até os restos são abandonados, escondidos ou destruídos” (p. 43). O que sobra é a armadilha da verossimilhança.

No primeiro encontro entre os protagonistas, Daniel e Melina buscavam em uma biblioteca a única edição disponível de um livro sobre a ditadura brasileira — exemplar solitário que é, também, sintoma do estado precário em que se encontra essa memória nos espaços públicos. Melina deseja “ver aquilo que seus pais não viram, abrir os olhos para o que eles fecharam” (p. 23), enquanto Daniel dedica-se à leitura e à escrita, esta última “uma necessidade” para “desdobrar a imagem presa em [sua] mente” (p. 121), gesto essencial do trabalho de luto. Através dessas duas personagens, a pós-memória (incorporada por Daniel) e a responsabilidade social (representada por Melinda) veem na fotografia que assombra o romance a possibilidade de devolver a dignidade do foro íntimo a um corpo torturado — “Ela nua tremia de nervos, era inverno e ela tremia, não soube porque pensou em chocolate quente” (p. 121) — ao mesmo tempo em que expõe os mecanismos de repressão que mascaram a verdade. O romance de Lage faz isso por meio da reconstrução, em detalhes, da cena fotografada: 

O último corte que sentiu foi abaixo da axila, próximo aos seios. O mais doloroso foi na barriga, na altura do fígado, foi esse que a matou. Colocaram uma arma em sua mão, atiraram em seu corpo, mas ela não sentiu. Depois que constataram a sua morte levaram o seu corpo para uma sala. Na sala havia uma cama pequena e ali o puseram. Alguém veio e observou os ferimentos. Alguém veio e limpou o sangue espalhado pela pele. Alguém veio e mexeu na posição dos braços, cabeça, pés. Alguém veio e passou pó bege nos ferimentos à faca. Alguém veio e arrumou novamente os braços, cabeça, pés. Alguém veio e fez anotações num caderno. Alguém veio e não fechou os olhos. Alguém veio e tirou uma foto (p. 172).

Segundo Roland Barthes em A câmara clara, “a foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui”.[6] Observá-la e percebê-la são, portanto, atitudes que permitem aprofundá-la como uma ferida e dela extrair o advento de si mesmo como outro, o punctum — i.e., aquilo que suplementamos à fotografia e que, todavia, já se encontrava nela. Para Barthes (p. 73), “toda fotografia é um certificado de presença”, ela nega o esquecimento e se torna símbolo de resistência. Apesar de falsa no nível da percepção (o que está lá deixa de existir como tal depois que a foto é produzida), a fotografia é verdadeira no nível do tempo: sua retórica repete indefinidamente que aquele passado existiu de fato, ainda que não seja mais acessível.

Mas o que dizer da retórica de uma foto encenada? Questões de autenticidade, manipulação e enquadramento sempre fizeram parte do horizonte discursivo da fotografia.[7] Muito mais que índice de uma presença, a fotografia encenada evoca um esforço narrativo com veleidades de verdade irrefutável. A memória da ditadura brasileira é este corpo torturado no romance de Claudia Lage. Uma memória conspurcada por inúmeros gestos de manipulação, limpeza, preparo, controle narrativo e apagamento de indícios — ecos da famosa foto do suicídio forjado de Vladimir Herzog. Ecos reiterados há menos de dois dias pelo Ministério da Defesa. A cada período da citação acima, Lage revela novos punctums, retira da fotografia camadas de silêncio institucional, reconstrói a cena de tortura descrita no parágrafo anterior do romance. Para além do corpo, há sempre alguém que mexe, observa, arruma, olha, faz anotações, fotografa: inúmeras testemunhas (como a do próprio leitor ou leitora) da “impossibilidade de sair daquele lugar” (p. 29).

A literatura brasileira há muito que não silencia sobre a ditadura. Pelo contrário, a ficção incorpora o rastro de incertezas plantado pelas técnicas do esquecimento e age como “memória insatisfeita que nunca se dá por vencida e perturba a vontade de sepultamento oficial da história vista apenas como depósito fixo de significados inativos.”[8] Novas narrativas continuam a surgir e a se multiplicar — a exemplo das publicações recentes de Sob os pés, meu corpo inteiro (2018) de Marcia Tiburi, Pesadelo (2019) de Pedro Tierra, Um corpo ainda quente (2020) de Sheyla Smanioto, Júlia nos campos conflagrados do Senhor (2020) de Bernardo Kucinski, No fundo do oceano, os animais invisíveis (2020) de Anita Deak, Elas marchavam sob o sol (2021) de Cristina Judar, dos romances que compõem a Trilogia infernal de Micheliny Verunschk [Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018)] e da trilogia ainda incompleta O lugar mais sombrio (2017, 2019, 2021) de Milton Hatoum. Seguimos e seguiremos, sociedade civil, auxiliados pela imaginação e como vaga-lumes, a desassossegar as comemorações das certezas autoritárias.



[1] MBEMBE. Achille. Necropolítica. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2019. p. 38.

[2] Em resposta, o Comitê contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU emitiu um relatório em novembro de 2019 acusando o presidente Jair Bolsonaro de violar o tratado de 1984, do qual o Brasil é signatário. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-%C3%A9-denunciado-%C3%A0-onu-ap%C3%B3s-exonerar-equipe-antitortura/a-49165399>. Último acesso em: 29 mar. 2021.

[3] “No dia 21 de junho de 2009, em reportagem de Leonencio Nossa para O Estado de S. Paulo, divulgou-se informações dos arquivos pessoais do major Sebastião Curió Rodrigues de Moura, um dos principais repressores da Guerrilha do Araguaia. Os documentos contidos nesses arquivos informam que 41 guerrilheiros foram executados depois de presos – o que representa mais de 60% do total dos combatentes – e fornece dados sobre os momentos finais de vida de dezesseis deles, sobre os quais não se tinha nenhuma informação” (TELES, J. 2010, p. 292).

[4] Texto publicado nas redes sociais do professor (Instagram, Facebook) em 31 de março de 2021.

[5] LAGE, Claudia. O corpo interminável. Rio de Janeiro: Record, 2019.

[6] BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 70.

[7] Susan Sontag em Diante da dor dos outros chama a atenção para muitos desses exemplos em fotografias de guerra, como o caso do conflito entre sérvios e croatas, durante o qual as mesmas fotos de crianças mortas no bombardeio de um povoado eram distribuídas com diferentes legendas entre sérvios e croatas para fomentar o ódio ao inimigo.  

[8] RICHARD, Nelly. “Políticas de la memoria y técnicas del olvido”. In: RESTREPO, Gabriel et al. (Orgs.). Cultura, política y modernidad. Santafé de Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1998. p. 65.

 


1 de março de 2021

PARA SEMPRE, CAIO F.

 

Nelson Barbosa



Passados 25 anos da morte do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996), de uma forma não tão usual entre a maioria dos escritores brasileiros, que infelizmente acabam caindo num incompreensível esquecimento, a obra e a persona de Caio F. ainda surpreendem por sua vivacidade e possibilitam um lugar de reflexão e encantamento não só no público jovem que o descobre, como também nos seus leitores de tempos em que suas obras iam sendo compostas e publicadas.

Não é aleatória essa relação entre a obra e a persona do seu autor, tampouco essa percepção está ligada a uma necessidade “antiga” de se associar autor e obra pelo vínculo do biografismo, que durante muito tempo pautou esses estudos literários envolvendo o autor e sua obra como determinantes um do outro, como se os dados factuais fossem então os causadores dessa obra produzida.

Decididamente, não é esse o caso de Caio e sua permanência na nossa literatura. Não é o caso, porque a obra de Caio, por mais que a crítica tradicional tenha tentado lê-la por esse prisma, procurando inclusive determiná-la como “literatura gay” porque o autor se declarara gay, rompeu o paradigma da representação literária tradicional para dar lugar à experiência como matéria literária. Não aleatoriamente, também, essa conjuntura da experiência veio abrir caminhos para que a literatura deixasse de ser uma escrita, digamos, de “gabinete” ou de assunto de classes dominantes, para se tornar efetivamente a expressão de liberdades e vivências antes sufocadas e desacreditadas até mesmo como passíveis de ficcionalização ou de pertencerem ao universo da literatura tout court: as escritas femininas/feministas, as escritas de segmentos segregados e de guetos, negros, gays, marginalizados em geral... Enfim, a grande abertura da literatura para existências que antes apenas apareciam, se quando, nos bastidores das obras literárias, jamais assumindo seu protagonismo como literatura.

E no caso específico de Caio F., reconhecemos em suas criações o caráter autoficcional, procedimento que coloca autor e leitor no cerne dessas construções literárias tanto “reais” quanto “ficcionais”, ora embreando ou desembreando dados documentais, ora embreando e desembreando criações ficcionais, alternando-os e amalgamando-os, produzindo um aproximar-se cada vez mais potente do leitor e da obra, e não gratuitamente, também do autor. É, portanto, nesse entrecruzamento de experiências, reais e ficcionais, que a obra de Caio se constrói e se apresenta como uma grande novidade no cenário das nossas letras, “novidade” que vai se perpetuando justamente por essa característica que a torna sempre à mão, como se diz, sobretudo nos tempos atuais de domínio das redes sociais e da internet. Claro que, por vezes, sofrendo o risco do esgotamento ou esvaziamento do excesso que se atribui a tudo que possa minimamente lembrar uma escrita de Caio, exatamente como acontece com sua madrinha literária, sua grande inspiração, Clarice Lispector.

Hoje esse assunto ou esse tema da autoficção nos estudos literários já corre facilmente por inúmeros estudos críticos, mas não era ainda o que se produzia em termos de crítica na época de Caio, o que certamente foi objeto de equívocos de leitura dessa obra que já se construía sobre novas bases de criação literária. É curioso pensar que a obra de Caio não surgiu, assim, intencionalmente dessas discussões em voga na França justamente nos anos 1970, quando Caio já tinha produzido um romance (Limite branco, 1970) e alguns contos nessa “pegada” autoficcional. Ou seja, avesso aos academicismos literários, o que lhe permitia até mesmo eleger Caetano Veloso e a Gilberto Gil como seus guias na escrita literária, Caio não acompanhava essas discussões que, ao fim e ao cabo, acabaram servindo como privilegiado rumo para depois se estudar a sua produção.

E nessa característica ímpar de sua obra reside, acreditamos, um dos primeiros elementos identificadores da empatia com gerações posteriores e, sobretudo, entre os jovens que hoje o encontram e se enredam com sua escrita, e se emocionam ou o escolhem como leitura privilegiada dentro de nossa literatura.

Nesse caso, borrando todo limite e fronteiras entre a escrita ficcional e sua persona, entram também nessa escolha de leituras suas cartas abundantemente publicadas, compondo com autor e obra esse amalgama de literatura e vida real e concreta que parece encantar os novos leitores. Na intersecção entre a ficção dos contos e a realidade das cartas, o gênero híbrido ao qual Caio passou a se dedicar com mais frequência nos últimos anos de vida, a crônica, cumpre um papel primordial realizando nelas, ainda mais sem amarras de gênero ou fronteiras, sua leitura mais completa do mundo que ainda nos chega como uma manhã a cada leitura.

Sempre angustiado com a vida concreta a ter que ganhar, como jornalista freelancer, revisor/preparador de livros e autor de resenhas (as “costuras para entregar”, como gostava de dizer retomando o universo do trabalhador “braçal”), em meio a despejos de apartamentos e dificuldades financeiras imensas, Caio se via por vezes descolado de sua realidade mais funda produzindo literatura em meio a esse caos pessoal, político e social de seu tempo (que curiosamente parece agora novamente ganhar força não por acaso por um projeto político de miséria e morte). Levava essas questões muito íntimas, desgastantes, ao psicanalista que o acompanhava, revelando-se cansado e insatisfeito com o que escrevia, sempre na busca de uma literatura que, esperava, pudesse ser cada vez mais concreta e tangível por sua experiência, que tocasse, pretendia, no que seria exatamente o sentimento das pessoas. Seu psicanalista, certa vez, ao ouvir essas questões para ele tão doloridas, procurou tranquilizá-lo quanto a isso dizendo que, na verdade, num tempo futuro, quando alguém quisesse de fato saber ou sentir o que acontecia em sua época, logo, em sua obra, não seria nos jornais que iria encontrar essa resposta mais claramente colocada, mas especificamente em sua obra literária em construção, em seus textos colhidos na convivência das redações, dos vários “bicos” de trabalho, dos bares noturnos, da rua, na sua incessante busca de amor, de prazer, em meio ao trânsito caótico, nos bares escuros, nas boates e nos amores rápidos que vivia, no centro nervoso das cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro por onde circulava em pleno coração de uma sempre improvável América do Sul. Foi por isso mesmo que seu psicanalista o definiu como “o biógrafo da emoção”, aquele que com sua escrita capturava as emoções das experiências então vividas. Vemos aqui que a “profecia” parece mesmo ter se consumado.

E, de fato, essa característica de sua obra percebida por seu psicanalista parece definidora na sobrevivência de sua escrita para muito além de sua época e vida. São esses mesmos ambientes, esses mesmos espaços, concretos ou psicológicos, escuros ou iluminados, dolorosos ou de uma alegria incontida, então inusitadamente frequentados na sua literatura, que hoje se revelam próprios a seus leitores mais jovens: o ambiente da busca, da escolha, da desesperança, da descoberta, ou mesmo da espera de um encontro determinante, revelador, na espera de uma “pequena epifania” que revelasse no positivo aquele sentimento que se construía no negativo de sua alma, num jogo de troca de sinais entre o positivo e o negativo como dele já falou José Castelo em Inventário das sombras.

Embora marcada por esses mergulhos em sua realidade, Caio jamais cedeu às armadilhas de tornar sua obra um grande panfleto, como, já dissemos, muitas vezes a crítica o viu. Não haveria por que se ocupar de um panfleto quando a criação literária e linguística o tomava por inteiro na escrita e audição de sua própria produção ficcional. Nem mesmo quando sua vida teve a “verossimilhança” atravessada pelo real ao se descobrir contaminado pelo HIV que já matara quase todos os seus amigos, Caio abriu mão de tratar também dessa sua experiência eminentemente nas linhas da literatura, construindo nela o caminho que se lhe abria em direção à morte. Nesse momento, como grande escritor que foi, até mesmo sua morte veio a ser “vivida” em sua obra, longe de se tornar um panfleto que o vitimasse por uma sentença tão extrema.

Há, equivocadamente, até mesmo entre alguns de seus contemporâneos, quem, embalado pela leitura redutora de sua produção, declare que Caio não teria tido o tempo necessário para seu amadurecimento como escritor, a ponto de vir a “superar” sua questão primordial da sexualidade sempre vista como determinante em sua obra. Isso é um tremendo equívoco de leitura, como se a pauta fosse sempre a “evolução” para uma sexualidade padrão determinada pela sexualidade heterossexual que assim o avalia. Esse equívoco nos levaria prontamente a perguntar se esses contemporâneos que sobreviveram a seu tempo acaso superaram em suas próprias obras as questões de sua sexualidade padrão heteronormativa sempre presente em seus contos e romances? Evidentemente que não se trata disso, e nem isso seria o marcador de um amadurecimento da produção literária de um autor que, ao que vemos, sempre teve plena consciência de construção de sua obra a cada novo livro lançado.

Caio se ocupava da literatura em toda a sua extensão, e por ela se fazia existir por sua experiência, confundindo-se com ela, livre de bandeiras identitárias ou outras quaisquer, como a da aids, o que consideramos ter sido o grande trunfo de sua obra.

Quem hoje se encontra com suas narrativas depara no seu cotidiano com realidades tão violentas quanto as situações contidas em seus contos “Creme de alface” (Ovelhas negras), “Garopaba mon amour” (Pedras de Calcutá) e “Terça-feira gorda” (Morangos mofados); em situações tão delicadas quanto as descobertas contidas em “Aqueles dois” (Morangos mofados); em reflexões tão profundas e tocantes como no delicado conto “Corujas” (Inventário do ir-remediável); em dúvida em relação à realidade política de um país perdido como em “Oásis” (O ovo apunhalado); em abandono e desorientação como em “Sem Ana Blues” (Os dragões não conhecem o paraíso)... São muitas e diversas as passagens de Caio que nos trazem sua experiência atrelada às nossas, de leitores deste século XXI, século que infeliz e estranhamente ele não conheceu, mas anteviu tão bem, porque sua literatura fala de nós, fala do humano em nós.