16 de maio de 2020

Este não é um texto sobre a pandemia

Lucas Amaral de Oliveira


Imagem: Claire Harvey

Não teria sido possível seguir enfrentando esta sociedade incivil, mais explícita em função da pandemia, sem o horizonte intelectual e afetivo de Muniz Sodré

Calhou nestes dias de confinamento uma urgência de escrever, entregar às palavras o que tem sido do império das angústias. De início, pensei que talvez me fosse mais apropriado, na condição de sociólogo-docente-pesquisador, discorrer sobre como esta crise epidemiológica vem aniquilando os espaços de convivialidade de uma cidade tão culturalmente agitada como Salvador. Ou, por outro lado, como esta fatal necessidade do isolamento – e, paradoxalmente, para muitos cidadãos, a sua impossibilidade material – acaba por amplificar as desigualdades sociorraciais e a segregação urbana de uma das metrópoles com maior densidade populacional do planeta. Já havia, inclusive, esquematizado uma análise cujo eixo seguia os itinerários da operacionalização da necropolítica no Brasil. Foi então que recebi uma mensagem familiar.
Era uma sexta de pouco sol em Salvador, depois de semanas de chuva e tempo fechado. Condição atípica, que fez do isolamento a aceitação do exílio. A mensagem me chegou como sinal de alento, respiro – afinal, o luto se impõe quando diante de mais de quatorze mil mortes oficiais registradas no país. Após quinze dias de desassossego, soubemos que Muniz Sodré está melhor. Entendedor das culturas brasileiras. Espírito imensurável. Que tem se mostrado até então maior que seu quase-fim terreno. Suportou dias a fio de inconsciência febril, lidando com o ápice da infecção de Covid-19, na UTI de um hospital de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Com muito custo, o baiano parece disposto a engambelar esta doença que muitos ainda insistem em eufemizar. Mas pudera! Muniz não caberia em despedidas. Por galardosas que fossem. Não caberia em epílogos. Por adjetivosos que pudessem parecer. Se fosse o caso, certamente ele se transbordaria desde dentro da gente em forma lagrimosa. Num contexto de morte e nada mais, é preciso celebrar os sopros de vida, as sobrevivências do dia-a-dia. O axé de Muniz.
Ultimamente, quase não tem havido espaço para boas notícias. Pelo menos em terras incivilizadas. Como a nossa, latifúndio do ódio. Terra que agora ainda tem de enfrentar uma doença implacável que só tem trazido sofrimento, desalento, escassez, morte. Obviamente, a uns mais que a outros. Mas me traz um leve sorriso ao rosto saber que este texto não é tributo póstumo. E que estas palavras estejam sendo traçadas, agora, em tom de homenagem a alguém que, desde um lugar um pouco mais seguro, segue entre nós. Me abranda o espírito que este texto não ecoa palavras de despedida. É apenas um relato pessoal. Ou reminiscência intelectual que gostaria de tornar público, hoje. Porque constitui um testemunho de como um ser humano marcou, com tamanha solidez, uma geração inteira de pesquisadores da cultura – na qual eu próprio me incluo –, preocupada com efeitos éticos e políticos da produção do saber.
Se não há tamanho, também não há tempo neste mundo em que caiba Muniz Sodré de Araújo Cabral. O professor Muca, como costuma ser afetuosamente reconhecido entre colegas e familiares, é existência incabível, inencaixável, imorrível. Farol que orienta nossos pés nos entremeios das tormentas da história. Oriente. Horizonte. A exata somatória da vastidão de sua ternura com a fineza de um intelecto perspicaz, multiplicada pela seriedade investida no cultivo das belas artes do ensinar – que orientam a mim e a colegas no magistério público –, elevado à enésima potência da dedicação que tem depositado, nas últimas cinco décadas, em analisar as vicissitudes nacionais, às vezes desnudando nossos ilogismos mais desavergonhados.
Muniz é daqueles seres humanos insubstituíveis. Do tamanho da energia de vida que tem despendido buscando entender a alma, a mentalidade, o imaginário, a epiderme, os intestinos e o sistema nervoso central de um país periférico, culturalmente rico, não há dúvidas, e híbrido até a raiz de suas histórias mais recônditas; mas erguido na base de ferro, fogo, lágrima, sangue, racismo e muito genocídio. Da mesma maneira que as composições de Aldir Blanc e Moraes Moreira revolucionaram a bússola da música popular brasileira, que as atuações de Flavio Migliaccio politizaram a dramaturgia de um país naufragado no precipício do autoritarismo, ou então que os contos de Sérgio Sant’Anna redirecionaram a ficção na literatura brasileira contemporânea, as obras de Muniz Sodré sublevaram as ciências sociais e humanas de modo irremediável, em especial as teorias da comunicação e a sociologia da arte e da cultura: “O terreiro e a cidade” (1988), “A máquina de Narciso” (1990), “Antropológica do espelho” (2001), “A narração do fato” (2009), “Reinventando a educação” (2012), “A ciência do comum” (2014) e “Pensar nagô” (2017) são apenas alguns exemplos de sua prodigalidade.
Não podemos economizar adjetivos, analogias e perífrases quando homenageamos alguém em vida. A vida de Muniz. Mestre da tradução intercultural, artesão dos saberes, zelador da communitas e da civitas. Desconstruidor das práticas sócio-antropológicas que foram moduladas na obsessão euro-americana de conhecer a si à medida que subalternizava mundos. Transgressor das interdisciplinaridades acadêmicas. Crítico infatigável do racismo estrutural que, para ele, é constituído e constituidor tanto de nossas cordialidades interpessoais como dos patrimonialismos institucionais. Muniz Sodré é um decolonial nas humanidades brasileiras. Sua práxis é a política do afeto: “o vazio do sensível torna inócuo o conhecimento da evidência objetiva e inibe um posicionamento prático-teórico que possa contornar as taras monocausais”.
Livre-Docente e Professor Emérito da UFRJ, Doutor Honoris Causa da UFBA, Pós-Doutor na Paris-Sorbonne, ex-presidente da Biblioteca Nacional, escritor latino-americano rigoroso e eloquente. Verdadeiro gingador de brasilianidades. Virtuoso. Hábil em formalizar em palavras e conceitos as vidas de todos nós que, sem dinheiro no banco e nem parentes importantes, viemos do interior. Muniz é um dos teóricos brasileiros mais lidos, difundidos e respeitados no exterior. E seguirá sendo. Intelectual e ativista negro de brio, fala iorubá, inglês, russo, francês, espanhol, italiano, árabe, alemão. Ser multíplice, multiplicador. Alquimista do conhecimento. Guardião da ancestralidade. Autodidata dos impasses da vida. Aprendiz de Mestre Bimba – o mais ilustre entre batuqueiros e capoeiristas. Muniz, como seus estimados baianos Jorge Amado, Dorival Caymmi e Gilberto Gil, também é Obá Xangô do Axé Opô Afonjá, no culto nagô-ketu do candomblé baiano. E, como cientista social público e inventivo que é, faz questão de misturar suas vivências a epistemologias plurais para entender o presente.
Em especial, sou simpático de uma reflexão que ele vem equacionando e que parece ter ganhado força com a experiência do bolsonarismo no Brasil contemporâneo. Muniz insiste que, como nação, somos uma fábrica arcaica de “produção social do ódio”. Isso nos tem feito reféns daquilo que sempre fomos, porque forjados nos cemitérios do colonialismo: uma “sociedade incivil”. Ele argumenta que estamos a experimentar, hoje, um inquietante tropeção no fio transformador da história nacional. A imagem, tão potente quanto trágica, sugere que não se trata mais da antiga oposição entre civilização e barbárie, e sim de uma figuração social nova, em que relações humanas geridas pelas tecnologias de comunicação de massa acirram cada vez mais a criação, a difusão e o consumo egoístico de informações inautênticas, processo que vem desestabilizando consensos de representação do mundo – formato da Terra, história do nazismo, direitos humanos, acúmulo científico, etc. Não há mais ação comunicativa possível em um cenário em que parte da população brasileira se oferece a negacionismos, anti-intelectualismos, fundamentalismos e conspiracionismos de variados graus. O atoledo da ignorância nos asfixia.
Para ele, a farsa desta contemporaneidade é habitada por uma horda que exibe um desejo pornográfico pelo caos. São essas as pessoas que vêm alimentando o espectro do fascismo, real e virtualmente. Ou, como prevê o baiano de São Gonçalo dos Campos, é a entrega a essa pulsão que alicerça o protofascismo tupiniquim, em que a perseguição do Outro, inimigo em potencial, irrompe como fratura política, sociopatia e gozo pela catástrofe. Por si, a desigualdade já dificulta que pessoas privilegiadas vejam seus Outros como entes merecedores de respeito e consideração. Só que a desigualdade brasileira, que sempre foi um perverso projeto de nação, além de impor obstáculos à civilidade, transforma pessoas em “não pessoas”, esvaziando-as de valores intrínsecos, vertendo corpos e existências em vidas precárias, descartáveis. Daí a sanha pela ofensa, o fascínio pela violência, a apologia armamentista. Daí os absurdos regressivos e as defesas crônicas de um estado teocrático-miliciano que se anuncia como “salvador da pátria”, administrado por “cidadãos de bem”. Daí a transformação da morte em único horizonte de vida.
Como reflete Muniz, não se trata de ideologia capitaneada por um partido político com o beneplácito do Estado, como o nazifascismo histórico, mas sim do produto do ressentimento social das elites em relação a uma década de governos de centro-esquerda, estimulado por uma ordem de fatores que encontra na violência sua única justificação: a ignorância da história do país, a energia do descontentamento ante o acúmulo de diversas crises, alterações nos hábitos, corrupções políticas, versatilização dos estilos e estéticas de vida, sentimento de um suposto declínio ético e moral, etc. Tanto ontem como hoje, a “situação fascista” reflete um medo coletivo e manipulável, “paixão política negativa”. Medo imaginado, abstrato, fantasmagórico. Medo cujo saldo é o ódio. Não viveriam acólitos e colaboracionistas do presidente perdidos num labirinto assombrado por inimigos que eles próprios projetaram e, agora, querem eliminar? Como gramsciano, Sodré nota que “o velho mundo sempre morre, mas o novo tarda para surgir; e desse claro-escuro emergem os monstros”. Espero que as lições de Muca, nosso mandingueiro anticolonial que tem vertido suas últimas décadas de vida num campo de luta contra os monstros do fascismo e num espaço de reconhecimento e desmantelamento das “inscrições da barbárie no cotidiano”, orientem a todos nós neste mar de trevas no qual nos encontramos.
Finalizo meu testemunho intelectual com um trecho do discurso que Muniz proferiu na Academia de Letras da Bahia, em 31 de outubro de 2019, aqui em Salvador, alguns meses antes da pandemia nos atingir. Na cerimônia que marcou a sua posse da cadeira 33, cujo patrono é o poeta abolicionista Castro Alves, sucedendo a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, ele disse: “A ancestralidade – folha no chão – vem ensinar que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude.  O que hoje se vem chamando de crise moral não é a mera violação de valores e regras instituídos (corrupção, violência institucional, mutação nos costumes), mas sim o obscurecimento do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e conviver, portanto, a tudo o que implique um destino comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade”. Saravá, Muniz! Sigamos vivos, porque a luta continua...

* Lucas Amaral de Oliveira é Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFBA.

3 de maio de 2020

Para Carolina



Arte de Farnese de Andrade



Cara Carolina Maria de Jesus, nossa eterna Bitita,

estou te escrevendo do ano de 2020, quando um vírus letal tem mostrado para a humanidade, há muito doente, que ela tem seus pés de barro. Escrevo-te de uma pequena sala da minha casa, enquanto ouço o barulho de crianças gritando; o movimento dos carros; o chiado da panela de pressão na casa da vizinha; o pronunciamento do atual presidente do país nas redes sociais questionando “e daí?” diante da morte de mais de cinco mil pessoas devido à pandemia causada pelo vírus; os gritos de uma mulher que parecem vir do outro lado da rua; o sono leve de meu filho, de três anos, com febre aqui do meu lado devido a uma garganta inflamada. Vindo das batidas inquietas do meu coração, ouço ainda os sussurros invisíveis de milhares de Carolinas desesperadas por não saberem o que darão aos seus filhos para comer no dia de hoje e nos mais sombrios que ainda virão. Aproximando-se um pouquinho da sua, minha escrita se emaranha aos burburinhos que tecem o cotidiano desses dias e à urgência de dizê-los, ainda que seja só para pedir que o vento encontre uma fenda na vozaria por onde possa levar, à sala de visitas, as palavras de angústia, de indignação, de medo, mas também de amor, empatia e esperança, que movem o meu escrever.

Desculpe por introduzir a nossa conversa com alguns assuntos tão tristes. Queria eu começar esta carta te falando apenas dos sorrisos largos dados, por um breve tempo, pelo nosso Brasil. Dizer a você que um homem, que já passou fome, o governou. Sim, querida Bitita, o Brasil foi dirigido por alguém que teve como professora a fome. É bem verdade que, para conseguir governar, precisou fazer alianças com o mercado e isso lhe/nos custou muito caro. Em um outro momento te conto mais sobre isso. Por enquanto, quero que saiba que, como você previu, as políticas adotadas por esse governo contribuíram para que cada vez mais brasileiros pudessem comer três vezes por dia sem deixar de comprar sapatos para as suas filhas. E não parou por aí. Você, que atravessou cidades de Minas a pé, com as pernas feridas, em busca de um tratamento, certamente ficará feliz em saber que esse governo também investiu em saúde pública, ainda que não o suficiente. E tem mais, talvez seja difícil para você acreditar, mas por um tempo, os pobres puderam viajar de avião, misturando-se aos ricos nos pomposos aeroportos. Foi dessa forma que os pretos, espalhados pelo vento como folhas secas, puderam se juntar, ficar mais perto dos seus. Também muitos de nós puderam abandonar os quartos de despejo e comprar uma casa de alvenaria. Houve investimento na educação e na pesquisa. As nossas universidades foram ficando cada vez mais coloridas por pretos, índios, quilombolas, homossexuais, transexuais. Pessoas que, como você, também compreenderam o poder de transformação que tem a escrita e, com e por meio dela, têm feito coisas extraordinárias. Você precisa lê as literaturas inspiradoras que as filhas e netas de empregadas, de pedreiros e de outras tantas profissões desvalorizadas estão escrevendo!

Queria eu ter começado esta carta te dizendo que o Brasil já foi governado por uma mulher.  Essa é mais difícil de acreditar, não é? Mas foi. Estou te contando isso por acreditar que a menina Bitita, que tantas vezes sonhou atravessar o arco-íris para se tornar homem e assim desfrutar dos privilégios concedidos a esse gênero, ficará feliz em saber que, apesar de a desigualdade de gênero ainda existir e de a nossa primeira presidenta ter sido derrubada em meio a discursos extremamente machistas, um número significativo das mulheres do nosso tempo são, cada vez mais, donas de si e seguem sendo inspiração para tantas outras, como você foi e ainda é para muitas de nós.

Ah, e como eu queria ter começado esta carta te contando que as patroas do seu tempo encontrariam muita resistência ao tentar fazer as meninas pretas do meu tempo trabalhar de graça em troca de produtos que pudessem deixar os seus cabelos escorridos. As amarras de um sistema que te fizeram, e ainda fazem a muitas de nós, olhar os cabelos no espelho e desejar que eles tivessem nascido lisos têm sido denunciadas e contestadas por coletivos e por pessoas inspiradoras. Os nossos crespos e cacheados não querem mais ficar presos. Volumosos, eles têm entrado nos cinemas, na televisão, na internet, nos shoppings, nas propagandas, no concurso de Miss Brasil, em todos os lugares.

Infelizmente, não pude começar nossa conversa por aí. Escolhi que ela se iniciasse em um espaço-tempo despetalado. Porque assim como a escritora favelada foi rosa despetalada quando espinhos alcançaram o seu coração também foram aqueles(as) que, no meu tempo, ousaram não ficar em silêncio ou tentaram mudar a ordem estabelecida das coisas. Igual a um corpo envelhecendo, também nossos sonhos, florescidos nos tempos de alegrias contados acima, foram desiludindo, regredindo, envelhecendo, enrugando, murchando, morrendo. Os espinhos da minha época talvez não tenham os mesmos nomes que os da sua, mas não duvido que possuam os mesmos traços genéticos, as mesmas raízes, os mesmos sobrenomes. Continuam a humilhar a menina faminta que pega uma manga no quintal do vizinho para saciar a fome e a apertar a mão e dar uns tapinhas nas costas dos que roubam o país. A menina “ladra” ouviria, com muito medo, que bandido bom é bandido morto enquanto a amarrariam em um poste ou tatuariam “ladra e vacilona” em sua testa. A mãe trabalhadora que, sozinha, cria e mantém o sustento dos filhos, ouviria do vice-presidente que ela é fábrica de elementos desajustados que afetam o país.

É que os filhos dos Moreiras, Pereiras e Oliveiras do seu e do meu tempo, Carolina, continuam a violentar nossos corpos, nossas forças de trabalho, nossas identidades. Continuam a tratar bem os industriais e a tratar como animais os operários. Continuam a cobrar de nós que sejamos submissos, que abaixemos as vozes, que não façamos o que eles chamam de “mi-mi-mi” ao menosprezarem as nossas vozes. É que eles, Carolina, não suportaram nos ver nos infiltrando, para usar aqui uma palavra sua, em universidades; viajando para o exterior; indo aos mesmos shoppings, teatros, restaurantes e cinemas que eles; produzindo e vendendo cinema, música, literatura e arte de qualidade; fazendo pesquisa, tornando-se mestres(as) e doutores(as); saindo do quintal e ocupando a sala de visitas. Os de agora, como os da sua época, também não pensam nos nossos filhos. Quando bradam, vestidos de verde-amarelo, abraçados na bandeira do país ou dançando ao redor de um pato, em um domingo sangrento qualquer, que o que estão fazendo é pela família, estão falando apenas de suas próprias famílias, não das nossas. Eles estão, de certa forma, zombando de nosso sofrimento enquanto perguntam, covardemente: “E daí” se os seus filhos, avós, netos, pais, mãe, irmãos, irmãs estão morrendo? E daí, Bitita? O que eles têm a ver com isso, não é? Embora nos sepultem todos os dias, eles não são coveiros. Para eles basta que sigamos trabalhando, mantendo a engrenagem da economia funcionado. Quando um é engolido por ela, basta colocar outro no lugar e tudo segue igual, como se nada tivesse acontecido.

Embora tenha escolhido este tempo-espaço despetalado para iniciar a nossa conversa, esta carta não é para dizer que tudo está perdido, Bitita. Recolha a desilusão e a tristeza que as minhas palavras podem ter trazido. Quando eu digo que aqueles(as) muitos que fugiam ao vê-la ainda estão por aqui não é para que você entenda que nada mudou, é para que você compreenda que eles estão tentando nos silenciar porque a mudança aconteceu. É para que você saiba que, embora não plena nem por muito tempo, os pretos deste país já conheceram a felicidade e não vão abdicar dela tão facilmente. É para te dizer que muitas mulheres pretas do meu tempo, as que, como aconteceu contigo, são tolhidas pelo preconceito e o racismo, estão escrevendo, estão ocupando espaços socialmente privilegiados, estão levando outras consigo, não vão voltar atrás. É para que entenda que os pretos do meu tempo viram o sol, sabem de sua força, e que, embora estejam murchando nestes dias de escuridão, não vão se deixar ser sobreterrados. É para falar a você que, usando aqui as palavras de Conceição Evaristo, uma mulher preta que se inspira na sua escrita, “eles escolheram nos matar, mas nós escolhemos não morrer”.

Há um poema seu no qual você diz “quantas coisas eu quis fazer, fui tolhida pelo preconceito. Se eu extinguir, quero renascer num país em que predomina o preto. Adeus! Adeus, eu vou partir! Morrer! E deixo esses versos ao meu país. Se é que temos o direito de renascer, quero um lugar onde o preto é feliz”. É partindo dele que te pergunto, Bitita: e daí que eles dizem que não podemos renascer? E daí que eles não querem que os pretos sejam felizes? E daí que eles nos vejam como estatísticas e não seres humanos? E daí que eles pensam que nos mataram? E daí que eles foram assim antes, durante e depois do tempo de sua escrita? E daí? Apesar de tudo isso, a sua escrita alcançou o meu tempo, significou e ressignificou-se, floresceu em outras escritas e vidas. Nós somos sementes, Carolina. Os versos e as palavras que você deixou continuam germinando em outras vozes e escritas pretas. Nós florescemos umas nas outras, alimentadas por uma raiz que atravessou oceanos. As suas palavras, sua escrita, o poder dos teus versos, ecoados por vozes de outras mulheres no meu tempo, seguem a juntar as folhas espalhadas pelo vento, pela escravidão. Então, sigamos, Bitita! Enquanto eles menosprezam as nossas vidas ao gritarem “e daí?”, nós, resistentes como sempre, florescemos e seguimos rompendo os burburinhos lá fora com a nossa escrita, com a nossa voz.


Com carinho,


Rosângela Lopes da Silva.


1 de maio de 2020

A grande insônia de Macondo

Renata Queiroz Dutra


Arte de Dragan Bibin

Estar em quarentena não apenas nos impõe restrições, mas também pequenos alentos: o meu foi reler Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Sempre costumo achar muitas repostas e analogias na narrativa fantástica de Márquez. Dessa vez, me chamou atenção que Macondo também foi acometida por uma epidemia altamente contagiosa, cujo principal sintoma era colocar os seus habitantes permanentemente despertos.

Diferente das insônias comuns, a insônia de Macondo não deixava esgotados seus habitantes; pelo contrário, ficavam cada vez mais dispostos e produtivos. Entretanto, não dormir os fazia, aos poucos, esquecer. Das palavras, dos sentidos. Então começaram a usar a astuta estratégia de etiquetar as coisas, para que não esquecessem seus nomes. Mas em pouco tempo já não bastava etiquetar os objetos com os nomes, porque logo em seguida se esqueciam de sua utilidade, daí as etiquetas precisavam crescer, para indicar o nome e a função de cada coisa. Por sorte, a insônia dava a eles o tempo necessário para produzir tais defesas contra a perda da memória.

No Brasil hoje padecemos de duas doenças igualmente contagiosas: a pandemia do Covid-19, que assola o mundo e aqui caminha aceleradamente em razão do nosso desgoverno, e uma outra epidemia, cujo nome desconheço, mas que também é marcada pelo esquecimento. Assim como em Macondo, esse esquecimento envolve objetos e suas funções. Por exemplo, temos a sorte de ter nas nossas constituições impressas um título estampado na capa, o que não nos assegura que lembremos para que serve uma constituição ou então que soe inadmissível que o presidente se considere a constituição.

Também temos tido dificuldades com palavras com sentidos e possibilidades de uso múltiplos, que demandam não apenas o esforço de lê-las, mas também de interpretá-las (às vezes por mais que 20 páginas): decoro, impeachment, crime de responsabilidade, impessoalidade, estado de direito, dignidade, democracia.
Outros esquecimentos podem alcançar comportamentos, formas de agir diante da dor, da morte, da tragédia, por exemplo. Formas de agir diante de um crime televisionado em rede nacional igualmente. As regras de conduta parecem mais difíceis de serem lembradas: diante do desconcerto da reação indevida por aquele que esqueceu, às vezes sobrevêm risos, mais inadequados ainda: tipo, um sujeito faz piada com a morte e o outro gargalha, constrangedoramente. É muito esquecimento de uma única vez.

O esquecimento alcança até atitudes supostamente inatas ou instintivas, de autopreservação, como evitar a morte, não se aglomerar em meio a uma pandemia quando se pertence ao grupo de risco e o vírus é transmissível pelo ar. O sujeito esquece que é mortal, esquece a advertência sanitária, esquece porque a advertência sanitária advinda de cientistas deve ser creditada, esquece a diferença entre a ciência e a opinião de um imbecil.

O esquecimento atinge significados profundos em uma dimensão coletiva: leva a esquecer a história e suas infinitas possibilidades de repetição. É tanto esquecimento, como sintoma e como norma, que até foi vetada integralmente a lei que reconhecia a profissão de historiador. Justo quando vivemos um momento histórico de grandes proporções, somos convidados, patologicamente, a esquecer.
Em Macondo a epidemia acabou quando o velho cigano Melquíades chegou ao povoado com uma poção que curou a todos da insônia. Na sutileza da narrativa de García Márquez, ao voltar a dormir (e a sonhar) os habitantes de Macondo também voltam a lembrar.

Se tivesse a sorte de ser uma Buendía e, assim, poder ver o velho Melquíades, pediria umas 30 milhões de doses dessa poção. E pediria – sem querer abusar, mas aproveitando a oportunidade – um elixir que trouxesse aos doentes daqui um pouco de vergonha por terem participado da gênese dessa epidemia, por ação ou omissão, ou por continuarem participando. Pediria também algum antídoto contra a ganância dos que persistem vendo queda dos lucros enquanto empilhamos corpos e que, fingindo esquecer das vidas dos outros, assumem o risco de perdê-las para que o comércio reabra. Pediria, sobretudo, uma pílula contra indiferença, que não permitisse nem ao pior dos brasileiros, diante da confirmação devastadora de 5.000 mortes, responder, em rede nacional: “e daí?”


*Renata Dutra é professora de Direito do Trabalho na UnB.