16 de maio de 2020

Este não é um texto sobre a pandemia

Lucas Amaral de Oliveira


Imagem: Claire Harvey

Não teria sido possível seguir enfrentando esta sociedade incivil, mais explícita em função da pandemia, sem o horizonte intelectual e afetivo de Muniz Sodré

Calhou nestes dias de confinamento uma urgência de escrever, entregar às palavras o que tem sido do império das angústias. De início, pensei que talvez me fosse mais apropriado, na condição de sociólogo-docente-pesquisador, discorrer sobre como esta crise epidemiológica vem aniquilando os espaços de convivialidade de uma cidade tão culturalmente agitada como Salvador. Ou, por outro lado, como esta fatal necessidade do isolamento – e, paradoxalmente, para muitos cidadãos, a sua impossibilidade material – acaba por amplificar as desigualdades sociorraciais e a segregação urbana de uma das metrópoles com maior densidade populacional do planeta. Já havia, inclusive, esquematizado uma análise cujo eixo seguia os itinerários da operacionalização da necropolítica no Brasil. Foi então que recebi uma mensagem familiar.
Era uma sexta de pouco sol em Salvador, depois de semanas de chuva e tempo fechado. Condição atípica, que fez do isolamento a aceitação do exílio. A mensagem me chegou como sinal de alento, respiro – afinal, o luto se impõe quando diante de mais de quatorze mil mortes oficiais registradas no país. Após quinze dias de desassossego, soubemos que Muniz Sodré está melhor. Entendedor das culturas brasileiras. Espírito imensurável. Que tem se mostrado até então maior que seu quase-fim terreno. Suportou dias a fio de inconsciência febril, lidando com o ápice da infecção de Covid-19, na UTI de um hospital de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Com muito custo, o baiano parece disposto a engambelar esta doença que muitos ainda insistem em eufemizar. Mas pudera! Muniz não caberia em despedidas. Por galardosas que fossem. Não caberia em epílogos. Por adjetivosos que pudessem parecer. Se fosse o caso, certamente ele se transbordaria desde dentro da gente em forma lagrimosa. Num contexto de morte e nada mais, é preciso celebrar os sopros de vida, as sobrevivências do dia-a-dia. O axé de Muniz.
Ultimamente, quase não tem havido espaço para boas notícias. Pelo menos em terras incivilizadas. Como a nossa, latifúndio do ódio. Terra que agora ainda tem de enfrentar uma doença implacável que só tem trazido sofrimento, desalento, escassez, morte. Obviamente, a uns mais que a outros. Mas me traz um leve sorriso ao rosto saber que este texto não é tributo póstumo. E que estas palavras estejam sendo traçadas, agora, em tom de homenagem a alguém que, desde um lugar um pouco mais seguro, segue entre nós. Me abranda o espírito que este texto não ecoa palavras de despedida. É apenas um relato pessoal. Ou reminiscência intelectual que gostaria de tornar público, hoje. Porque constitui um testemunho de como um ser humano marcou, com tamanha solidez, uma geração inteira de pesquisadores da cultura – na qual eu próprio me incluo –, preocupada com efeitos éticos e políticos da produção do saber.
Se não há tamanho, também não há tempo neste mundo em que caiba Muniz Sodré de Araújo Cabral. O professor Muca, como costuma ser afetuosamente reconhecido entre colegas e familiares, é existência incabível, inencaixável, imorrível. Farol que orienta nossos pés nos entremeios das tormentas da história. Oriente. Horizonte. A exata somatória da vastidão de sua ternura com a fineza de um intelecto perspicaz, multiplicada pela seriedade investida no cultivo das belas artes do ensinar – que orientam a mim e a colegas no magistério público –, elevado à enésima potência da dedicação que tem depositado, nas últimas cinco décadas, em analisar as vicissitudes nacionais, às vezes desnudando nossos ilogismos mais desavergonhados.
Muniz é daqueles seres humanos insubstituíveis. Do tamanho da energia de vida que tem despendido buscando entender a alma, a mentalidade, o imaginário, a epiderme, os intestinos e o sistema nervoso central de um país periférico, culturalmente rico, não há dúvidas, e híbrido até a raiz de suas histórias mais recônditas; mas erguido na base de ferro, fogo, lágrima, sangue, racismo e muito genocídio. Da mesma maneira que as composições de Aldir Blanc e Moraes Moreira revolucionaram a bússola da música popular brasileira, que as atuações de Flavio Migliaccio politizaram a dramaturgia de um país naufragado no precipício do autoritarismo, ou então que os contos de Sérgio Sant’Anna redirecionaram a ficção na literatura brasileira contemporânea, as obras de Muniz Sodré sublevaram as ciências sociais e humanas de modo irremediável, em especial as teorias da comunicação e a sociologia da arte e da cultura: “O terreiro e a cidade” (1988), “A máquina de Narciso” (1990), “Antropológica do espelho” (2001), “A narração do fato” (2009), “Reinventando a educação” (2012), “A ciência do comum” (2014) e “Pensar nagô” (2017) são apenas alguns exemplos de sua prodigalidade.
Não podemos economizar adjetivos, analogias e perífrases quando homenageamos alguém em vida. A vida de Muniz. Mestre da tradução intercultural, artesão dos saberes, zelador da communitas e da civitas. Desconstruidor das práticas sócio-antropológicas que foram moduladas na obsessão euro-americana de conhecer a si à medida que subalternizava mundos. Transgressor das interdisciplinaridades acadêmicas. Crítico infatigável do racismo estrutural que, para ele, é constituído e constituidor tanto de nossas cordialidades interpessoais como dos patrimonialismos institucionais. Muniz Sodré é um decolonial nas humanidades brasileiras. Sua práxis é a política do afeto: “o vazio do sensível torna inócuo o conhecimento da evidência objetiva e inibe um posicionamento prático-teórico que possa contornar as taras monocausais”.
Livre-Docente e Professor Emérito da UFRJ, Doutor Honoris Causa da UFBA, Pós-Doutor na Paris-Sorbonne, ex-presidente da Biblioteca Nacional, escritor latino-americano rigoroso e eloquente. Verdadeiro gingador de brasilianidades. Virtuoso. Hábil em formalizar em palavras e conceitos as vidas de todos nós que, sem dinheiro no banco e nem parentes importantes, viemos do interior. Muniz é um dos teóricos brasileiros mais lidos, difundidos e respeitados no exterior. E seguirá sendo. Intelectual e ativista negro de brio, fala iorubá, inglês, russo, francês, espanhol, italiano, árabe, alemão. Ser multíplice, multiplicador. Alquimista do conhecimento. Guardião da ancestralidade. Autodidata dos impasses da vida. Aprendiz de Mestre Bimba – o mais ilustre entre batuqueiros e capoeiristas. Muniz, como seus estimados baianos Jorge Amado, Dorival Caymmi e Gilberto Gil, também é Obá Xangô do Axé Opô Afonjá, no culto nagô-ketu do candomblé baiano. E, como cientista social público e inventivo que é, faz questão de misturar suas vivências a epistemologias plurais para entender o presente.
Em especial, sou simpático de uma reflexão que ele vem equacionando e que parece ter ganhado força com a experiência do bolsonarismo no Brasil contemporâneo. Muniz insiste que, como nação, somos uma fábrica arcaica de “produção social do ódio”. Isso nos tem feito reféns daquilo que sempre fomos, porque forjados nos cemitérios do colonialismo: uma “sociedade incivil”. Ele argumenta que estamos a experimentar, hoje, um inquietante tropeção no fio transformador da história nacional. A imagem, tão potente quanto trágica, sugere que não se trata mais da antiga oposição entre civilização e barbárie, e sim de uma figuração social nova, em que relações humanas geridas pelas tecnologias de comunicação de massa acirram cada vez mais a criação, a difusão e o consumo egoístico de informações inautênticas, processo que vem desestabilizando consensos de representação do mundo – formato da Terra, história do nazismo, direitos humanos, acúmulo científico, etc. Não há mais ação comunicativa possível em um cenário em que parte da população brasileira se oferece a negacionismos, anti-intelectualismos, fundamentalismos e conspiracionismos de variados graus. O atoledo da ignorância nos asfixia.
Para ele, a farsa desta contemporaneidade é habitada por uma horda que exibe um desejo pornográfico pelo caos. São essas as pessoas que vêm alimentando o espectro do fascismo, real e virtualmente. Ou, como prevê o baiano de São Gonçalo dos Campos, é a entrega a essa pulsão que alicerça o protofascismo tupiniquim, em que a perseguição do Outro, inimigo em potencial, irrompe como fratura política, sociopatia e gozo pela catástrofe. Por si, a desigualdade já dificulta que pessoas privilegiadas vejam seus Outros como entes merecedores de respeito e consideração. Só que a desigualdade brasileira, que sempre foi um perverso projeto de nação, além de impor obstáculos à civilidade, transforma pessoas em “não pessoas”, esvaziando-as de valores intrínsecos, vertendo corpos e existências em vidas precárias, descartáveis. Daí a sanha pela ofensa, o fascínio pela violência, a apologia armamentista. Daí os absurdos regressivos e as defesas crônicas de um estado teocrático-miliciano que se anuncia como “salvador da pátria”, administrado por “cidadãos de bem”. Daí a transformação da morte em único horizonte de vida.
Como reflete Muniz, não se trata de ideologia capitaneada por um partido político com o beneplácito do Estado, como o nazifascismo histórico, mas sim do produto do ressentimento social das elites em relação a uma década de governos de centro-esquerda, estimulado por uma ordem de fatores que encontra na violência sua única justificação: a ignorância da história do país, a energia do descontentamento ante o acúmulo de diversas crises, alterações nos hábitos, corrupções políticas, versatilização dos estilos e estéticas de vida, sentimento de um suposto declínio ético e moral, etc. Tanto ontem como hoje, a “situação fascista” reflete um medo coletivo e manipulável, “paixão política negativa”. Medo imaginado, abstrato, fantasmagórico. Medo cujo saldo é o ódio. Não viveriam acólitos e colaboracionistas do presidente perdidos num labirinto assombrado por inimigos que eles próprios projetaram e, agora, querem eliminar? Como gramsciano, Sodré nota que “o velho mundo sempre morre, mas o novo tarda para surgir; e desse claro-escuro emergem os monstros”. Espero que as lições de Muca, nosso mandingueiro anticolonial que tem vertido suas últimas décadas de vida num campo de luta contra os monstros do fascismo e num espaço de reconhecimento e desmantelamento das “inscrições da barbárie no cotidiano”, orientem a todos nós neste mar de trevas no qual nos encontramos.
Finalizo meu testemunho intelectual com um trecho do discurso que Muniz proferiu na Academia de Letras da Bahia, em 31 de outubro de 2019, aqui em Salvador, alguns meses antes da pandemia nos atingir. Na cerimônia que marcou a sua posse da cadeira 33, cujo patrono é o poeta abolicionista Castro Alves, sucedendo a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, ele disse: “A ancestralidade – folha no chão – vem ensinar que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude.  O que hoje se vem chamando de crise moral não é a mera violação de valores e regras instituídos (corrupção, violência institucional, mutação nos costumes), mas sim o obscurecimento do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e conviver, portanto, a tudo o que implique um destino comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade”. Saravá, Muniz! Sigamos vivos, porque a luta continua...

* Lucas Amaral de Oliveira é Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFBA.

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