27 de outubro de 2017

Inscrições e escrituras do corpo-lugar/não-lugar

Amanda Holgado

Foto: Davis Ayer


Ao falarmos em corpo, pode ser que pensemos em diversas coisas: em sua fisiologia, moda, esportes e afins; porém, podemos pensá-lo também através da arte ou como ele aparece e é visto socialmente. E quando se trata de música e literatura contemporâneas também? Sim. Aqui trago duas compositoras, Karina Buhr e Karol Conka, e duas personagens escritas por autoras, Elvira Vigna e Conceição Evaristo, que questionam de forma crítica as relações e regulações corporais cultural, social e históricas. Mas, primeiramente, que relações são essas?
 Ao ser atribuído ao corpo uma pessoalidade, “a própria categoria sexual parece pressupor uma generalização do ‘corpo’ que preexiste à aquisição de seu significado sexuado”, como afirma Judith Butler, ou seja, é inscrito nele uma fonte cultural externa em relação a ele.  O corpo é definido dialogicamente, desde um primeiro contato, um corpo de homem ou um corpo de mulher. A sua materialização é base da diferenciação da relação entre homens e mulheres, divisão que estruturou uma concepção binária de identidade dentro do meio social, gerando, historicamente, divisões de afazeres, esferas da vida, acesso a direitos e subordinação.
Esse conceito definido e demarcado em relação à mulher, partindo das estruturas patriarcais, que a subordinaram em função de seu corpo, materializando-o, não ficou por aí.  Demandas externas foram exigidas, e para esse corpo definiu-se um padrão de beleza, como observa Guacira Lopes Louro: “os grupos sociais que ocupam posições centrais, ‘normais’ (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe etc) têm a possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros”, apresentando assim, como padrão, a sua própria estética, estabelecendo relações de poder. Estas podem ser vistas, sobre os corpos negros, transexuais / transgêneros, ou em pessoas com deficiência, por exemplo.
 Na mídia, em propagandas ou revistas, essas diferenças entre corpos não existem, embora isso venha mudando, por exemplo, em propagandas, principalmente nas veiculadas na Internet, de produtos de beleza que atendem a diversos públicos. Porém, de maneira geral, os corpos são universalizados, mais uma vez materializados e subordinados às demandas do meio externo, o que gera a falta de reconhecimento de si e a busca por um alcance que muitas vezes são inatingíveis, corpos também são dotados de privilégios, pois para alguns corpos isso não é uma escolha.
Por outro lado, movimentos alinhados ao feminismo (em suas diversas facetas), que emergiram depois de muitos estudos e militâncias, vêm surgindo para contrapor a essas que têm vigorado. Nos últimos anos, com a força das redes sociais, a ideia de empoderamento feminino se fortaleceu e a circulação dessa ideia tem colaborado, em alguma medida, para um despertar de consciência dessa regulação dos corpos e reconhecimento da beleza na diversidade, além de repensar esses valores socialmente construídos.
Na música, Karina Buhr, em Selvática, álbum lançado em 2015, expressa em suas composições o resgate do poder da mulher, enquanto guerreiras de histórias de séculos atrás, e denuncia esse complexo enquadramento sobre o “jeito” de estar no mundo em que mulheres foram colocadas, em “Eu sou um monstro”, por exemplo, Buhr diz “Hoje eu não quero falar de beleza / Ouvir você me chamar de princesa / Eu sou um monstro”, subvertendo essa ideia de perfeição destinada à mulher.
Karol Conka também tem feito um trabalho na música que expressa abertamente a beleza, a força e a liberdade das mulheres. A cantora e compositora se coloca no lugar experiencial das suas canções e se coloca como mulher, negra e periférica consciente do seu corpo e da beleza do que está fora das determinações sociais.
Na literatura, trago duas personagens, de épocas anteriores à das cantoras, que de alguma forma não atendem aos padrões estabelecidos socialmente e em conformidade com essa divisão binária sexista em relação aos corpos, as personagens estão em processos de reconhecimento e aceitação desse corpo no mundo.
No romance Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, publicado em 2002, Nita, sua protagonista e narradora, conta que foi uma jovem jornalista da sessão policial, onde somente trabalhavam homens. Quando mais velha, fotógrafa, independente, uma mulher em trânsitos, viveu diversas relações – homo e heterossexuais – apesar de não ser esse o foco do romance, Nita se apresenta como uma mulher consciente de seu corpo e sua história, mas em sutis brechas deixa escapar uma inconformidade com sua figura: “E em uma das janelas, por trás de uma cortina de flores, alguém dizendo: tem uma mulher estranhíssima parada no portão.”; e com seu corpo: “Eu sempre tive inveja das pessoas que se sentem em casa, seja no assento de um carro, seja em seus próprios quadris”.
Este exemplo fomenta a ideia da pressão que os corpos sofrem, muitas vezes, devido à naturalidade designada, que acaba por definir uma estética única, jogando para a margem o que não é concebido como “normal”. Esse  poder lança sobre o indivíduo um fardo que interfere na esfera privada influenciando na pública. Um corpo que não reconhece seu valor, ou não se vê representado, acha-se sem forças para lutar e recorrer a seus direitos.  
A outra personagem que trago é Isaltina, do conto Isaltina Campo Belo, de Conceição Evaristo, publicado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, em 2011. A primeira relação que a personagem coloca quanto ao corpo é que quando criança não se reconhecia como mulher, ela se sentia um menino e se impressionava com a não percepção dos adultos sobre o fato. Na adolescência esse estranhamento aumenta, pois tudo que via ou aprendia sobre o corpo da mulher e do homem não condizia com o que percebia em si mesma:

descobrimos, na rua e nos livros, tudo sobre o corpo da mulher e do homem. Sobre beijos e afagos dos homens para com as mulheres. Lembro-me que fui invadida por certo sentimento, que não sei explicar até hoje, uma sensação de estar fora de lugar. Eu via e sentia meu corpo parecer com o de minha irmã e se diferenciar do porte de meu irmão.

Ao crescer, Isaltina, que morava no interior, foi estudar na cidade, lá conhece um rapaz, com quem começa um namoro, ela era uma mulher negra (estigmatizada socialmente como objeto de desejo), e isso levava o rapaz a afirmar ainda mais que ela “deveria gostar muito e muito de homem, apenas não sabia”, marcando a relação de poder e afetação do homem sobre a mulher e fixando a heterossexualidade compulsória. O namoro não se desenvolve, porém continuam amigos. O rapaz a convida para uma festa na casa dele com mais cinco amigos, acontece, então, um estupro coletivo, eles diziam que estavam ensinando-a a ser mulher. Isaltina engravida, porém só se dá conta no sétimo mês, ela tem a criança. No primeiro ano de escola de sua filha, ao levá-la na aula se apaixona pela professora. É neste momento que, finalmente, reconhece sua identidade de gênero: “E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam”.  
No caso de Isaltina, o não reconhecimento de seu corpo é em torno de sua sexualidade, o que é mais um fator regulado socialmente, gera traumas, dificuldades de reconhecimento e não pertencimento ao meio.
 Esses são poucos exemplos dentre diversos que possam suscitar tal tema, e ainda mais, outros que possam representar outros tipos de debate acerca do corpo, como o corpo com deficiência, que também é colocado num não-lugar de reconhecimento social.

Desta forma, entende-se o corpo como um lugar no mundo, dual e complexo, que antecipa sua chegada, classifica o ser, inscreve acontecimentos sociais e culturais, porém não é determinado, pois o corpo é em si uma força, de escolhas e resistências. Deixar que o corpo seja determinado, regulado, condenado ou negado, assim como suas práticas, necessidades, desejos e prazeres, e categorizá-lo hegemonicamente como único, segundo um padrão, é cristalização e redução do sujeito. Para tanto, destaca-se aqui a relevância da discussão desse tema e permanência do reconhecimento da diversidade corporal nas variadas formas de arte. 

21 de outubro de 2017

Olhando o mundo por outras frestas

Regina Dalcastagnè


Foto de Araquém Alcântara 



O xamã yanomami Davi Kopenawa dizia que “os brancos dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”. É preciso, mais do que nunca, enxergar os que sonham ao nosso lado. E a literatura pode nos ajudar a ver melhor, mas, para isso, talvez seja preciso nos reposicionarmos diante do campo literário, afinal, ainda que nossa produção recente não reivindique mais a função de representar o Brasil, ela continua sendo herdeira de um projeto de nação – “uma comunidade imaginada”, nos termos de Benedict Anderson – que foi construído a partir do apagamento de diferenças, especialmente do apagamento da história e da cultura de mulheres, de negros e de indígenas. Por isso me parece tão importante refletir sobre o lugar de onde se imagina uma nação.
O Brasil é um país gigantesco, não apenas em suas dimensões espaciais, mas sobretudo em sua diversidade cultural. Falamos todos um único português, insistem alguns, desconhecendo e deslegitimando as variedades regionais, as contribuições africanas, as mais de 200 línguas indígenas que ainda sobrevivem em nosso território. Por isso, não dá para falar de “literatura brasileira” sem problematizar ambos os termos. Afinal, até onde chega o Brasil e o que aceitamos entender como literatura? 
Em 30 de dezembro de 1904, Euclides da Cunha escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”. A crítica perspicaz do autor apontava o risco de se reduzir a percepção sobre a realidade do país a essa perspectiva tão estreita. Infelizmente, 120 anos depois, e usando a Rua do Ouvidor agora apenas como uma metáfora da arrogância de certa elite intelectual dos centros mais desenvolvidos do país, precisamos continuar alertando: o Brasil chega muito mais longe do que costumamos imaginar. 
Sem me alongar demais, apresento três textos, todos escritos por mulheres, que me parecem esclarecedores da importância de se olhar o mundo por outras perspectivas. Primeiro, um poema de Conceição Evaristo, experiente escritora negra de Minas Gerais com uma produção de mais de 30 anos – tanto na poesia quanto na ficção, e mesmo na teoria. Depois, um poema de Meimei Bastos, jovem atriz e escritora da periferia de Brasília, ainda sem livro publicado. Por fim, um poema de Adelaide Ivánova, jornalista e fotógrafa de Recife que vive na Alemanha e tem dois livros publicados.
A perspectiva negra, feminina e trabalhadora de Conceição Evaristo revela um universo de exploração e racismo, mas também de luta e resistência. Temas que podem ser abordados por homens brancos de elite preocupados com a mesma situação, mas que, quando aparecem em suas obras, costumam vir como uma crítica distante, e socialmente situada. Lembro de um poema provocador de Chico Alvim (publicado em O elefante), que tem um título e um único verso: “Mas... é limpinha”. A brevidade do poema, que dialoga diretamente com o racismo à brasileira, esconde tudo aquilo que não precisaria ser dito sobre a empregada doméstica, porque é já uma certeza compartilhada entre patrões: “é negra, é pobre, por isso é feia, mas... é limpa e, assim, pode ser admitida dentro de casa”. E o diminutivo se faz presente, sempre com o intuito de familiarização e inferiorização. O poema é crítico, ironiza o discurso escravocrata de nossa elite, mas, ainda assim, nada diz, de fato, sobre a moça.
O mesmo acontece em A paixão segundo GH, de Clarice Lispector, quando a autora coloca sua protagonista dentro do quarto da ex-empregada, diante de um desenho feito à carvão na parede: um homem, uma mulher e um cachorro, estáticos, imensos e atoleimados. Como centro do mundo, que imagina ser, a ex-patroa logo supõe que aquelas imagens sejam uma espécie de recado para si: “Olhei o mural onde eu devia estar sendo retratada... Eu, o Homem. E quanto ao cachorro – seria este o epíteto que ela me dava? Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência”. A partir daí, e do esmagamento de uma barata, G. H. entra em longas divagações sobre sua própria existência e Janair é soterrada. Dela, só nos sobra a descrição de um desenho na parede, descrição feita pela patroa – é bom lembrar –, contaminada pelo rancor e pelas diferenças de classe.
É preciso uma Carolina Maria de Jesus, ou uma Conceição Evaristo, como no poema abaixo (publicado nos Cadernos Negros), para dar voz a essa mulher:
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias,
debaixo das trouxas,
roupagens sujas dos brancos,
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos,
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes,
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Ao retirar as vozes engasgadas nas gargantas dessas mulheres, Conceição Evaristo traz para nossa literatura outros espaços de enunciação: os porões dos navios, os fundos das cozinhas alheias, o caminho empoeirado da favela, o próprio corpo silenciado que ergue a trouxa de roupas sujas. E marca, também, a diferença desses espaços em relação aos dos brancos-donos-de-tudo. Passado, presente e futuro se juntam na esperança de que essa experiência possa, enfim, ressoar.
A jovem Meimei Bastos já não discute o silenciamento que veio antes, ela é dona de sua própria voz – e voz é um termo importante nesse contexto porque Meimei surge nas batalhas de slam nas periferias de Brasília. Sua poesia nasce como voz, como performance. E, assim como em Conceição Evaristo, aborda a cidade pelo lado de fora, pelo seu “avesso”. Todos os nomes próprios são de regiões, bairros, avenidas e espaços públicos de Brasília ou de suas “cidades satélites”:

Tinha um EIXO atravessando meu peito
tão grande que dividia a minha alma em
L2 SUL e NORTE.
Uma W3 entalada na garganta virou nó.

Eles têm o Parque da Cidade,
Nós o Três Meninas,
Eles a Catedral,
Nós Santa Luzia,
Eles Sudoeste,
Nós Sol Nascente,
Eles o Lago Paranoá,
Nós Águas Lindas.

Sou filha da Maria,
que não é Santa e nem puta.
Nasci e me criei num paraíso que chamam de Val
e me formei na Universidade Estrutural.
Fui batizada no Santuário dos Pajés
por um guerreiro Fulni-ô.

Eu não troco o meu Recanto de Riachos Fundos
e Samambaias verdes pelas tuas Tesourinhas.
Essa Brasília não é minha.
Porque eu não sou planalto,
eu sou PERIFERIA!
Porque eu não sou concreto,
eu sou QUEBRADA!

A relação entre o traçado do Plano Piloto de Brasília e seu próprio corpo parece gerar uma identidade, que rapidamente é desconstruída a partir da marcação pronominal: há aqui um “nós” e um “eles”, que se comunicam, mas não se assimilam. A comparação entre a cidade, pretensamente rica e organizada, e as suas periferias pobres (que se somam na graça de seus nomes) ganha uma dimensão nova diante do grande volume de poemas existentes para celebrar Brasília, porque o eu enunciador faz sua escolha – entre planalto e periferia, entre concreto e quebrada – marcando de que lado prefere estar, e com quem.
Já Adelaide Ivánova, poeta de expressão feminista, sai da cidade e de suas periferias para nos levar para a um quarto asséptico, provavelmente frio e com luzes brancas. Mais que isso, ela nos leva direto para uma maca. A perspectiva é a da mulher deitada ali, com as pernas abertas enquanto os médicos conversam sobre greves, bares e copos descartáveis. Não é um lugar confortável: 

o urubu
corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)

deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular

eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

O poema (publicado no livro O martelo) é sobre um estupro, e talvez o mais angustiante dele seja esse sentimento de ordinário que o cerca, de um dia como qualquer outro – para eles. Os termos jurídicos retomam a violência do ato que não é pronunciado, que é mesmo esvaziado, a não ser pela perspectiva impotente do seu objeto, que vê de baixo para cima, isolado, mais uma vez violentado. Não é fácil olhar esse poema porque nos sentimos olhadas por ele – como nenhum homem poderia nos olhar a partir de sua escrita. 
Isso porque escritores não são, como muitas vezes gostam de se apresentar, os intérpretes descarnados de uma estética etérea, alheia ao barro que suja nossos pés. Sofrem constrangimentos idênticos aos de outros agentes sociais; veem o mundo de uma determinada perspectiva, socialmente estruturada, e participam de um campo que estimula alguns gestos e repertórios e veta outros. Por isso, é tão importante democratizar o acesso à voz literária – isto é, aumentar a pluralidade de perspectivas sociais capazes de se fazerem ouvir na literatura. Esse é um problema político, mas também, e essencialmente, literário, uma vez que novas perspectivas podem trazer novos modos de expressão, promovendo, quem sabe, uma espécie de alargamento no universo dos possíveis e permitindo compartilhar os sonhos dos que vivem entre nós.

12 de outubro de 2017

Sobre palavras e silêncios

Rayi Kena Ferraz

Imagem: Steve McCurry

Na edição do mês de agosto da revista Suplemento Pernambuco havia uma matéria com o poeta Cuti (Luiz Silva). Nunca havia ouvido falar dele, tampouco dos Cadernos negros. Quando comecei a ler a matéria, pensei que fosse um poeta recente, militante da causa negra no efervescente, como gostam de dizer, “polêmico” século XXI. Estava enganada, Cuti lançou sua primeira publicação chamada Poemas de Carapinha em 1978. Fiquei levemente espantada, pensando no caráter “vanguardista” (por falta de termo mais coerente) do poeta que, em meados do século passado, já trazia no seu artifício poético a importância de uma representação iminentemente negra.

Ao ler o texto de Conceição Evaristo Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade reconheci o nome até pouco tempo desconhecido e percebi outras referências a artistas negros e negras que ainda hoje, no final de uma graduação em Letras, não conheço. Partindo justamente da crítica à invisibilização do corpo negro não só nas representações literárias, mas na própria aceitação da cultura negra como constituinte da gênese brasileira, Conceição Evaristo faz com que o leitor (e no meu caso, leitora branca) atente para uma pergunta pertinente que não ocorre (justamente) àqueles ou àquelas que não são atingidos pelo “esquecimento” na representação: “Estaria a literatura procurando apagar os sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira? O imaginário da literatura tenderia a ignorar o papel da mulher negra na formação da cultura nacional?” 

Não é fácil assumir uma posição de privilégio, sendo muito mais difícil (incomensuravelmente mais difícil), por sua vez, não possuir privilégio algum. É nesse contexto, de uma leitora que se consegue enxergar nas narrativas mais canônicas e europeias/ocidentais da tradição literária, que começo uma busca de compreensão dos textos literários de Conceição Evaristo. A tomada de “consciência” de que nem sempre devemos ser nós, os brancos(as), os protagonistas da cena, ou os merecedores desse protagonismo, já chega atrasada. Já devíamos discutir largamente, de maneira generalizada, a questão de gênero dentro da academia. Já devíamos discutir largamente, de maneira generalizada, a questão das relações raciais dentro da academia, e, em nosso caso, na literatura, mas isso quase não acontece.

Textos teóricos como os de Conceição Evaristo, encaixados no padrão ocidental de “ciência”, e que nem por isso deixa de trazer consigo todo o seu peso social abertamente engajado, são raros de se encontrar no ensino superior e tal aspecto chama atenção, pois seguimos lendo textos do século passado que tratam de temas de séculos retrasados. Não que isso não seja importante, ou válido. Mas não há como não perceber que no texto de Conceição Evaristo, por exemplo, os teóricos referenciados são aqueles que pensam as humanidades hoje, no presente. Não temos, se compararmos com o ensino canônico, a contemporaneidade estampada em nossas academias, em nossas referências bibliográficas e tampouco aprendemos a estudá-la, a sistematizá-la. Em consequência, não aprendemos a aprimorá-la ou a superá-la no que deveria ser superado.

Essa demanda de uma teoria mais relevante socialmente faz com que tenhamos um contato diferenciado e, no meu caso, contente, com os textos tanto teóricos quanto literários de Evaristo, pois consigo ultrapassar minha visão de mundo cercada por uma vivência iminentemente branca que, não fosse por um contato como esse, talvez nunca tivesse tido a oportunidade (ou mesmo o interesse) de “conhecer”, ainda que no texto, as aflições da mulher negra.

Ao ler os contos do livro Olhos d’água (2017) de Conceição Evaristo imediatamente observamos os títulos do corpus selecionado para análise: “Maria”, “Duzu-Querença” e “Ana Davenga”. Nomes de mulheres, de três mulheres diferentes e importantes que ocupam o espaço não só do protagonismo, mas do próprio título. Não há como não saber a que os contos vieram.

Numa formação cultural, e nesse caso literária, em que o apagamento do negro e da negra se faz presente historicamente, ter publicações de autoras negras com temáticas e protagonistas orgulhosas ou simplesmente negras, já é por si só um ato de resistência. Conceição Evaristo diz: “(...) talvez, o modo como a ficção revele, com mais intensidade, o desejo da sociedade brasileira apagar ou ignorar a forte presença dos povos africanos e seus descendentes na formação nacional, se dê nas formas de representação da mulher negra no interior do discurso literário.” De maneira que, fazer com que esse apagamento não ocorra é um nadar contra a corrente ainda nos dias de hoje, que não é só necessário em termos artísticos, mas fundamental para a sobrevivência de sujeitos, de indivíduos invisíveis.

No prefácio dos textos de Conceição Evaristo, Heloisa Toller Gomes fala frequentemente desse aspecto, caráter, “fenômeno” singular e ao mesmo tempo incrível que é ser negro e ser vivo em nossa sociedade atual, como se fosse quase um desafio pessoal do(a) negro(a) sobreviver apesar de tudo:

Uma positividade em escrever é, certamente, ‘uma maneira de sangrar’; mas também de invocar e evocar vidas costuradas ‘com fios de ferro’ – porém aqui preservadas com a persistente costura dos fios da ficção, em que também se almeja e se combina, incansavelmente, não decerto a imortalidade, mas a tenaz vitória humana, a cada geração, sobre a morte. 

Nos contos das três mulheres, a tenacidade da resistência negra, no entanto, cede. Como comenta Sueli Carneiro em seu texto Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra naAmérica Latina a partir de uma perspectiva de gênero, a mulher negra nunca foi tratada como frágil:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. 

Portanto, esse “cedimento” que ocorre, de maneira diferente e particular em cada uma das personagens de Evaristo, acontece num contexto e realidade em que não se espera e não se prevê que tal desabamento ocorra naquelas personagens, historicamente tidas como resistentes, brutas, por fim, bestiais: tanto na força quanto no sexo. Não se espera que a subjetividade ultrapasse a natureza, ou ainda, o animalesco, sequer se espera que haja subjetividade naquelas mulheres negras. Ao lermos as histórias, lemos três mortes, três mortes de três mulheres negras em três histórias particulares e sintomaticamente reais.

Conceição Evaristo, se propositadamente ou não, resiste mesmo quando a sobrevivência do corpo negro não vinga. Se paradoxalmente espera-se tanto a morte quanto a resiliência daqueles corpos objetos, Evaristo não se deixa levar pelo desejo daqueles que uma vez possuíram (e venderam, e deram cabo) os corpos de seus descendentes. Resiliência para acordar na madrugada e ir trabalhar no outro canto da cidade, e dirigir ônibus, e ser policial, doméstica, prostituta... Morte para dormir na madrugada e nunca mais assaltar o ônibus, ou “entrar em confrontos” com aqueles mesmos policiais. Mortes “inevitáveis”, mortes invisíveis: estatísticas.

 Tantas mortes que a sua companhia chega a ser “leve”: “às vezes a morte é leve como a poeira. E a vida se confunde com um pó branco qualquer”. Tantas mortes que o choque chega a ficar em casa, esquecido, comendo a comida feita pela empregada doméstica que chora tantas e tantas mortes (apenas estatísticas para o choque).

Nas palavras de Evaristo: “Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver”. Ana Davenga pensava sobre sua relação amorosa sem saber, talvez, que sintetizava o modo relegado de vida aos afro-brasileiros em nossa sociedade: risco maior é o de não tentar viver, de resistir, de sobreviver por fim. Resistência que corre nas veias não por biologismo barato, mas como resposta à opressão histórica e secular que se transforma, se institucionaliza de todas as maneiras, mas não acaba. “E o filho dela com Davenga, que caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o futuro ali chegava rápido. O tempo de crescer era breve. O de matar ou morrer chegava breve, também”.

Ana morreu antes de se tornar mãe, balas ceifaram as possibilidades e o futuro, rápido demais, dessa vez não esperou nem o sonho realizar: “Percebe-se que a personagem feminina negra não aparece como musa, heroína romântica ou mãe. Mata-se no discurso literário a prole da mulher negra, não lhe conferindo nenhum papel no qual ela se afirme como centro de uma descendência.” Não só é negado à Ana a sua fertilidade e a maternidade, mas a sua própria vida. A resistência acha um ponto final e vai para o campo das estatísticas, novamente.

Duzu-Querença, por sua vez, morre mendiga e velha, porém feliz: voando no carnaval. Ali, em pouquíssimas folhas, reconhecemos a identidade objeto, a “mulata tipo exportação” (nos anos de atividade de Duzu na “zona”), a negra procriada (nunca mãe) que teorizam tanto Sueli Carneiro quanto Conceição Evaristo em seus respectivos textos. Tantos estereótipos condensados em uma personagem que poderia existir, se é que não existiu e ainda existe por aí. “Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixá-la estudar. E entendeu também qual seria a sua vida”.

Conceição Evaristo, por meio das personagens Maria, mãe de família linchada no ônibus, a negra atrevida; de Duzu-Querença, a prostituta, a mulata tipo exportação e mendiga; e de Ana Davenga, mulher de bandido, primeira-dama do crime, sambista e “macumbeira”, faz com que o leitor e a leitora, no caso aqueles que não estão habituados a essa leitura nem com essa vivência (o meu caso), lembrem-se de que há vida nos morros. Faz com que os leitores desacostumados a essa literatura lembrem-se que há vida e morte nos morros. Mas, principalmente, faz com que se lembrem que há resistência nos morros.

Vida, morte e resistência. Faces de um cenário complexo e que ainda hoje não discutimos amplamente na academia, e sobre os quais preferimos não estudar, não sistematizar, não pesquisar. Sabemos que há algo errado nessa estrutura acadêmica que não pensa nem o nosso presente, nem o nosso futuro que nos grita às fuças. Sabemos, sim. Mas, neste momento, ter a oportunidade de falar sobre um assunto sobre o qual jamais teria a coragem, até por questões de privilégio, e me superar nesse sentido e perceber que a Universidade também deveria estar aí para isso (mexer com nossos sentidos, posições, argumentos), supera o descontentamento de fazer um curso engessado num paradigma canônico, que até poderia não ser o problema... se não fosse tão branco e masculino.