27 de outubro de 2017

Inscrições e escrituras do corpo-lugar/não-lugar

Amanda Holgado

Foto: Davis Ayer


Ao falarmos em corpo, pode ser que pensemos em diversas coisas: em sua fisiologia, moda, esportes e afins; porém, podemos pensá-lo também através da arte ou como ele aparece e é visto socialmente. E quando se trata de música e literatura contemporâneas também? Sim. Aqui trago duas compositoras, Karina Buhr e Karol Conka, e duas personagens escritas por autoras, Elvira Vigna e Conceição Evaristo, que questionam de forma crítica as relações e regulações corporais cultural, social e históricas. Mas, primeiramente, que relações são essas?
 Ao ser atribuído ao corpo uma pessoalidade, “a própria categoria sexual parece pressupor uma generalização do ‘corpo’ que preexiste à aquisição de seu significado sexuado”, como afirma Judith Butler, ou seja, é inscrito nele uma fonte cultural externa em relação a ele.  O corpo é definido dialogicamente, desde um primeiro contato, um corpo de homem ou um corpo de mulher. A sua materialização é base da diferenciação da relação entre homens e mulheres, divisão que estruturou uma concepção binária de identidade dentro do meio social, gerando, historicamente, divisões de afazeres, esferas da vida, acesso a direitos e subordinação.
Esse conceito definido e demarcado em relação à mulher, partindo das estruturas patriarcais, que a subordinaram em função de seu corpo, materializando-o, não ficou por aí.  Demandas externas foram exigidas, e para esse corpo definiu-se um padrão de beleza, como observa Guacira Lopes Louro: “os grupos sociais que ocupam posições centrais, ‘normais’ (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe etc) têm a possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros”, apresentando assim, como padrão, a sua própria estética, estabelecendo relações de poder. Estas podem ser vistas, sobre os corpos negros, transexuais / transgêneros, ou em pessoas com deficiência, por exemplo.
 Na mídia, em propagandas ou revistas, essas diferenças entre corpos não existem, embora isso venha mudando, por exemplo, em propagandas, principalmente nas veiculadas na Internet, de produtos de beleza que atendem a diversos públicos. Porém, de maneira geral, os corpos são universalizados, mais uma vez materializados e subordinados às demandas do meio externo, o que gera a falta de reconhecimento de si e a busca por um alcance que muitas vezes são inatingíveis, corpos também são dotados de privilégios, pois para alguns corpos isso não é uma escolha.
Por outro lado, movimentos alinhados ao feminismo (em suas diversas facetas), que emergiram depois de muitos estudos e militâncias, vêm surgindo para contrapor a essas que têm vigorado. Nos últimos anos, com a força das redes sociais, a ideia de empoderamento feminino se fortaleceu e a circulação dessa ideia tem colaborado, em alguma medida, para um despertar de consciência dessa regulação dos corpos e reconhecimento da beleza na diversidade, além de repensar esses valores socialmente construídos.
Na música, Karina Buhr, em Selvática, álbum lançado em 2015, expressa em suas composições o resgate do poder da mulher, enquanto guerreiras de histórias de séculos atrás, e denuncia esse complexo enquadramento sobre o “jeito” de estar no mundo em que mulheres foram colocadas, em “Eu sou um monstro”, por exemplo, Buhr diz “Hoje eu não quero falar de beleza / Ouvir você me chamar de princesa / Eu sou um monstro”, subvertendo essa ideia de perfeição destinada à mulher.
Karol Conka também tem feito um trabalho na música que expressa abertamente a beleza, a força e a liberdade das mulheres. A cantora e compositora se coloca no lugar experiencial das suas canções e se coloca como mulher, negra e periférica consciente do seu corpo e da beleza do que está fora das determinações sociais.
Na literatura, trago duas personagens, de épocas anteriores à das cantoras, que de alguma forma não atendem aos padrões estabelecidos socialmente e em conformidade com essa divisão binária sexista em relação aos corpos, as personagens estão em processos de reconhecimento e aceitação desse corpo no mundo.
No romance Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, publicado em 2002, Nita, sua protagonista e narradora, conta que foi uma jovem jornalista da sessão policial, onde somente trabalhavam homens. Quando mais velha, fotógrafa, independente, uma mulher em trânsitos, viveu diversas relações – homo e heterossexuais – apesar de não ser esse o foco do romance, Nita se apresenta como uma mulher consciente de seu corpo e sua história, mas em sutis brechas deixa escapar uma inconformidade com sua figura: “E em uma das janelas, por trás de uma cortina de flores, alguém dizendo: tem uma mulher estranhíssima parada no portão.”; e com seu corpo: “Eu sempre tive inveja das pessoas que se sentem em casa, seja no assento de um carro, seja em seus próprios quadris”.
Este exemplo fomenta a ideia da pressão que os corpos sofrem, muitas vezes, devido à naturalidade designada, que acaba por definir uma estética única, jogando para a margem o que não é concebido como “normal”. Esse  poder lança sobre o indivíduo um fardo que interfere na esfera privada influenciando na pública. Um corpo que não reconhece seu valor, ou não se vê representado, acha-se sem forças para lutar e recorrer a seus direitos.  
A outra personagem que trago é Isaltina, do conto Isaltina Campo Belo, de Conceição Evaristo, publicado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, em 2011. A primeira relação que a personagem coloca quanto ao corpo é que quando criança não se reconhecia como mulher, ela se sentia um menino e se impressionava com a não percepção dos adultos sobre o fato. Na adolescência esse estranhamento aumenta, pois tudo que via ou aprendia sobre o corpo da mulher e do homem não condizia com o que percebia em si mesma:

descobrimos, na rua e nos livros, tudo sobre o corpo da mulher e do homem. Sobre beijos e afagos dos homens para com as mulheres. Lembro-me que fui invadida por certo sentimento, que não sei explicar até hoje, uma sensação de estar fora de lugar. Eu via e sentia meu corpo parecer com o de minha irmã e se diferenciar do porte de meu irmão.

Ao crescer, Isaltina, que morava no interior, foi estudar na cidade, lá conhece um rapaz, com quem começa um namoro, ela era uma mulher negra (estigmatizada socialmente como objeto de desejo), e isso levava o rapaz a afirmar ainda mais que ela “deveria gostar muito e muito de homem, apenas não sabia”, marcando a relação de poder e afetação do homem sobre a mulher e fixando a heterossexualidade compulsória. O namoro não se desenvolve, porém continuam amigos. O rapaz a convida para uma festa na casa dele com mais cinco amigos, acontece, então, um estupro coletivo, eles diziam que estavam ensinando-a a ser mulher. Isaltina engravida, porém só se dá conta no sétimo mês, ela tem a criança. No primeiro ano de escola de sua filha, ao levá-la na aula se apaixona pela professora. É neste momento que, finalmente, reconhece sua identidade de gênero: “E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam”.  
No caso de Isaltina, o não reconhecimento de seu corpo é em torno de sua sexualidade, o que é mais um fator regulado socialmente, gera traumas, dificuldades de reconhecimento e não pertencimento ao meio.
 Esses são poucos exemplos dentre diversos que possam suscitar tal tema, e ainda mais, outros que possam representar outros tipos de debate acerca do corpo, como o corpo com deficiência, que também é colocado num não-lugar de reconhecimento social.

Desta forma, entende-se o corpo como um lugar no mundo, dual e complexo, que antecipa sua chegada, classifica o ser, inscreve acontecimentos sociais e culturais, porém não é determinado, pois o corpo é em si uma força, de escolhas e resistências. Deixar que o corpo seja determinado, regulado, condenado ou negado, assim como suas práticas, necessidades, desejos e prazeres, e categorizá-lo hegemonicamente como único, segundo um padrão, é cristalização e redução do sujeito. Para tanto, destaca-se aqui a relevância da discussão desse tema e permanência do reconhecimento da diversidade corporal nas variadas formas de arte. 

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