Rayi Kena Ferraz
Imagem: Steve McCurry |
Na edição do mês de
agosto da revista Suplemento Pernambuco havia uma matéria com o poeta Cuti
(Luiz Silva). Nunca havia ouvido falar dele, tampouco dos Cadernos
negros. Quando comecei a ler a matéria, pensei que fosse um poeta recente,
militante da causa negra no efervescente, como gostam de dizer, “polêmico”
século XXI. Estava enganada, Cuti lançou sua primeira publicação chamada Poemas
de Carapinha em 1978. Fiquei levemente espantada, pensando no caráter
“vanguardista” (por falta de termo mais coerente) do poeta que, em meados do
século passado, já trazia no seu artifício poético a importância de uma
representação iminentemente negra.
Ao ler o texto de
Conceição Evaristo Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade reconheci o nome até pouco tempo desconhecido e percebi outras referências a
artistas negros e negras que ainda hoje, no final de uma graduação em Letras,
não conheço. Partindo justamente da crítica à invisibilização do corpo negro
não só nas representações literárias, mas na própria aceitação da cultura negra
como constituinte da gênese brasileira, Conceição Evaristo faz com que o leitor
(e no meu caso, leitora branca) atente para uma pergunta pertinente que não
ocorre (justamente) àqueles ou àquelas que não são atingidos pelo
“esquecimento” na representação: “Estaria a literatura procurando apagar os
sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira? O imaginário da
literatura tenderia a ignorar o papel da mulher negra na formação da cultura
nacional?”
Não é fácil assumir uma
posição de privilégio, sendo muito mais difícil (incomensuravelmente mais
difícil), por sua vez, não possuir privilégio algum. É nesse contexto, de uma
leitora que se consegue enxergar nas narrativas mais canônicas e
europeias/ocidentais da tradição literária, que começo uma busca de compreensão
dos textos literários de Conceição Evaristo. A tomada de “consciência” de que
nem sempre devemos ser nós, os brancos(as), os protagonistas da cena, ou os
merecedores desse protagonismo, já chega atrasada. Já devíamos discutir
largamente, de maneira generalizada, a questão de gênero dentro da academia. Já
devíamos discutir largamente, de maneira generalizada, a questão das relações
raciais dentro da academia, e, em nosso caso, na literatura, mas isso quase não
acontece.
Textos teóricos como os
de Conceição Evaristo, encaixados no padrão ocidental de “ciência”, e que nem
por isso deixa de trazer consigo todo o seu peso social abertamente engajado,
são raros de se encontrar no ensino superior e tal aspecto chama atenção, pois
seguimos lendo textos do século passado que tratam de temas de séculos
retrasados. Não que isso não seja importante, ou válido. Mas não há como não perceber
que no texto de Conceição Evaristo, por exemplo, os teóricos referenciados são
aqueles que pensam as humanidades hoje, no presente. Não temos, se compararmos
com o ensino canônico, a contemporaneidade estampada em nossas academias, em
nossas referências bibliográficas e tampouco aprendemos a estudá-la, a
sistematizá-la. Em consequência, não aprendemos a aprimorá-la ou a superá-la no
que deveria ser superado.
Essa demanda de uma
teoria mais relevante socialmente faz com que tenhamos um contato diferenciado
e, no meu caso, contente, com os textos tanto teóricos quanto literários de
Evaristo, pois consigo ultrapassar minha visão de mundo cercada por uma
vivência iminentemente branca que, não fosse por um contato como esse, talvez
nunca tivesse tido a oportunidade (ou mesmo o interesse) de “conhecer”, ainda
que no texto, as aflições da mulher negra.
Ao ler os contos do
livro Olhos d’água (2017) de Conceição Evaristo imediatamente
observamos os títulos do corpus selecionado para análise:
“Maria”, “Duzu-Querença” e “Ana Davenga”. Nomes de mulheres, de
três mulheres diferentes e importantes que ocupam o espaço não só do
protagonismo, mas do próprio título. Não há como não saber a que os contos
vieram.
Numa formação cultural, e
nesse caso literária, em que o apagamento do negro e da negra se faz presente
historicamente, ter publicações de autoras negras com temáticas e protagonistas
orgulhosas ou simplesmente negras, já é por si só um ato de resistência.
Conceição Evaristo diz: “(...) talvez, o modo como a ficção revele, com mais
intensidade, o desejo da sociedade brasileira apagar ou ignorar a forte
presença dos povos africanos e seus descendentes na formação nacional, se dê
nas formas de representação da mulher negra no interior do discurso literário.”
De maneira que, fazer com que esse apagamento não ocorra é um nadar contra a
corrente ainda nos dias de hoje, que não é só necessário em termos artísticos,
mas fundamental para a sobrevivência de sujeitos, de indivíduos invisíveis.
No prefácio dos textos de
Conceição Evaristo, Heloisa Toller Gomes fala frequentemente desse aspecto,
caráter, “fenômeno” singular e ao mesmo tempo incrível que é ser negro e
ser vivo em nossa sociedade atual, como se fosse quase um
desafio pessoal do(a) negro(a) sobreviver apesar de tudo:
Uma positividade em
escrever é, certamente, ‘uma maneira de sangrar’; mas também de invocar e
evocar vidas costuradas ‘com fios de ferro’ – porém aqui preservadas com a
persistente costura dos fios da ficção, em que também se almeja e se combina,
incansavelmente, não decerto a imortalidade, mas a tenaz vitória humana, a cada
geração, sobre a morte.
Nos contos das três
mulheres, a tenacidade da resistência negra, no entanto, cede. Como comenta
Sueli Carneiro em seu texto Enegrecer
o feminismo: a situação da mulher negra naAmérica Latina a partir de uma
perspectiva de gênero, a mulher negra nunca foi tratada como frágil:
Quando falamos do mito da
fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos
homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres
negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário,
que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como
frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante
séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras,
prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram
que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um
contingente de mulheres com identidade de objeto.
Portanto, esse
“cedimento” que ocorre, de maneira diferente e particular em cada uma das
personagens de Evaristo, acontece num contexto e realidade em que não se espera
e não se prevê que tal desabamento ocorra naquelas personagens,
historicamente tidas como resistentes, brutas, por
fim, bestiais: tanto na força quanto no sexo. Não se espera que a
subjetividade ultrapasse a natureza, ou ainda, o animalesco, sequer se espera
que haja subjetividade naquelas mulheres negras. Ao lermos as
histórias, lemos três mortes, três mortes de três mulheres negras em três
histórias particulares e sintomaticamente reais.
Conceição Evaristo, se
propositadamente ou não, resiste mesmo quando a sobrevivência do corpo negro
não vinga. Se paradoxalmente espera-se tanto a morte quanto a resiliência
daqueles corpos objetos, Evaristo não se deixa levar pelo
desejo daqueles que uma vez possuíram (e venderam, e deram cabo) os corpos de
seus descendentes. Resiliência para acordar na madrugada e ir trabalhar no
outro canto da cidade, e dirigir ônibus, e ser policial, doméstica,
prostituta... Morte para dormir na madrugada e nunca mais assaltar o ônibus, ou
“entrar em confrontos” com aqueles mesmos policiais. Mortes “inevitáveis”,
mortes invisíveis: estatísticas.
Tantas mortes que a
sua companhia chega a ser “leve”: “às vezes a morte é leve como a poeira. E a
vida se confunde com um pó branco qualquer”. Tantas mortes que o choque chega a
ficar em casa, esquecido, comendo a comida feita pela empregada doméstica que
chora tantas e tantas mortes (apenas estatísticas para o choque).
Nas palavras de Evaristo: “Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver”. Ana Davenga pensava sobre sua relação amorosa sem saber, talvez, que sintetizava o modo relegado de vida aos afro-brasileiros em nossa sociedade: risco maior é o de não tentar viver, de resistir, de sobreviver por fim. Resistência que corre nas veias não por biologismo barato, mas como resposta à opressão histórica e secular que se transforma, se institucionaliza de todas as maneiras, mas não acaba. “E o filho dela com Davenga, que caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o futuro ali chegava rápido. O tempo de crescer era breve. O de matar ou morrer chegava breve, também”.
Ana morreu antes de se
tornar mãe, balas ceifaram as possibilidades e o futuro, rápido demais, dessa
vez não esperou nem o sonho realizar: “Percebe-se que a personagem feminina
negra não aparece como musa, heroína romântica ou mãe. Mata-se no discurso
literário a prole da mulher negra, não lhe conferindo nenhum papel no qual ela
se afirme como centro de uma descendência.” Não só é negado à Ana a sua
fertilidade e a maternidade, mas a sua própria vida. A resistência acha um
ponto final e vai para o campo das estatísticas, novamente.
Duzu-Querença, por sua
vez, morre mendiga e velha, porém feliz: voando no carnaval. Ali, em
pouquíssimas folhas, reconhecemos a identidade objeto, a “mulata tipo
exportação” (nos anos de atividade de Duzu na “zona”), a negra
procriada (nunca mãe) que teorizam tanto Sueli Carneiro quanto Conceição
Evaristo em seus respectivos textos. Tantos estereótipos condensados em uma
personagem que poderia existir, se é que não existiu e ainda existe por aí.
“Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o
porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D.
Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixá-la estudar. E entendeu também qual
seria a sua vida”.
Conceição Evaristo, por
meio das personagens Maria, mãe de família linchada no ônibus, a negra
atrevida; de Duzu-Querença, a prostituta, a mulata tipo exportação e mendiga; e
de Ana Davenga, mulher de bandido, primeira-dama do crime, sambista e
“macumbeira”, faz com que o leitor e a leitora, no caso aqueles que não estão
habituados a essa leitura nem com essa vivência (o meu caso), lembrem-se de que
há vida nos morros. Faz com que os leitores desacostumados a essa literatura
lembrem-se que há vida e morte nos morros. Mas, principalmente, faz com que se
lembrem que há resistência nos morros.
Vida, morte e
resistência. Faces de um cenário complexo e que ainda hoje não discutimos
amplamente na academia, e sobre os quais preferimos não estudar, não
sistematizar, não pesquisar. Sabemos que há algo errado nessa estrutura
acadêmica que não pensa nem o nosso presente, nem o nosso futuro que nos grita
às fuças. Sabemos, sim. Mas, neste momento, ter a oportunidade de falar sobre
um assunto sobre o qual jamais teria a coragem, até por questões de privilégio,
e me superar nesse sentido e perceber que a Universidade também deveria estar
aí para isso (mexer com nossos sentidos, posições, argumentos), supera o
descontentamento de fazer um curso engessado num paradigma canônico, que até
poderia não ser o problema... se não fosse tão branco e masculino.
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