12 de outubro de 2017

Sobre palavras e silêncios

Rayi Kena Ferraz

Imagem: Steve McCurry

Na edição do mês de agosto da revista Suplemento Pernambuco havia uma matéria com o poeta Cuti (Luiz Silva). Nunca havia ouvido falar dele, tampouco dos Cadernos negros. Quando comecei a ler a matéria, pensei que fosse um poeta recente, militante da causa negra no efervescente, como gostam de dizer, “polêmico” século XXI. Estava enganada, Cuti lançou sua primeira publicação chamada Poemas de Carapinha em 1978. Fiquei levemente espantada, pensando no caráter “vanguardista” (por falta de termo mais coerente) do poeta que, em meados do século passado, já trazia no seu artifício poético a importância de uma representação iminentemente negra.

Ao ler o texto de Conceição Evaristo Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade reconheci o nome até pouco tempo desconhecido e percebi outras referências a artistas negros e negras que ainda hoje, no final de uma graduação em Letras, não conheço. Partindo justamente da crítica à invisibilização do corpo negro não só nas representações literárias, mas na própria aceitação da cultura negra como constituinte da gênese brasileira, Conceição Evaristo faz com que o leitor (e no meu caso, leitora branca) atente para uma pergunta pertinente que não ocorre (justamente) àqueles ou àquelas que não são atingidos pelo “esquecimento” na representação: “Estaria a literatura procurando apagar os sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira? O imaginário da literatura tenderia a ignorar o papel da mulher negra na formação da cultura nacional?” 

Não é fácil assumir uma posição de privilégio, sendo muito mais difícil (incomensuravelmente mais difícil), por sua vez, não possuir privilégio algum. É nesse contexto, de uma leitora que se consegue enxergar nas narrativas mais canônicas e europeias/ocidentais da tradição literária, que começo uma busca de compreensão dos textos literários de Conceição Evaristo. A tomada de “consciência” de que nem sempre devemos ser nós, os brancos(as), os protagonistas da cena, ou os merecedores desse protagonismo, já chega atrasada. Já devíamos discutir largamente, de maneira generalizada, a questão de gênero dentro da academia. Já devíamos discutir largamente, de maneira generalizada, a questão das relações raciais dentro da academia, e, em nosso caso, na literatura, mas isso quase não acontece.

Textos teóricos como os de Conceição Evaristo, encaixados no padrão ocidental de “ciência”, e que nem por isso deixa de trazer consigo todo o seu peso social abertamente engajado, são raros de se encontrar no ensino superior e tal aspecto chama atenção, pois seguimos lendo textos do século passado que tratam de temas de séculos retrasados. Não que isso não seja importante, ou válido. Mas não há como não perceber que no texto de Conceição Evaristo, por exemplo, os teóricos referenciados são aqueles que pensam as humanidades hoje, no presente. Não temos, se compararmos com o ensino canônico, a contemporaneidade estampada em nossas academias, em nossas referências bibliográficas e tampouco aprendemos a estudá-la, a sistematizá-la. Em consequência, não aprendemos a aprimorá-la ou a superá-la no que deveria ser superado.

Essa demanda de uma teoria mais relevante socialmente faz com que tenhamos um contato diferenciado e, no meu caso, contente, com os textos tanto teóricos quanto literários de Evaristo, pois consigo ultrapassar minha visão de mundo cercada por uma vivência iminentemente branca que, não fosse por um contato como esse, talvez nunca tivesse tido a oportunidade (ou mesmo o interesse) de “conhecer”, ainda que no texto, as aflições da mulher negra.

Ao ler os contos do livro Olhos d’água (2017) de Conceição Evaristo imediatamente observamos os títulos do corpus selecionado para análise: “Maria”, “Duzu-Querença” e “Ana Davenga”. Nomes de mulheres, de três mulheres diferentes e importantes que ocupam o espaço não só do protagonismo, mas do próprio título. Não há como não saber a que os contos vieram.

Numa formação cultural, e nesse caso literária, em que o apagamento do negro e da negra se faz presente historicamente, ter publicações de autoras negras com temáticas e protagonistas orgulhosas ou simplesmente negras, já é por si só um ato de resistência. Conceição Evaristo diz: “(...) talvez, o modo como a ficção revele, com mais intensidade, o desejo da sociedade brasileira apagar ou ignorar a forte presença dos povos africanos e seus descendentes na formação nacional, se dê nas formas de representação da mulher negra no interior do discurso literário.” De maneira que, fazer com que esse apagamento não ocorra é um nadar contra a corrente ainda nos dias de hoje, que não é só necessário em termos artísticos, mas fundamental para a sobrevivência de sujeitos, de indivíduos invisíveis.

No prefácio dos textos de Conceição Evaristo, Heloisa Toller Gomes fala frequentemente desse aspecto, caráter, “fenômeno” singular e ao mesmo tempo incrível que é ser negro e ser vivo em nossa sociedade atual, como se fosse quase um desafio pessoal do(a) negro(a) sobreviver apesar de tudo:

Uma positividade em escrever é, certamente, ‘uma maneira de sangrar’; mas também de invocar e evocar vidas costuradas ‘com fios de ferro’ – porém aqui preservadas com a persistente costura dos fios da ficção, em que também se almeja e se combina, incansavelmente, não decerto a imortalidade, mas a tenaz vitória humana, a cada geração, sobre a morte. 

Nos contos das três mulheres, a tenacidade da resistência negra, no entanto, cede. Como comenta Sueli Carneiro em seu texto Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra naAmérica Latina a partir de uma perspectiva de gênero, a mulher negra nunca foi tratada como frágil:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. 

Portanto, esse “cedimento” que ocorre, de maneira diferente e particular em cada uma das personagens de Evaristo, acontece num contexto e realidade em que não se espera e não se prevê que tal desabamento ocorra naquelas personagens, historicamente tidas como resistentes, brutas, por fim, bestiais: tanto na força quanto no sexo. Não se espera que a subjetividade ultrapasse a natureza, ou ainda, o animalesco, sequer se espera que haja subjetividade naquelas mulheres negras. Ao lermos as histórias, lemos três mortes, três mortes de três mulheres negras em três histórias particulares e sintomaticamente reais.

Conceição Evaristo, se propositadamente ou não, resiste mesmo quando a sobrevivência do corpo negro não vinga. Se paradoxalmente espera-se tanto a morte quanto a resiliência daqueles corpos objetos, Evaristo não se deixa levar pelo desejo daqueles que uma vez possuíram (e venderam, e deram cabo) os corpos de seus descendentes. Resiliência para acordar na madrugada e ir trabalhar no outro canto da cidade, e dirigir ônibus, e ser policial, doméstica, prostituta... Morte para dormir na madrugada e nunca mais assaltar o ônibus, ou “entrar em confrontos” com aqueles mesmos policiais. Mortes “inevitáveis”, mortes invisíveis: estatísticas.

 Tantas mortes que a sua companhia chega a ser “leve”: “às vezes a morte é leve como a poeira. E a vida se confunde com um pó branco qualquer”. Tantas mortes que o choque chega a ficar em casa, esquecido, comendo a comida feita pela empregada doméstica que chora tantas e tantas mortes (apenas estatísticas para o choque).

Nas palavras de Evaristo: “Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver”. Ana Davenga pensava sobre sua relação amorosa sem saber, talvez, que sintetizava o modo relegado de vida aos afro-brasileiros em nossa sociedade: risco maior é o de não tentar viver, de resistir, de sobreviver por fim. Resistência que corre nas veias não por biologismo barato, mas como resposta à opressão histórica e secular que se transforma, se institucionaliza de todas as maneiras, mas não acaba. “E o filho dela com Davenga, que caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o futuro ali chegava rápido. O tempo de crescer era breve. O de matar ou morrer chegava breve, também”.

Ana morreu antes de se tornar mãe, balas ceifaram as possibilidades e o futuro, rápido demais, dessa vez não esperou nem o sonho realizar: “Percebe-se que a personagem feminina negra não aparece como musa, heroína romântica ou mãe. Mata-se no discurso literário a prole da mulher negra, não lhe conferindo nenhum papel no qual ela se afirme como centro de uma descendência.” Não só é negado à Ana a sua fertilidade e a maternidade, mas a sua própria vida. A resistência acha um ponto final e vai para o campo das estatísticas, novamente.

Duzu-Querença, por sua vez, morre mendiga e velha, porém feliz: voando no carnaval. Ali, em pouquíssimas folhas, reconhecemos a identidade objeto, a “mulata tipo exportação” (nos anos de atividade de Duzu na “zona”), a negra procriada (nunca mãe) que teorizam tanto Sueli Carneiro quanto Conceição Evaristo em seus respectivos textos. Tantos estereótipos condensados em uma personagem que poderia existir, se é que não existiu e ainda existe por aí. “Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixá-la estudar. E entendeu também qual seria a sua vida”.

Conceição Evaristo, por meio das personagens Maria, mãe de família linchada no ônibus, a negra atrevida; de Duzu-Querença, a prostituta, a mulata tipo exportação e mendiga; e de Ana Davenga, mulher de bandido, primeira-dama do crime, sambista e “macumbeira”, faz com que o leitor e a leitora, no caso aqueles que não estão habituados a essa leitura nem com essa vivência (o meu caso), lembrem-se de que há vida nos morros. Faz com que os leitores desacostumados a essa literatura lembrem-se que há vida e morte nos morros. Mas, principalmente, faz com que se lembrem que há resistência nos morros.

Vida, morte e resistência. Faces de um cenário complexo e que ainda hoje não discutimos amplamente na academia, e sobre os quais preferimos não estudar, não sistematizar, não pesquisar. Sabemos que há algo errado nessa estrutura acadêmica que não pensa nem o nosso presente, nem o nosso futuro que nos grita às fuças. Sabemos, sim. Mas, neste momento, ter a oportunidade de falar sobre um assunto sobre o qual jamais teria a coragem, até por questões de privilégio, e me superar nesse sentido e perceber que a Universidade também deveria estar aí para isso (mexer com nossos sentidos, posições, argumentos), supera o descontentamento de fazer um curso engessado num paradigma canônico, que até poderia não ser o problema... se não fosse tão branco e masculino. 


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