Andressa Estrela Lima
Imagem: Petros Karystinos, 1990. |
“Hoje faz-se
sofrer a velha dor de sempre
hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
(...)”
(POLARI, 1979, p. 31).
O trauma possui um papel relevante
na vida do ser humano, porque costuma intervir na vivência de quem é afetado
por atos violentos, sejam eles passivos ou ativos, havendo reações diante da
perversidade pela qual o indivíduo passou. Com relação a essa temática, temos
uma espécie de abalo operado no sujeito atingido, que, consequentemente,
costuma ter dificuldades em assimilar, e superar, o ocorrido. Assim, segundo
Jaime Ginzburg, em Crítica em tempos de
violência: “A definição de trauma, diferentemente, aponta para a
precariedade das condições de funcionamento da consciência. O impacto violento
do trauma se associa ao despreparo do sujeito para elaborar e superar a
vivência e, mais ainda, para o conhecimento claro do que foi vivido. Como
excesso e ultrapassagem, o trauma é por si mesmo marca dos limites do sujeito
em sua própria autoconsciência”.
O
trauma quando expresso na obra literária apresenta uma espécie de pausa na vida
do sujeito representado, pois ele não consegue esquecer os momentos dolorosos
que ficaram cravados em sua memória, como confirma Feliciano Bezerra Filho e
Silvana Maria dos Santos em Literatura e política: “Em geral, aqueles
que são vítimas da tortura carregam consigo chagas traumáticas profundas. A
experiência do trauma é ‘aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto
ocorre’”.
A assimilação desse impacto vai
ocorrer tardiamente dentro do sujeito, uma vez que o trauma paralisa
mentalmente quem o sofre, e é mais comum que o ser afetado relembre com mais
facilidade o que aconteceu ao próximo e não a ele diretamente, devido a essa
incapacidade causada pela dor. A desordem nos pensamentos é fruto da
articulação imprecisa do passado com as memórias do presente, visto que o
indivíduo não sabe dizer se certos eventos aconteceram com ele ou com seu
próximo, devido as cargas excessivas de dores físicas e psicológicas
vivenciadas.
Nesse sentido, o personagem central
da trama de Na teia do sol (2004), de Menalton Braff, representa como é
viver constantemente imerso nas memórias traumáticas. O enredo trata de um
preso político, chamado André, codinome Tito, que se encontra refugiado em um
terreno campestre. Ao longo da narrativa, o personagem central explicita ao
leitor como e porque ele se encontra praticamente isolado. A maior parte da
obra se constitui em formato de monólogo interior, no qual André rememora seu
passado em consonância com o seu presente, deixando claras as suas poucas
possibilidades de futuro.
O contexto histórico da narrativa se
constrói em torno da ditadura militar brasileira, de cujos representantes o
protagonista se esconde por ter sido militante e por ter combatido o sistema
vigente. O narrador personagem, ao se isolar do mundo, perde o contato com sua
família, com sua namorada e com seus companheiros, tendo como companhia apenas
um cachorro e raras visitas, a quem chama de Velho e Guma.
O constante medo de ser capturado e
a tristeza enorme que sente pela vida que abandonou, fazem com que André se
configure em um ser angustiado, fragmentado e melancólico, rememorando sua
vida, principalmente eventos passados relacionados à sua prisão e à de seus
companheiros.
A partir de uma reflexão sobre os
porquês da situação em que o protagonista se encontra, existe a presença
irrefutável de vários tipos de violência em sua vida, como a violência física e
a psicológica, seja com ele mesmo ou com terceiros. Diante desses casos, os
eventos perturbadores são rememorados com frequência.
Logo, a situação de violência que mais
perturba André, além de aparecer por toda a trama, é de uma mulher grávida
sendo espancada à luz do sol por um militar: “Quando ela tentou juntar a bolsa,
que tinha caído com a primeira bordoada, uma cacetada nas costas, com fúria, e
então ela se espichou toda, esmagando em cima da calçada o ventre volumoso.
Tentei gritar, pedir socorro, mas o grito gelou meu estômago e fiquei olhando
aquilo, que me paralisava, sem maior reação do que o suor que me cobriu o corpo
inteiro”.
O que amplia a dor de André na cena é
o sentimento de impotência diante desse fato. Ele se recrimina por não ter
ajudado, por ter sido capturado nessa hora, e sua única ação possível foi ter
de contemplar, de mãos atadas, a indiferença humana, por parte do militar. A
constante exposição à tortura que sofreu e presenciou faz com que o personagem
central viva atormentado por seu passado.
Apesar de seu
sofrimento ser latente, ao ponto em que as lembranças torturantes o assombre,
percebe-se por parte do narrador uma necessidade de contar, citando nomes dos
companheiros de luta que não tiveram a mesma sorte dele, a sorte de sobreviver
ao que passou.
A temática abordada no livro em
questão causa uma reflexão devido à perpetuação desse tema, mostrando que
apesar do tempo essa ferida causada pelo período ditatorial não foi superada,
sendo assunto de obras contemporâneas da literatura, cinema e música, além de
matérias recorrentes do jornalismo. Com isso, mostra-se a necessidade de
constantes discussões e estudos a partir das representações na literatura
brasileira, contribuindo para que o abalo individual e coletivo possa ser
superado.
Portanto, a
literatura, como manifestação artística, possibilita que os leitores encarem
com mais sensibilidade esses temas, dado que a violência está presente no dia a
dia ganhando aspectos da normalidade, e um dos motivos são os meios midiáticos
tratarem-na de forma comum e intrínseca à conjuntura social. A retratação da
violência e suas consequências nas obras literárias possibilita que a sociedade
reflita a respeito de sua gravidade e da importância de sua discussão.
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