30 de setembro de 2017

As memórias que assombram

Andressa Estrela Lima


Imagem: Petros Karystinos, 1990.


“Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
 hoje faz-se morrer a velha morte de sempre (...)”
 (POLARI, 1979, p. 31).


O trauma possui um papel relevante na vida do ser humano, porque costuma intervir na vivência de quem é afetado por atos violentos, sejam eles passivos ou ativos, havendo reações diante da perversidade pela qual o indivíduo passou. Com relação a essa temática, temos uma espécie de abalo operado no sujeito atingido, que, consequentemente, costuma ter dificuldades em assimilar, e superar, o ocorrido. Assim, segundo Jaime Ginzburg, em Crítica em tempos de violência: “A definição de trauma, diferentemente, aponta para a precariedade das condições de funcionamento da consciência. O impacto violento do trauma se associa ao despreparo do sujeito para elaborar e superar a vivência e, mais ainda, para o conhecimento claro do que foi vivido. Como excesso e ultrapassagem, o trauma é por si mesmo marca dos limites do sujeito em sua própria autoconsciência”.
O trauma quando expresso na obra literária apresenta uma espécie de pausa na vida do sujeito representado, pois ele não consegue esquecer os momentos dolorosos que ficaram cravados em sua memória, como confirma Feliciano Bezerra Filho e Silvana Maria dos Santos em Literatura e política: “Em geral, aqueles que são vítimas da tortura carregam consigo chagas traumáticas profundas. A experiência do trauma é ‘aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre’”.
A assimilação desse impacto vai ocorrer tardiamente dentro do sujeito, uma vez que o trauma paralisa mentalmente quem o sofre, e é mais comum que o ser afetado relembre com mais facilidade o que aconteceu ao próximo e não a ele diretamente, devido a essa incapacidade causada pela dor. A desordem nos pensamentos é fruto da articulação imprecisa do passado com as memórias do presente, visto que o indivíduo não sabe dizer se certos eventos aconteceram com ele ou com seu próximo, devido as cargas excessivas de dores físicas e psicológicas vivenciadas.
Nesse sentido, o personagem central da trama de Na teia do sol (2004), de Menalton Braff, representa como é viver constantemente imerso nas memórias traumáticas. O enredo trata de um preso político, chamado André, codinome Tito, que se encontra refugiado em um terreno campestre. Ao longo da narrativa, o personagem central explicita ao leitor como e porque ele se encontra praticamente isolado. A maior parte da obra se constitui em formato de monólogo interior, no qual André rememora seu passado em consonância com o seu presente, deixando claras as suas poucas possibilidades de futuro.
           O contexto histórico da narrativa se constrói em torno da ditadura militar brasileira, de cujos representantes o protagonista se esconde por ter sido militante e por ter combatido o sistema vigente. O narrador personagem, ao se isolar do mundo, perde o contato com sua família, com sua namorada e com seus companheiros, tendo como companhia apenas um cachorro e raras visitas, a quem chama de Velho e Guma.
O constante medo de ser capturado e a tristeza enorme que sente pela vida que abandonou, fazem com que André se configure em um ser angustiado, fragmentado e melancólico, rememorando sua vida, principalmente eventos passados relacionados à sua prisão e à de seus companheiros.
       A partir de uma reflexão sobre os porquês da situação em que o protagonista se encontra, existe a presença irrefutável de vários tipos de violência em sua vida, como a violência física e a psicológica, seja com ele mesmo ou com terceiros. Diante desses casos, os eventos perturbadores são rememorados com frequência.
        Logo, a situação de violência que mais perturba André, além de aparecer por toda a trama, é de uma mulher grávida sendo espancada à luz do sol por um militar: “Quando ela tentou juntar a bolsa, que tinha caído com a primeira bordoada, uma cacetada nas costas, com fúria, e então ela se espichou toda, esmagando em cima da calçada o ventre volumoso. Tentei gritar, pedir socorro, mas o grito gelou meu estômago e fiquei olhando aquilo, que me paralisava, sem maior reação do que o suor que me cobriu o corpo inteiro”.
         O que amplia a dor de André na cena é o sentimento de impotência diante desse fato. Ele se recrimina por não ter ajudado, por ter sido capturado nessa hora, e sua única ação possível foi ter de contemplar, de mãos atadas, a indiferença humana, por parte do militar. A constante exposição à tortura que sofreu e presenciou faz com que o personagem central viva atormentado por seu passado.
Apesar de seu sofrimento ser latente, ao ponto em que as lembranças torturantes o assombre, percebe-se por parte do narrador uma necessidade de contar, citando nomes dos companheiros de luta que não tiveram a mesma sorte dele, a sorte de sobreviver ao que passou.
A temática abordada no livro em questão causa uma reflexão devido à perpetuação desse tema, mostrando que apesar do tempo essa ferida causada pelo período ditatorial não foi superada, sendo assunto de obras contemporâneas da literatura, cinema e música, além de matérias recorrentes do jornalismo. Com isso, mostra-se a necessidade de constantes discussões e estudos a partir das representações na literatura brasileira, contribuindo para que o abalo individual e coletivo possa ser superado.
Portanto, a literatura, como manifestação artística, possibilita que os leitores encarem com mais sensibilidade esses temas, dado que a violência está presente no dia a dia ganhando aspectos da normalidade, e um dos motivos são os meios midiáticos tratarem-na de forma comum e intrínseca à conjuntura social. A retratação da violência e suas consequências nas obras literárias possibilita que a sociedade reflita a respeito de sua gravidade e da importância de sua discussão.




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