Pilar Lago e Lousa
Imagem: Amy Judd |
Luiza
Romão nasceu em agosto de 1992, em Ribeirão Preto. Mudou-se para a capital de
São Paulo para fazer graduação e formou-se bacharel em Artes Cênicas (Direção).
Durante o ano de 2013, a autora conheceu o Sarau do Burro, ficou encantada e
passou a ser assídua. Em 2014 ganhou o Slam da Guilhermina, o Slam do 13 e foi
vice-campeã do Slam BR, Campeonato Nacional de Poesia Falada[2].
Os slams, assim como os saraus, são movimentos de poesia falada
inscritos sob a rubrica da literatura marginal periférica, que rasuram a
tradição literária canônica devolvendo a arte poética para o espaço público,
para as mãos de pessoas comuns, que de posse de um microfone e uma ideia na
cabeça, como bem pontua Roberta Estrela D’Alva[3]
(D’ALVA, 2011), dão o seu recado. Ainda que não exista uma obrigação temática,
o que se verifica é uma estética do grito, um grito que rompe silêncios, que
toma posse da autorrepresentação tradicionalmente negada, que desloca o olhar
crítico para periferias e grupos minoritários, que pauta um viés político que
denuncia e deflagra as mais diversas formas de violência simbólica, de gênero,
física que atravessam nossa sociedade.
Luiza Romão traz a performance como
característica primordial de seus poemas, que são escritos sob o ritmo, verso e
cadência para serem lidos em voz alta. A mulher inscrita em seus versos deflagra
estruturas patriarcais brutais e dilacerantes, evidenciando sua escrita como
uma necessidade de desconstruir os padrões tradicionais de representação feminina.
Coquetel Motolove[4],
seu primeiro livro lançado pelo selo independente Burro em 2014, traz o
verso como projétil que toca nas feridas mais profundas. Na obra, a dedicatória
também é poesia. Antes do início da primeira parte do livro, encontramos um poema
sem título que é a síntese de Coquetel
Motolove, nele Luiza Romão prenuncia o que virá nas próximas páginas,
deflagra a poesia como um “corpo infesta/quando vários/são vírus/anti-sistema”
(ROMÃO, 2014, p. 13). O eu lírico feminino deflagra o corpo poético infestado,
coberto, tomado por um vírus que é capaz de destruir os padrões sociais,
estéticos e literários.
Ainda
neste poema, o eu poético traz temas como a noção da
palavra falada que é arma contra a opressão, caracterizada pelo verso “molotov
feito de saliva”. A oralidade, os versos falados, oriundos dos saraus e slams das periferias, queima, denuncia,
desconstrói, coloca o dedo na ferida e promove resistência e luta:
a
revolução não será televisionada
será
dançada
suor
também é combustível
motolov
feito de saliva
motoloveyou
baby
depois
dos prédios
nos
incendiaremos por completo (ROMÃO, 2014, p. 13)
Já no poema que veiculou pelo youtube
com o título de “Virgem”, mas que ao ser publicado em livro aparece sem título,
Luiza Romão propõe o olhar crítico pungente para a questão do que é ser mulher.
A epígrafe traz os seguintes dizeres: “este texto não é um texto. este texto é
um parto: tem a dor do que parte, do que fica, do que nasce” (ROMÃO, 2014, p.
21). Ao usar a palavra “parto”, Luiza inicia o poema deflagrando o processo de
gerir a escrita, evidenciado que essa dor perpassa todas as alternativas que
possam vir a ser escolhias: ficar, ir embora e nascer. Ser mulher
invariavelmente dói.
Na primeira estrofe, o eu lírico
nos traz a ruptura de um dos mitos mais primordiais das sociedades ocidentais:
a virgindade:
ser
virgem
está
muito além de um hímen
da
palavra ser ou não ter hífen
é
matéria-prima
barro
úmido
húmus:
human woman women (ROMÃO, 2014, p. 21)
Usada através dos tempos para
controlar e dominar os corpos femininos, a virgindade como sinônimo de pureza e
respeito é questionada nesses versos. Ser virgem está além da existência ou não
do hímen por que ser mulher está muito além de ser virgem. Resgatando os
estudos de Simone de Beauvoir (2009, p. 361), podemos verificar que repousa
sobre a mulher uma teoria tradicional baseada na biologia que a reduz a uma
concepção de mera procriadora da humanidade. A célebre frase “não se nasce
mulher, torna-se” vem acompanhada da afirmação de que “nenhum destino biológico
ou psíquico ou econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade”, o que existe é um processo cruel de socialização que subalterniza o
feminino em detrimento do masculino.
Sendo assim, a visão rasa, galgada
na teoria biológica, amplamente difundida na sociedade patriarcal, que rechaça
mulheres em função de sua constituição física não se sustenta, em virtude da
imensa gama de possibilidades de representação. Uma mulher não é apenas uma
esposa, mãe, prostitua ou objeto de desejo, mas como na imagem de um prisma,
tem muitas facetas, podendo ser todas ou nenhuma. Entretanto, nenhuma dessas
perspectivas é capaz de vislumbrar o que é o feminino, elas são ferramentas,
muitas vezes usadas contra as mulheres para justificar as mais variadas
barbaridades. Por fim, Luiza Romão deixa evidente que em contrapartida com
essas assertivas, ser mulher está na ação:
porque
ser mulher está além do artigo
está
no sujeito:
que
não se sujeita
que
age, atua,
direto,
intransitivo
está
no sujeito
independente
de
gênero, número
e
grau (ROMÃO, 2014, p. 23)
Usando
os elementos gramaticais, o eu lírico toma posse do discurso,
reconhece seu lugar de subalterno e o repele, pratica a ação e ao intitular-se
“direto, intransitivo” rejeita complementos, em uma metáfora que evidencia que
a mulher não precisar estar atrelada à figura de um homem para existir, ela
basta por si. Praticando a ação, esse sujeito “independente de gênero, número e
grau” fragmenta o eu singular e o transborda em um eu coletivo, que conclama as
demais mulheres a assumirem também suas vozes e corpos e se colocarem no mundo,
por meio da empatia, em diálogo e postura combativa frente às opressões
vividas.
No vídeo poema “Pau-Brasil[5]”
a poeta coloca a lupa crítica sobre o sexismo, a misoginia e a cultura do
estupro de uma maneira contundente e não panfletária, para evidenciar que a
história do país foi construída sob o alicerce da violência de gênero:
PAU-BRASIL
o pau branco hegemônico
metido à torto e à direto
suposto direito histórico
de violar mulheres
o pau à pique
de arara
pau de sebo
o pau patriarcal
cara e orgulho nacional
A COLONIZAÇÃO FOI PELO ÚTERO
matas virgens
virgens mortas
A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO (ROMÃO)
Percebe-se ainda que não é
qualquer “pau” que é retratado pelo poema, mas o “pau branco
hegemônico/patriarcal”, aquele que é legitimado socialmente, aquele que tem o
poder de fala, que representa uma maioria opressora e misógina, que mediatiza
as minorias, que marginaliza o outro que se configura como diferente, aquele
que se orgulha de tornar mulheres abjetas.
Quando o eu lírico
denuncia nos seguintes versos que “A COLONIZAÇÃO FOI PELO ÚTERO/ matas virgens/
virgens mortas/ A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO”, evidencia a postura hegemônica e
sexista que permeia a história do país. Quando afirma que a colonização foi
pelo útero e de que esta também foi um estupro, revela a necessidade do
colonizador de subjugar e violentar as mulheres oriundas de outra cultura, a
fim de demonstrar quem de fato domina as relações de poder. Carneiro,
em estudo sobre a situação da mulher negra na América Latina, vai justamente
evidenciar essa questão afirmando: “Sabemos, também, que em todo esse contexto
de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado
é um dos momentos mais emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor”
(CARNEIRO, 2003, p. 49).
Para o seu próximo livro intitulado Sangria, que deve ser lançado em
setembro deste ano, Luiza Romão alterou o poema “Pau-Brasil” num processo que
ela mesma chama de edição. Aqui usaremos o texto que consta na declamação que
foi publicada no vídeo do Slam da
Resistência, no youtube, por que
entendemos aquela performance naquele contesto muito emblemática e em uma
tentativa também de instigar os leitores a procurar o vídeo e entender um pouco
da atmosfera que cerca Luiza Romão.
Sangria
é um projeto ousado e multi-plataforma, a impressão do livro contou com uma
campanha no Catarse. Segundo a própria autora no vídeo de lançamento da
campanha o preceito do livro é “revisitar a história do país pela ótica de um
útero[6]”.
Serão vinte e oito poemas, vinte e oito dias, que simulam um ciclo menstrual.
Esses poemas são acompanhados de fotos que performam o silenciamento das
mulheres.
O que se pode esperar de Sangria, e mais uma vez de Luiza Romã, é
a poesia que rasura a tradição e cliva um novo fazer estético e literário que
rompe paradigmas e tabus. Versos que inscrevem na literatura a força da poesia
falada, do projeto político que descontrói discursos hegemônicos e dá voz a
mulheres até então subalternizadas e consideradas abjetas. O que se espera de
Luiza Romão é a caneta em legítima revolta, a potência que contra-ataca e cria
espaços de afeto onde existiam apenas espaços de dor.
Obras citadas:
BEAUVOIR,
Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CARNEIRO,
Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a
partir de uma perspectiva de gênero. In.: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS;
TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos
contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003, p. 49-58.
D’ALVA,
Roberta Estrela. Um microfone na mão e uma ideia na cabeça – o poetry slam
entram em cena. Synergies Brésil, nº 9, pp. 119-126, 2011. Disponível em http://gerflint.fr/Base/Bresil9/estrela.pdf . Acesso em 03 jun 2017.
ROMAO, Luiza (2014). Coquetel
Motolove. São Paulo: Selo Burro.
[1] Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás.
Bolsista Capes. Orientanda do Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo. E-mail:
pilarbu@gmail.com
[2] Informações coletadas em
entrevista presencial concedida pela poeta Luiza Romão em 24 de julho de 2017.
[3] Roberta Estrela D’Alva é a alcunha Roberta Marques do Nascimento,
poeta, escritora, cantora de hip hop, pesquisadora e uma das principais e mais
importantes slamers do Brasil. Foi
Roberta quem trouxe o ZAP!, primeiro slam
a ser realizado no país.
[4] Apesar de, na
grafia da capa do livro, constar Coketel (com K), tanto na ficha
bibliográfica do livro quanto na página da autora nas redes sociais, a grafia
aparece como Coquetel (com “q” e “u”).
[5] Vídeo
disponível na página do Slam da Resistência:
https://www.youtube.com/watch?v=s73GoR-PTcY, acesso em 05 de abril de 2016.
[6] Fala completa
disponível no site https://www.catarse.me/sangria
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