Raquel M. Galvão
Imagem: Laura Wait |
Antigos senhores: agora a história abre passagem. E com toda a bagagem do que veio
antes, de tudo que nos foi imposto e exposto pelas vanguardas ocidentais (desde
que o mundo é mundo), é que fomos paradoxalmente munidos. Mesmo europeias,
mesmo autoritárias nos seus egos de criação de mitos, mesmo impondo o controle,
nos direcionaram as suas fissuras e a sinalizaram em letreiros publicitários:
sim, a cafonice da burguesia contemporânea está ultrapassada.
A vanguarda é outra!
A ideia de Vanguarda, que surgiu no início do século XX, sempre esteve atrelada
àqueles que estão à frente das batalhas. A partir do termo francês avant-guard,
relacionado à arte, designou uma posição à dianteira de um movimento e,
sobretudo, de estar à frente do seu tempo ou lugar.
O dramaturgo romeno
Eugène Ionesco (1909-1994) definiu a vanguarda em termo de oposição e ruptura:
"porque como qualquer sistema de governo, uma forma estabelecida de
expressão é também uma forma de opressão. O homem da vanguarda é o opositor de
um sistema existente." (Notes and Counter-Notes, 1964, p.41).
No contexto do
Brasil, fomos munidos pelo mesmo sistema que utilizariam para nos oprimir.
Muito além das questões limitantes da antropofagia, rupturas ou ideais de
moralidade nacional dos modernos ou concretistas dentro dos seus gabinetes ou
ambientes acadêmicos, a vanguarda artística contemporânea é formada por
exceções dentro do sistema. No campo da arte, o certo é que a burguesia não
conseguiu sustentar o seu modus-operandi completamente.
Na década de 1960,
tivemos Glauber Rocha denunciando poeticamente através da linguagem audiovisual
uma estética crua do povo oprimido da América Latina. Que movimentos poderiam
ser gerados pela fome? Na década de 1990, o manguebeat ditou a
vanguarda afirmando uma ideia revolucionária de nordeste, que vê na fome do
povo uma possibilidade de transformação e de deslocamentos.
Conectados com essa
ideia de local e de universal, entre mashups e hibridismos,
em 2017, temos uma configuração latente no meio da crise política e econômica
do Brasil. Atemporal e aespacial, o que hoje existe é uma vanguarda
instrumentalizada pelo conhecimento. E creia, ela está circulando, dentro e
fora das universidades, trabalhando em redes e criando alternativas a
partir do que a circulação, a cultura digital e as trocas de hoje permitem.
A vanguarda
contemporânea vem da resistência. Na força inversa das opressões que ainda
existem na sociedade. Mesmo não tendo os sobrenomes europeus com suas
combinações inusitadas, ela tem nome e sobrenome. Traz a ideia de família, de origem,
e de afeto latente. A vanguarda de hoje não vem de fora para dentro. Está
alicerçada e muito bem na violência sofrida, no silêncio imposto e nas
tentativas de cegar historicamente atualizadas.
Não cabe na vanguarda
contemporânea o burguês com a sua cerveja gourmet e a estética
fabricada pelas grifes. Isso já não interessa mais. As articulações são outras.
Novas origens são assimiladas no protagonismo das mulheres, do povo negro, dos
nordestinos que ainda por necessidade, cilada ou desassossego precisam fazer
concessões e trabalhar em prol de algo que não é seu. A vanguarda vem das
roças, sim e obrigada. De colheitas perdidas, mas de ganhos e de aprendizados
vindos do afeto com a terra e com as contradições dos seus.
A vanguarda não está
necessariamente nas grandes metrópoles. O mais provável é que não esteja. O
“interior" com as suas cores misturadas, seu tom em sépia, ou verde, ou
azulado, pulsa onde quer que o agente da vanguarda esteja.
A vanguarda de que
trato ocupa o espaço de um mundo de possibilidades pelo deslocamento. É negra e
ainda não chegou aos 30 anos. Foi instrumentalizada pelos clássicos. Em estudo
e pesquisa, fez arte: Calila das Mercês, criadora do projeto Escritoras Negras.
Negra e escritora, além de jornalista e pesquisadora de doutorado da
Universidade de Brasília, tendo passado por outras instituições como o
Instituto Politécnico de Bragança em Portugal e a Universidade do Recôncavo da
Bahia em Cachoeira/BA, ela nos apresenta um
feminismo cuja pulsão está na afirmação da origem e na visita aos seus
ancestrais. Quando se propõe a mapear, reunir e registrar mulheres escritoras
negras cuja trajetória social foi raramente evidenciada, ela
provoca a ruptura a partir da resistência. Quando revisita o seu silêncio
de infância e adolescência, ela aponta para enquadramentos que latentes: vozes
e cidadania necessárias para o front.
Nos universos
possibilitados pelas culturas digitais, o Escritoras Negras é pura vanguarda. E nesse desejo de alterar o que entendemos como
historicamente relevante, evidencia conhecimento e arte. A fome de outrora ou
de hoje, desloca o vasto depósito da herança literária. A ação da vanguarda
negra, feminista e nordestina é acontecimento. Faz-se como "uma FONTE para
remodelar nossa história literária, passado, presente e futuro”. Pulsa, mais forte que
o mercado. É fincada em raízes da honestidade com o outro. Repara.
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