22 de junho de 2019

A mulher de 40: uma análise de O quarto branco, de Gabriela Aguerre

 Flávia de Castro Souza



But Truly I do Fear it, de Regina Parra[1]



You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I'll rise.
(Maya Angelou)



Começo esse texto explicando como cheguei ao livro O quarto branco (2019), de Gabriela Aguerre[2], romance brasileiro contemporâneo. Para minhas pesquisas busco textos literários de autoria de mulheres que tragam temáticas sobre o corpo. Entremeado ao tema está o da maternidade. No caso de O quarto branco, o da não-maternidade. Li o livro em poucas horas, é curto e intenso. O livro de estreia da autora, meio brasileira meio uruguaia, tem alguns pontos em que a ficção se esbarra com a sua biografia, ou vice-versa, como o fato de ter tido uma irmã gêmea que morreu dias após o nascimento, ter nascido no Uruguai e vindo para o Brasil na primeira infância, no período da ditadura ocorrida no país vizinho, e também fragmentos de histórias de mulheres do seu convívio, com alguns acontecimentos e conflitos próprios da geração de mulheres da atualidade. Em declarações feitas por Gabriela Aguerre por ocasião do lançamento do livro, ela afirma que se inspirou em sua própria vida, embora ela mesma alerte que não se trata de uma autobiografia.

Comecei a investigar os assuntos ao meu redor e escolhi como guia a história das gêmeas. É um assunto que sempre me interessou, faz parte das minhas obsessões. Sou gêmea, minha irmã gêmea morreu aos 3 meses, é um fator biográfico que investigo com viés criativo. Mas não é uma autobiografia. Tem muito de imaginativo no livro, mas é um assunto que me constitui.
(...)
Me deixei atravessar por outras emoções, sentimentos, outras histórias. Sempre pensando o que tenho a dizer e como essa personagem se coloca. Aos poucos, fui entendendo a questão da descendência, como podemos nos dividir pra frente e pra trás… É quase uma questão matemática, quem somos.[3]

Uma das questões que me envolveu nessa leitura foi como a experiência da maternidade está sendo representada nas artes, em especial na literatura, pelas artistas mulheres. E ainda quais os reflexos do movimento feminista na vida social das mulheres estão sendo representadas nas narrativas contemporâneas.
A maternidade desde o contexto social do final dos anos 1960 até meados da década de 1980, com o advento do feminismo, tornou-se pauta recorrente entre as feministas e ocupou os círculos teóricos e políticos das ciências como um todo. Desde a publicação do livro Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, em 1949, questiona-se a função da maternidade, entre outras pautas como a liberdade sexual, o uso de contraceptivos, o aborto etc. A história do movimento feminista se desenvolve por etapas, primeiro passa pelas reivindicações ao igualitarismo, depois centraliza nas mulheres como sujeito, em seguida reforça os elementos para a politização das questões privadas, e toda essa evolução culmina no feminismo contemporâneo. Em um primeiro momento, a maternidade foi considerada pela crítica feminista como o elemento-chave para explicar a dominação masculina sobre a feminina. Depois, num segundo momento, a maternidade passou a ser valorizada como uma forma de poder da mulher e de recuperação de um saber feminino que os homens jamais teriam acesso. Já em um terceiro momento, com o avanço das novas tecnologias conceptivas, a dominação masculina sobre a feminina passa a ser explicada por fatores sociais e não biológicos. A partir dos estudos das ciências sociais e do desenvolvimento do conceito de gênero é que a maternidade passa a ser abordada em suas múltiplas facetas, desde forma de opressão à realização feminina, revelando assim que a temática pode ter inúmeras interpretações. A perspectiva de gênero possibilitou também a compreensão de que a maternidade é um símbolo histórico, cultural e político construído a partir das relações de poder e de dominação de um dos sexos sobre o outro[4].
No artigo “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”[5], de Regina Dalcastagnè, me chamou a atenção o apontamento da pesquisa realizada sobre os romances brasileiros contemporâneos de dois períodos, de 1965 a 1979 e de 1990 a 2004, a ausência de temáticas sobre aborto, infertilidade e violência doméstica, inclusive entre as autoras:

Parece ser mais fácil atacar os tabus relacionados à sexualidade feminina (...) do que representar, por exemplo, o sentimento de perda causado por um aborto voluntário, ou mesmo involuntário, bem como os riscos e o estigma que pesa sobre aquelas que passaram pela experiência, comum entre tantas mulheres. (p. 61)

Passaram-se quinze anos do período pesquisado por Regina Dalcastagnè e, hoje, em 2019, temos alguns romances brasileiros que tratam dessas temáticas antes silenciadas. O quarto branco é um deles. Além do aborto involuntário, ele trata também de problemas com a fertilidade da mulher madura. A idade reprodutiva da mulher é um tabu social que quase não encontra representação na literatura, por isso talvez tenha me instigado a leitura e a breve análise da obra. É importante ressaltar que as abordagens de gênero e feminista contribuem para a compreensão da questão da maternidade no contexto social contemporâneo.
A história de O quarto branco inicia com um choro individual que é ao mesmo tempo coletivo, “de mil mulheres” (p. 10), um abismo, um oco, um diagnóstico: “não posso mais ter filhos” (p. 9) e termina com um silêncio, uma despedida, uma tranquilidade. A protagonista Gloria narra sua busca por respostas para situações suscetíveis da vida, narra a experiência dos lutos enfrentados, do aborto espontâneo que precede a descoberta da infertilidade, da morte incompreensível da irmã gêmea, e da morte já anunciada do pai, após um tratamento fracassado contra um câncer. Toda a narrativa decorre em alguns dias, desde a descoberta da infertilidade, uma viagem rápida ao Uruguai, até a morte do pai. A narradora recorre a fragmentos de memórias distantes, como episódios da infância, de viagens de férias, dos encontros com a mãe ou com o pai e a madrasta, e de outras memórias mais recentes, como da cena em que é demitida do emprego e ainda precisa fazer um exame demissional, das conversas com as amigas e da rotina com o marido.
O mote da narrativa é a maternidade na maturidade. A protagonista tem por volta de quarenta anos e, após um aborto espontâneo, descobre que não pode mais engravidar. Gloria recebe o diagnóstico a partir de um exame de dosagem do hormônio antimülleriano que serve para avaliar a reserva ovariana, por conta da idade madura ela confirma a infertilidade. Me arrisco a afirmar que pela aproximação da idade da autora com a da protagonista de O quarto branco haveria uma familiaridade para tratar dos temas do aborto e da infertilidade, caros às mulheres, embora não seja relevante para a análise do romance nenhuma experiência íntima de Gabriela Aguerre. Apesar da coincidência, proposital ou não, a personagem Gloria nasceu no mesmo ano da autora, em 1974, a minha especulação é de que a perspectiva social da mulher pode levá-la a criar personagens femininas mais plurais, minuciosas e complexas, com abordagens feministas, muitas vezes ignoradas pelos autores homens.
A questão da maternidade é bastante presente na obra de Gabriela Aguerre. Entremeada à narrativa de Gloria ela vai esmiuçando várias histórias de outras personagens relacionadas ao tema, mostrando como se trata de assunto delicado, profundo e complexo, com relatos de experiências individuais, com manifestações de incertezas frequentes, próprias das mulheres da contemporaneidade. A narradora reflete sobre uma conversa com as amigas sobre ter ou não filhos, todas com idade próxima aos quarenta anos: “cada qual com sua condição diferente mas parecida, a questão: sim ou não? sim mas quando? não, mas por quê?” (p. 48).
A narradora Gloria conta em detalhes como se deu o aborto involuntário que ela sofreu, são cenas descritivas e imagéticas que fazem o(a) leitor(a) sentir a dor da experiência daquela mulher:

(...) eu consigo me levantar e ele vai comigo até o banheiro, e lá se termina de fazer o que começava a ter sido feito, o lixinho do banheiro se enchendo de papéis densos, vermelhos e pesados, e em uma dessas vezes eu vejo, o que não tinha forma ainda e era quase uma ideia abstrata, o amor em forma de ideia e coisa concreta, que chamamos de grão, depois de arroz, depois de coisinha. Vejo a forma do que não tinha forma ainda e volto culpada para a cama. Eu dei descarga, eu disse, eu dei descarga. (...)
Eu carrego um filho morto mas sinto imenso amor por ele (...) mas morto diz muito menos para mim do que filho. Então espero docemente aquele tempo em que o corpo pede para fazer o que devia. Conselho médico: toma o tempo do corpo. Nós aceitamos, achamos que ia ser melhor assim. Ainda fomos para lá ouvir o coraçãozinho bater, mas não ouvimos nada, e por um momento achamos que era o filhinho brincando de esconde-esconde. (p. 39-40)

Gloria representa muitas mulheres que já passaram pela perda de uma gravidez e que ficaram, muitas vezes, reservadas à memória exclusiva dessas mães. De acordo com o artigo “Idade materna: resultados perinatais e via de parto” [6], de João Luiz de Carvalho Pinto e Silva e Fernanda Garanhani de Castro Surita, o risco de abortamento espontâneo chega a 25% nas mulheres entre 35 e 40 anos e a 51% nas mulheres com mais de 40 anos.
Em outro momento da narrativa, Gloria repassa na memória um diálogo com a amiga Teresa que diz: “eu também passei por isso” (p. 39). Os abortos espontâneos são mais recorrentes na vida social de mulheres do que eu, como leiga, sou capaz de prever. A personagem Teresa, diferente de Gloria, acaba por engravidar novamente: “Teresa tinha passado pelo mesmo que eu. Teresa tinha sobrevivido, bem até, e depois veio o Tom” (p.39).  A personagem convive com a experiência da amiga, abre uma brecha no seu sofrimento para usufruir daquela relação mãe e filho:

Ver Tom a cada semana é a única  concessão que faço à multidão de mães ao meu redor: todas as amigas, as amigas das amigas, a vizinhança que engravida e empurra carrinhos de bebê na praça, no parque, na calçada: eu não posso. Eu não posso lidar com isso agora (p. 39)

Uma outra experiência narrada por Gloria diz respeito à outra amiga, Beatriz, que cheia de incertezas sobre ser ou não mãe, decide por um aborto voluntário:

Continuo caminhando pela rua plana, falo com  Beatriz ao celular. Ela está angustiada. Descobriu que está grávida e ainda nao contou ao marido: quer que seja no momento ideal, que não chega, ele está estranho, parece que esconde alguma coisa. Ela me pede para que ligue para a Paula, que já se decidiu por um aborto: não confia no cara, não quer um corpo estranho dentro do corpo dela, não quer ser mãe, mas está presa a uma cama desde que fez o teste de farmácia e não consegue se levantar. (p. 48)

Apesar de não julgá-la, Gloria não é capaz de auxiliá-la a realizar o aborto e tampouco consegue explicar seus motivos, devido ao turbilhão de emoções que vêm à tona ao tratar do tema da maternidade, ainda sendo processado pela personagem através do seu luto.
Para além do texto escrito, a imagem da capa de O quarto branco me chamou bastante a atenção. Pesquisei sobre a obra e a vida da artista plástica Regina Parra, uma jovem paulistana. A imagem corresponde a uma das cinco pinturas, óleo sobre papel, da série “Tenho medo que sim”, de 2018. A pintura de uma mulher apertando seu próprio pescoço, num ato de auto-estrangulamento, causa a sensação de falta de ar, de angústia, de dor, exatamente os sentimentos transmitidos durante boa parte da leitura da história da personagem Gloria. A escolha de capa da edição da Todavia foi tão perfeita que a “coincidência” não termina por aqui. Outro trabalho de Regina Parra que constitui sua obra é intitulado “Eu me levanto” com inspiração no poema “Still I Rise”, de Maya Angelou. A trajetória de vida da artista plástica que passou cinco anos buscando a cura para uma doença grave e rara que a acometeu, levando-a a dores intensas no corpo e a uma fraqueza muscular que a mantinha quase sempre sentada ou deitada, também serviu de inspiração para a sua criação artística. Após um tratamento de cinco anos, hoje já curada, a artista revela em entrevista à Revista Trip[7] que durante a doença passou a se interessar mais pelo seu próprio corpo: “Não tinha como não pensar no corpo porque ele virou meio que um impedimento para tudo o que eu queria fazer”. Durante o processo de criação, para compor e nomear a série de autorretratos, Regina Parra diz ter se inspirado ainda em Ofélia, personagem de Hamlet, de William Sheakespeare. A frase “Tenho medo que sim” faz parte de um diálogo entre Ofélia e o pai, Polônio, sobre um acesso de loucura e de violência protagonizados por Hamlet contra a noiva. A artista plástica declarou ainda que além de seu corpo, são objetos de seus estudos outros elementos como, por exemplo, a dor, a morte e o feminismo. Na releitura da personagem Ofélia, Regina Parra traz imagens ambíguas que oscilam entre a angústia e a luxúria.
As duas artistas mencionadas, Gabriela Aguerre e Regina Parra, trouxeram, cada uma à sua maneira, para suas respectivas obras, experiências relevantes acerca do corpo feminino. São duas artistas contemporâneas, uma na literatura e outra nas artes visuais, que desafiam as noções canônicas e redutoras impostas pela sociedade à identidade feminina. Ambas as obras têm protagonistas fortes que, mesmo permeadas pela dor e pelo sofrimento, causados por limitações corporais, de idade ou de saúde física, conseguem encontrar saídas, alívios e superações. Na minha pespectiva, o poema de Maya Angelou que serviu de inspiração para a artista visual tem o poder de reverberar a força de se reinventar que une as personagens Gloria de O quarto branco e a mulher da imagem do autorretrato de Regina Parra e todas as mulheres que foram atravessadas por algum tipo de experiência com o corpo e com a maternidade, seja por aborto, involuntário ou não, por infertilidade, pelos estigmas e consequências que a condição de ser mulher traz consigo.
Assim, a minha sensação ao ler Gabriela Aguerre é que ela condensa sua prosa, oferece ao leitor uma história melancólica, gera um deleite literário e transmite uma poesia em tons suaves. A cor branca do título, mencionada em diversos momentos da narrativa, pode sinalizar essa busca por purificação ou de um estado de espírito da narradora em busca de descanso para o corpo e para a mente: “Um imenso branco em volta de mim, silencioso, sereno, límpido, com paredes que se misturam do chão ao teto, sem limites nem ângulos retos. Um quarto branco. Uma felicidade do avesso, uma paz triste, uma paz” (p.117).



[1] Imagem retirada do sítio eletrônico da artista plástica: http://www.reginaparra.com.br/tenho-medo-que-sim. Acesso em 5 de maio de 2019.
[2] AGUERRE, Gabriela. O quarto branco. São Paulo: Todavia, 1ªed., 2019.
[4] SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análisa histórica”. Educação e realidade, n.º 16, v. 2, Porto Alegre, jul-dez 1990.
[5] In: DALCASTANGÈ, Regina e LEAL, Virginia Maria Vasconcelos (org.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte, 2010.
[6]  SILVA, João Luiz de Carvalho Pinto e SURITA , Fernanda Garanhani de Castro. “Idade materna: resultados perinatais e via de parto”. Acesso em http://www.scielo.br/pdf/rbgo/v31n7/v31n7a01.pdf.

15 de junho de 2019

Somos sementes e granadas

  Marina Farias Rebelo


    Faço o fogo e carrego a fogueira, xarpigrafia do artista visual Mulambö[1]


muito pouco quase nada do que se diga serve de atenuante para a dor que cada corpo-mente preta sentiu ao saber da morte do músico preto no domingo, dez de abril de dois mil e dezenove. um corpo perfurado oitenta vezes por ser o corpo racializado num mundo em que raça é uma marca no corpo marcado e colonizado pela violência e pela guerra. poucos dias depois no mesmo rio de janeiro, uma das maiores cidades do planeta, outro corpo preto é alvo de fuzilamento quando, em meio ao dilúvio, caixote pós caixote minuciosamente organizados por mãos pretas acostumadas à rua permitiram que a senhora branca idosa continuasse incólume o seu caminho com os pés secos preservados de tocarem a água suja que corria junto ao meio fio e encharcava os pés pretos descalços do flanelinha. o filósofo camaronês diz que existem muitos jeitos de morrer para além da morte do corpo físico. aqui no brasil a gente sabe que pode ser de bala na pele, de arrastamento pelo carro da polícia, de repetição do padrão de dominação, de mata-leão. corpos pretos muitas vezes morrem, mas outras muitas morrem e continuam vivos morrendo cada dia um pouco ao ver na mão da mãe preta o uniforme da escola sujo de sangue. não há o que se diga, há quase nada que se faça pra arrancar do peito preto, que se diz preto e por isso é preto diante de brancos e outros pretos, esse mal. o mundo esse que taí não se ajeita não tem jeito só há o jeito desse mundo findar e outro ser mundo criado e parece que recentemente se descobriu que deusa é uma mulher preta.
(brasil, abril de 2019)

Em meados de 2018, uma amiga muito querida e próxima, sabendo da minha constante e cada vez maior inquietação com os efeitos do racismo sentidos por mim em minhas relações afetivas, me mostrou o vídeo[2] de um jovem rapaz, psicólogo, negro, que acabara de defender a sua dissertação de mestrado e participava de um evento na Universidade Federal Fluminense (UFF), apresentando uma parte de seu texto sobre psicologia preta e produção de conhecimento decolonial. Não tenho formação em psicologia e pouco li sobre psicanálise, mas os 17 minutos da fala de Lucas Veiga me deixaram profundamente tocada, não apenas pelo jeito sereno e concentrado que ele tinha de se expressar e criar metáforas simples para conceitos complexos das teorias de Freud e Lacan, mas também pelo contraste entre essa serenidade e a proposta radical de implosão do mundo, que, referenciada em Frantz Fanon[3], estava contida em seu discurso. Passei alguns dias revolvida com o que ouvi, particularmente detida em um pensamento de Lucas: nós, negras e negros, carregamos em nossos corpos a semente do porvir de um novo mundo e a granada para implosão do mundo tal qual conhecemos hoje. O vídeo, datado de 17 de maio de 2018, instaurou em mim o entendimento dessa contradição e, desde então, a possibilidade de ruir o mundo me atravessa olhos a cada leitura que tenho feito e a cada movimento que planejo e executo em direção à consciência dos espaços que ocupo como uma mulher negra no ambiente acadêmico.
Alguns meses depois do episódio do vídeo, ao realizar a matrícula em disciplinas para obter os créditos exigidos pelo doutorado em literatura, me inscrevi num curso cuja ementa girava em torno da discussão sobre racismo e necropolítica, e estava baseada na obra Políticas da Inimizade[4], do filósofo camaronês Achille Mbembe. Ao falar sobre as características que aludem à modernidade, Mbembe lista quatro aspectos que constituem a era moderna, sendo o primeiro deles - e o que mais me interessou analisar - os movimentos de repovoamento da Terra a partir das relações estabelecidas entre o império e as colônias na modernidade, principalmente no tocante à lógica de povoamento e exploração construída com base na escravidão. Se pensamos no Brasil a partir da reflexão de Mbembe, inclusive quando ele aborda o conceito de o “corpo noturno da democracia” (2017, p. 31), percebemos que a longevidade e particularidade do processo escravocrata brasileiro resultaram na democracia genocida vivenciada no país desde o seu erguimento como nação até os dias de hoje.
O processo de escravidão no Brasil teve especificidades e se diferenciou de outros regimes escravocratas das Américas. Uma das obras literárias mais importantes da literatura brasileira sobre esse período da história do país é Um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves. Publicado originalmente em 2006 pela editora Record, o livro é narrado e protagonizado por Kehinde, uma menina africana trazida escravizada ao Brasil no início do século XIX que passa toda a sua vida desvelando-se com suas memórias ao resistir e questionar o deslocamento geográfico a ela imposto, a diáspora forçada que a trouxe para ser parte do projeto de nação que se delineava na outra margem do atlântico negro. Essa deslocação, movimento que dá início à trajetória da personagem narradora, a coloca em constante batalha pelo não apagamento de suas raízes, pela manutenção de sua identidade e pelo entendimento sobre o seu lugar como uma mulher negra no processo de formação da nação brasileira.
Ao conhecermos a trajetória de Kehinde em seus múltiplos deslocamentos espaciais, temporais, subjetivos, uma questão se impõe à reflexão: quantos e quais movimentos de resgate de memória são necessários para a construção da identidade de uma mulher negra em meio ao processo de escravidão que tivemos no Brasil e que, em muitos aspectos, não pode ser considerado inteiramente finalizado? A escrita de uma mulher negra que optou por estruturar seu romance histórico, resultado de consistente pesquisa documental, sob o ponto de vista de outra mulher negra ainda que fruto de uma construção ficcional, foi também responsável por abrir as sendas do caminho que Gonçalves trilha agora como escritora reconhecida. A relação difusa entre autora e personagem, não é gratuita ou despretensiosa, mas sim parte fundamental de minha leitura, que considera o texto de Um defeito de cor como uma escrita de si, ainda que o livro não seja uma obra diarística ou autobiográfica.  As memórias de Kehinde, contadas por ela desde que era uma criança em África, são os fios da ancestralidade que a autora busca tecer para si mesma quando cria a trama vivida pela narradora e protagonista de seu romance, num exercício deliberado de autorrepresentação. Essa aproximação permite a Gonçalves, por meio de sua criação literária, e a Kehinde atráves de seu falar, reconstruírem reciprocamente uma identidade feminina negra tantas vezes negada a elas.
Todos os trajetos feitos pela protagonista, não apenas os externos e espaciais, mas também os internos e subjetivos, se conformam como a trilha seguida por ela e cujo destino final, porém jamais acabado, é a construção de sua identidade no novo espaço, a nova nação que habita. Uma identidade que, pela construção colonial do racismo, se constitui como insurgente, cerne de um sujeito desterritorializado, cuja ontologia se mostra irrealizável, nas palavras de Fanon (2008). Para pensar essa reflexão de forma material, são essenciais os objetos que a protagonista carrega durante sua vida – imagens de santos, bonecos de orixás e outras miudezas herdadas de sua mãe, avó, irmã – símbolos de sua necessidade de pertença ao seu passado. Estes pequenos objetos, ao ressignificarem o desejo de retorno à terra natal, se transformam, ainda que não conscientemente, em um confrontamento com o tempo e com a morte. Não apenas a sua, mas as mortes das mulheres que foram essenciais na trajetória da protagonista.  Neste pequeno trecho do livro, Kehinde fala da urgência que sente em poder realizar o culto aos orixás, de recuperar pequenas memórias de sua irmã gêmea morta, de, enfim, construir uma memória de si para reter uma memória do outro, no sentido de estar ciente sobre a sua própria morte.

A Nega Florinda disse que já sabia que eu precisava falar com ela e que podia ajudar. Contei como eu tinha chegado até ali e ela disse que isso já era um sinal de que os voduns e os orixás estavam comigo, mesmo que no momento eu não pudesse cultuá-los como mereciam, pois se eu tinha sobrevivido era porque havia uma importante missão a cumprir. (...) Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khesiobô, Legba, Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xaponã e Olokum.(...). A Nega Florinda foi embora prometendo me ajudar, primeiro com o pingente da Taiwo, depois com a estátua dos Ibêjis, as maiores urgências. As outras coisas chegariam cada qual a seu tempo, como tinha que ser naquele lugar onde fingíamos cultuar os santos dos brancos.[5]

Subjetividades, afetos e diáspora

A construção de uma subjetividade negra diaspórica significou, para os povos africanos, a saída de um lugar ao qual se pertencia para serem transitados para um novo território onde seu corpo foi sujeito à marcação por uma ideia de raça, de diferença; e sua individualidade cerceada do direito à vida e à humanidade. No processo de construção dessa alteridade, cuja referência é o homem branco europeu, e a guerra o método de submissão de corpos negros, a violência se torna natural, tanto para quem a exerce, como para quem a recebe, sendo vista como parte necessária e inevitável do dito processo civilizatório.
A urgência que a colonização e as práticas de subjugação de povos de África impõem para o reconhecimento de um inimigo encontram eco nos medos e paranoias que o corpo racializado provoca no sujeito racista, a partir do entendimento de que é o racismo quem produz a categoria de corpos racializados. Em outras palavras, pode-se afirmar que a crença de que existe um corpo marcado por uma raça é produto do racismo. O livro Baratas[6], da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, foi uma das leituras que fiz recentemente e que ganhou intensidade com o incremento das reflexões sobre a descolonização radical, proposta por Fanon, e da leitura do livro de Mbembe. Mukasonga, ao relatar o genocídio de milhares de pessoas da etnia tutsi pelas mãos de seus conterrâneos da etnia hutu, ocorrido em Ruanda no ano de 1994, exemplifica a reflexão trazida pelo filósofo sobre a construção do inimigo, tido como necessário para a manutenção de uma paz falseada pela controversa sensação de insegurança que as democracias perpetuam. Os hutus, ao assassinarem a sangue frio mais de 800 mil tutsis, estavam imbuídos da crença que os corpos tutsis eram o os corpos racializados naquele contexto. O inimigo era o outro, a quem se devia negar e destruir. A necessidade de destruição desse inimigo, alimentada continuamente pela negação de si mesmo, traz como consequência a constituição do inimigo através de um espelho. O sujeito olha para si mesmo e a imagem que ali se forma refletida é a dele como o seu inimigo. O relato autobiográfico da escritora ruandesa tenta dar uma dimensão da violência que a colonização informa aos corpos negros, projetando nesses corpos um auto-ódio destruidor de humanidades:
Da morte dos meus, só me restam buracos negros e fragmentos de horror. O que mais sofrer? Ignorar como foram mortos ou saber como os mataram? O terror do qual foram tomados, o horror que sofreram, às vezes é como se eu tivesse o dever de senti-los, às vezes é como se eu tivesse o dever de escapar. Não me resta nada a não ser a lancinante recriminação de estar viva em meio a todos os meus mortos. Mas o que é meu sofrimento, comparado ao que eles sofreram antes de obter de seus carrascos essa morte que, para eles, foi sua única libertação?[7]

Que tipo de existência se faz possível e é honestamente desejada depois de uma experiência de morte, não apenas do corpo físico, mas dessa subjetividade que, nas palavras de Mbembe, passa a existir como morta-viva? Como romper esse ciclo, de repetição da dor causada pelo racismo, e transformar o sofrimento em autocuidado, retirando do veneno o antídoto para a cura? Para Fanon, o restabelecimento do contato consigo e com o mundo é uma estratégia para o rompimento do ciclo de doenças e degenerações que decorrem das vivências racistas, não apenas as que causam injúrias físicas, mas também aquelas que provocam feridas subjetivas, emocionais. Seria necessário, então, o renascimento da pessoa adoecida pelo racismo. O renascimento desse paciente precisa, contudo, ser acompanhado de um renascimento do mundo.
Em constante diálogo com Fanon, e apesar de apontar um caminho de destruição do mundo (ou talvez justamente por isso), Lucas Veiga é um homem extremamente afetuoso e presente. Pude conhecê-lo e estar com ele há poucos dias, num desses encontros que a vida organiza e que parecem ser afortunadamente inevitáveis. Psicólogo clínico que tem se dedicado a estudar e aprofundar as bases teóricas para uma Psicologia Preta no Brasil, Veiga se debruça sobre como desvendar caminhos de cuidado para negritude enfrentar a violência racista e desmontar os seus efeitos. Um trabalho que reestabelece o senso de pertença de mulheres e homens negros, mobiliza afetos e aposta na reconstrução de laços. Nas palavras de Lucas, outro mundo torna-se possível: o aquilombamento cura.



Referências:
FANON, Frantz. Pele negras máscaras brancas. EDUFBA. Salvador, 2008.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro. Record, 2006.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Antígona. Lisboa, 2017.
SCHOLASTIQUE, Mukasonga. Baratas. Tradução de Elisa Nazarian. Editora Nós. São Paulo, 2018.

VEIGA, Lucas. Psicologia Preta: Como curar a negritude dos efeitos do racismo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BVquf1HY0eg&t=51s.


[1] Para conhecer mais do trabalho de Mulambö: https://joaodamotta.wixsite.com/mulambo

[2] VEIGA, Lucas. Psicologia Preta: Como curar a negritude dos efeitos do racismo. Disponível em

[3] FANON, Frantz. Pele negras máscaras brancas. EDUFBA. Salvador, 2008.
[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Lisboa: 2017, Antígona.
[5] GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro. Record, 2006. P. 83-84.
[6] SCHOLASTIQUE, Mukasonga. Baratas. Tradução de Elisa Nazarian. São Paulo. Editora Nós, 2018
[7] SCHOLASTIQUE, Op. Cit. p. 136

8 de junho de 2019

Um corpo é um corpo: notas sobre deficiência e literatura

Isadora Maria Santos Dias

Bodies, de Thomas Hawk

Compreendendo deficiência como marcador social de possíveis marginalizações sociais, em A prótese narrativa (The Narrative Prosthesis, título original), David Mitchell e Sharon Snyder chamam de narrativas protéticas, as histórias nas quais personagens com deficiência tem: 1) deficiência evidenciada como forma de diferenciação, como aquilo que foge à norma; 2) quando a deficiência é usada como dispositivo metafórico oportunista. E para isso, analisam algumas narrativas clássicas.
De acordo com estes autores, na obra O soldadinho de chumbo, por exemplo, há uma diferenciação/caracterização pela deficiência, já que o brinquedo-soldado, sem uma das pernas, chama a atenção da criança por este atributo, e é renegado por ser um “aleijado feio” e por isso acaba morto, sendo jogado na lareira.  Já em Édipo, Rei, de Sófocles. trata-se do exemplo de deficiência como dispositivo metafórico: ao cegar-se Édipo buscaria autopunição e elevação, como se a ausência de visão, necessariamente, o tornasse mais digno. Mitchell e Snyder chamam atenção ainda para o fato de que muitos personagens místicos, bruxos e videntes são representados como cegos, pois de acordo com uma perspectiva platônica-idealista, a cegueira os faria perceber o mundo de modo mais profundo, como ele realmente é.  
Para nomear o conjunto de opressões e violências geradas contra pessoas com deficiência pela deficiência, usa-se o termo capacitismo. Esta palavra, recentemente traduzida para o português brasileiro, engloba e questiona as ideias, narrativas e práticas sociais a respeito do que é um corpo normal, saudável versus um corpo anormal, doente no mundo. Assim, os mecanismos apresentados por Mitchell e Snyder como narrativa protética nada mais seriam do que formas capacitistas de dominar e limitar o imaginário e representação sobre o que é ter deficiência. Associar a existência de pessoas cegas (mascando chiclês ou não) a elevação espiritual ou uma criança exterminando alguém, ainda que ficcional e simbolicamente, por conta de deficiência física não estaria dizendo sobre o lugar desses corpos, pessoas em sociedade?
E não se trata de restringir análises, deficiências podem sim ser analisadas como metáfora para mazelas sociais, desvio de caráter, diferenciação ou qualquer outro tipo de relação com a negação. Contudo, até que ponto a análise de deficiência, em personagens e narrativas, como recurso exclusivamente metafórico não é limitante ou reducionista? Até que ponto as análises que tratam de existências deficientes como apenas analogias para outras coisas não estão contribuindo para o apagamento simbólico e material dessas existências em realidades para além da ficção?
Não se trata de impossibilitar o uso metafórico do corpo, mas de se perguntar e disputar os discursos em torno das noções de corpo, se perguntando de qual corpo se fala, e quais as implicações sociais e políticas disso. Ainda sobre os mecanismos da prótese narrativa, no livro Deficiência na ficção científica: representações de tecnologia como cura (Disability in science fiction: representations of technology as cure, título original), Kathryn Allan analisa o modo como neste gênero é recorrente a narrativa de compensação de deficiências por meio da obtenção de super-poderes e, por consequência, a transformação em algo superior e mais válido do que um ordinário corpo deficiente, ou seja, um super-herói.    
           E se pararmos para pensar, parte significativa do universo dos quadrinhos de super-heróis, ou das histórias que narram epidemias de vírus zumbi, ou, ainda, se repararmos na estranheza das representações de aliens, orcs ,criaturas como a criada por Victor Frankenstein, não estamos, no fundo, tratando sobre definições de corpos: normais e anormais, saudáveis e doentes, contaminados e puros? Não é também a partir da descrição dessas corporalidades outras que o estranhamento se faz? Por que, então, é tão escasso o uso da categoria deficiência como chave de leitura/análise em literatura?
           Metaforização, diferenciação e compensação/superação, são esses os principais recursos analíticos relacionados à deficiência. São essas as lentes geralmente usadas na avaliação de personagens com deficiência e suas histórias. Entretanto, em qual medida esses recursos dizem não sobre o objeto pesquisado, mas sim sobre quem pesquisa? O quanto ou o quê significa o entendimento de deficiência apenas como ausência, falha ou insuficiência, e não como um aspecto estruturante de diversas vidas?
  No filme Margarita com canudinho, de Shonali Bose, a protagonista, Laila, uma jovem, indiana, com paralisia cerebral, se muda para os Estados Unidos para fazer um intercâmbio em uma universidade. Nessa história, o foco não é a superação da paralisia cerebral ou sobre como a protagonista serviu de inspiração, elevação moral para as personagens sem deficiência da narrativa.  Aborda-se nada mais nada menos do que a experiência de uma jovem com deficiência lidando com questões sociais, políticas, afetivas, psicológicas, sexuais, de acessibilidade e fisiológicas em sua vida, e sim, a deficiência atravessa todas e cada uma dessas áreas, porém, não é o foco exclusivo caracterizante da personagem e da narrativa.
Seguindo esta lógica, o romance autobiográfico O corpo em que nasci, de Guadalupe Nettel, não se reduz a contar sobre o sofrimento e a necessidade de compensação de uma protagonista com deficiência visual. Conta, sim, sobre como a perspectiva de familiares, amigos e um mundo despreparados para compreender corpos ditos anormais pode contribuir negativamente para a sensação de deslocamento de quem é visto como outsider, anormal, não-saudável.  
Nessas duas narrativas, não há um foco na diferenciação ou na metaforização da deficiência, há, pelo contrário, a possibilidade de existir plenamente a partir de corpos que são socialmente entendidos como inferiores e/ou menos humanos. No álbum musical Um corpo no mundo, Luedji Luna situa a si a partir de “cor, corte e história do seu lugar”, do lado de cá, eu me atreveria a observar e acrescentar que para situar um corpo no mundo e as narrativas de e sobre ele é necessário, também, refletir quais as formas, as deformidades, texturas e anormalidades dele. Porque, para além das metáforas sobre sujeira e degradação e do simbólico, corpos e histórias com deficiência existem.  Afinal, quando descrevemos, narramos sobre corpo nos referimos não somente a aspectos psicológicos, metafóricos ou imaginativos, há, em contrapartida, noções do que é corporalidade e, mais especificamente, do que é habitar ou ser um corpo estranho.

1 de junho de 2019

O leitor, suas leituras apaixonadas e sua voz



Andressa Fonseca da Silva 




O leitor, de Marko Keppler



“O objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor”.
(COMPAGNON)



Se parar para analisar, com tranquilidade, posso dizer que sou uma pessoa apaixonada pelo mundo e por suas particularidades. Há quem diga "deslumbrada", mas diariamente sou visitada por pequenas paixões e por uma pluralidade muito grande de sensações e pensamentos. Os realistas do século XIX costumavam dizer que a leitura dos romances era um mal na vida das mulheres, porque as deixava apaixonadas – possibilitava para elas devaneios e outras visões de mundo que não cabiam em seu dia a dia. Hoje, apaixonada que sou, não poderia discordar mais de que isso seja um mal. Acredito fielmente que muito da paixão que tenho pela vida, assim como muito do ser humano que sou, se despertou com a leitura.  Antes mesmo que eu pudesse ler para mim mesma, já mergulhava em narrativas de contos de fadas – bastante clichê. Não me lembro do momento exato em que algo se moveu em mim... mas lembro bem que minha mãe, pedagoga, desde sempre estava me envolvendo em historinhas das mais emocionantes, enquanto meu pai me ganhava com gibis da Turma da Mônica. Até mesmo os filmes – principalmente musicais –, todos eles me captaram desde sempre para as possibilidades que abarcam uma história a ser contada... e eu gostava de imaginá-las. 
Ao começar devorando os livros infantis e as revistinhas, na maioria das vezes, fui capaz de me encontrar naquelas narrativas – nas mais simples e nas mais imaginativas – das quais eu sonhava efetivamente em fazer parte. 
Ao passo em que fui crescendo, fui caminhando para a leitura dos primeiros grandes volumes (mais de 100 páginas, uau!) e chegando no maior divisor de águas da minha vida de leitora: a saga Crepúsculo. Uma menina apaixonada pelos clássicos da Disney, com certeza se apaixonaria pelo romântico Edward... Mais um clichê. O primeiro livro que li da saga foi o Amanhecer (livro que a encerra) – por pura ansiedade em saber como acabava a história, até então, conhecida somente pela ótica cinematográfica. De 100 páginas, pulei logo para as 600, que foram consumidas num piscar de olhos. Com as 600 páginas de Stephenie Meyer lidas, me senti muito poderosa sobre minhas habilidades de leitura... Agora eu poderia ler qualquer coisa!
Entretanto, foi aí que me deparei com uma realidade diferente da que eu havia pensado: quando os romances da escola começaram a chegar. Pouco me lembro das obras que era obrigada a ler... Mas muito me lembro de cada best seller que li nesse caminho: Depois de Crepúsculo, mergulhei em Jogos Vorazes, A culpa é das estrelas, Querido John e muitos outros (muitos mesmo). Pouco sucesso teve a escola em influenciar no meu hábito de leitura durante o Ensino Fundamental: lia o necessário para fins necessários.
No Ensino Médio, ao me deparar com as obras do PAS, me vi obrigada a, no mínimo, me esforçar para apreciar os chamados "clássicos" literários. Estranhamente, eu me interessava pelos conteúdos das aulas de literatura e era boa neles, mas apesar disso, a leitura das obras era sempre dolorida... Como era possível? Gostar tanto de ler tantos livros, e alguns – muitas vezes, bem menores em relação aos que eu lia – s erem nada mais do que um sacrifício... Para gostar, para entender, para apreciar. Pouco a pouco, algumas autoras me conquistaram timidamente: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Cecília Meireles, por exemplo, ganharam meu coração e me fizeram acreditar que o mundo da literatura brasileira poderia ser tão prazeroso quanto o da literatura estrangeira que eu estava acostumada. 
Por acaso, as Letras acabaram por me conquistar e, ao entrar na graduação, já tinha a certeza de que, a partir de agora, eu teria que abandonar os best sellers e me tornar amante apaixonada dos (até então) ainda temidos cânones. Em uma das primeiras aulas de Introdução à teoria da literatura, a professora Patrícia Nakagome – hoje, minha professora orientadora – nos entregou um questionário, do qual me recordo vagamente, mas tenho certeza de que perguntava sobre nossas leituras favoritas. Só pude pensar "meu Deus!", como dizer para a professora de literatura da universidade que as minhas leituras favoritas – frequentes e espontâneas – iam de Crepúsculo a Jogos Vorazes, com visitas para John Green e Nicholas Sparks? Entretanto, que surpresa – eque incrível –, ela, prevendo nosso incômodo e o nosso esforço em trazermos as respostas “certas”, nos incentivou a escrevermos ali as obras que realmente falavam aos nossos corações.
Nesse momento, comecei a entender que nem tudo era – ou deveria ser – como eu pensava. Ao falarmos sobre um projeto de pesquisa, foi árdua a escolha de um objeto. Que tipo de obras poderiam ocupar esse espaço acadêmico? Que tipo de obras merecem ser discutidas ou não? Por quê? Todas essas angústias, até então, ainda me limitavam na crença de que, por mais que eu os defendesse com unhas e dentes, meus best sellers não eram parte desse mundo – algo que eu lutava para não aceitar. E, exatamente daí, surgiu meu objeto. Se eu era uma leitora assídua, com experiências reais de leitura que com certeza se manifestaram ativamente na minha concepção de mundo, por que essa leitura não seria válida? Vi, então, minha angústia se materializar em uma pesquisa. 
          Estudar sobre a leitura me fez entender que muitos dos problemas com os quais me deparei nas leituras propostas pela escola e pela universidade não estavam em mim ou nos meus colegas. O ato de ler mostra-se muito mais complexo do que uma decodificação racional das palavras. Vincent Jouve – em A leitura (2004) – trata a leitura como multifacetada, e dentro disso, a destaca enquanto um processo afetivo, que envolve (sim!) certa paixão. Sabendo que a atividade de leitura envolve um leitor real cheio das sua concepções de mundo e significados para somar ao texto, é preciso aceitar que cada leitor se relaciona com cada obra de uma maneira bastante íntima e particular.
          Com a supervalorização dos cânones literários, as disciplinas escolares acabam por incorporá-los nos conteúdos de literatura como obras clássicas que merecem ser lidas e estudadas de geração em geração. O que os moldes escolares, assim como a crítica literária, não observam é o desinteresse do leitor jovem por esses cânones. Ou, na verdade, até observam, mas consideram como uma defasagem intelectual ao passo em que desvalorizam por completo as leituras que de fato conquistam os jovens.
          Nas escolas muito se fala sobre a importância de ler. Todavia, as práticas de incentivo à leitura muito mais distanciam o leitor do apresso por ela quando restringem o estudo de literatura à obras de linguagem complexa, arcaica e com histórias que pouco dialogam com ele. Em contrapartida, não é difícil constatar que o tempo todo esse leitor está em contato com best sellers, leituras atuais que dialogam com ele, e despertam a imaginação de maneira cativante. Até mesmo pela facilidade da difusão dos enredos nas redes sociais e filmes.
          O fato de a leitura dos best sellers não possuir espaço diante da crítica literária e sequer diante das instituições de ensino, enquanto os cânones são levados para a sala de aula constantemente, provoca nesses jovens leitores em formação, muitas vezes, uma impressão errônea e negativa das atividades de leitura.
Mas, se muitos deles possuem um repertório próprio de leituras, como jogar fora as experiências desses leitores? Como dizer que a leitura de um livro com o qual eles possuem pouquíssima afinidade tem mais valor do que a de um livro que levanta questões cheias de sentido para eles? Desses questionamentos – me baseando na afirmação de Antoine Compagnon de que a obra literária só se concretiza a partir da leitura (1999) – surgiu minha principal aposta: escutar leitor. Não o leitor inscrito na obra, não o leitor que corresponde às expectativas da crítica, não o leitor que sabe dar as “respostas certas” nas aulas de literatura, mas o leitor real, empírico. O leitor que lê o que gosta, porque gosta e porque enxerga algo especial naquela leitura. Seja algo que o representa, que se afasta dele por completo, ou que desperte nele novas paixões e olhares.
          A lacuna da necessidade de ouvir o leitor que se abriu no meio do meu plano de trabalho vinha não só do que eu estava estudando. Vinha de mim. Descobri um espaço que é meu, que é a minha aposta. É a minha experiência mostrando que quem começa lendo Crepúsculo, é possível que logo esteja lendo Morro dos Ventos Uivantes. Que alguém que lê A culpa é das estrelas, pode ser conquistada por As meninas. Mas não só isso, – e aqui justifico minha escolha de obras para trabalhar na pesquisa em uma atividade com alunos do Ensino Médio – a minha paixão particular pela leitura mostra que quem lê Jogos Vorazes reflete acerca de questões sociais profundas tanto quanto – e, em alguns caso, talvez mais – que alguém que lê O cortiço.
O leitor com o livro em mãos é muito mais que um ser passivo diante das ideias de um autor: ele é ativo e atribui, a cada leitura, um novo significado para aquelas palavras por meio de suas vivências, seus conhecimentos e sentimentos. E se esse leitor real atribui valor a uma determinada obra, – mesmo um clichê – é porque, de alguma forma, a obra é capaz de estabelecer diálogo com ele e se concretiza diante dessa leitura. Logo, para que o processo se torne efetivo, é preciso que ele se enxergue como protagonista e agente do próprio processo de formação. É preciso que ele se apaixone pelas palavras, pelas narrativas, ou que seja capaz de recusá-las firmemente. É preciso dar voz e ação a esse leitor.


Referências:

JOUVE, V. A leitura. São Paulo: Unesp, 2004.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1999.