15 de junho de 2019

Somos sementes e granadas

  Marina Farias Rebelo


    Faço o fogo e carrego a fogueira, xarpigrafia do artista visual Mulambö[1]


muito pouco quase nada do que se diga serve de atenuante para a dor que cada corpo-mente preta sentiu ao saber da morte do músico preto no domingo, dez de abril de dois mil e dezenove. um corpo perfurado oitenta vezes por ser o corpo racializado num mundo em que raça é uma marca no corpo marcado e colonizado pela violência e pela guerra. poucos dias depois no mesmo rio de janeiro, uma das maiores cidades do planeta, outro corpo preto é alvo de fuzilamento quando, em meio ao dilúvio, caixote pós caixote minuciosamente organizados por mãos pretas acostumadas à rua permitiram que a senhora branca idosa continuasse incólume o seu caminho com os pés secos preservados de tocarem a água suja que corria junto ao meio fio e encharcava os pés pretos descalços do flanelinha. o filósofo camaronês diz que existem muitos jeitos de morrer para além da morte do corpo físico. aqui no brasil a gente sabe que pode ser de bala na pele, de arrastamento pelo carro da polícia, de repetição do padrão de dominação, de mata-leão. corpos pretos muitas vezes morrem, mas outras muitas morrem e continuam vivos morrendo cada dia um pouco ao ver na mão da mãe preta o uniforme da escola sujo de sangue. não há o que se diga, há quase nada que se faça pra arrancar do peito preto, que se diz preto e por isso é preto diante de brancos e outros pretos, esse mal. o mundo esse que taí não se ajeita não tem jeito só há o jeito desse mundo findar e outro ser mundo criado e parece que recentemente se descobriu que deusa é uma mulher preta.
(brasil, abril de 2019)

Em meados de 2018, uma amiga muito querida e próxima, sabendo da minha constante e cada vez maior inquietação com os efeitos do racismo sentidos por mim em minhas relações afetivas, me mostrou o vídeo[2] de um jovem rapaz, psicólogo, negro, que acabara de defender a sua dissertação de mestrado e participava de um evento na Universidade Federal Fluminense (UFF), apresentando uma parte de seu texto sobre psicologia preta e produção de conhecimento decolonial. Não tenho formação em psicologia e pouco li sobre psicanálise, mas os 17 minutos da fala de Lucas Veiga me deixaram profundamente tocada, não apenas pelo jeito sereno e concentrado que ele tinha de se expressar e criar metáforas simples para conceitos complexos das teorias de Freud e Lacan, mas também pelo contraste entre essa serenidade e a proposta radical de implosão do mundo, que, referenciada em Frantz Fanon[3], estava contida em seu discurso. Passei alguns dias revolvida com o que ouvi, particularmente detida em um pensamento de Lucas: nós, negras e negros, carregamos em nossos corpos a semente do porvir de um novo mundo e a granada para implosão do mundo tal qual conhecemos hoje. O vídeo, datado de 17 de maio de 2018, instaurou em mim o entendimento dessa contradição e, desde então, a possibilidade de ruir o mundo me atravessa olhos a cada leitura que tenho feito e a cada movimento que planejo e executo em direção à consciência dos espaços que ocupo como uma mulher negra no ambiente acadêmico.
Alguns meses depois do episódio do vídeo, ao realizar a matrícula em disciplinas para obter os créditos exigidos pelo doutorado em literatura, me inscrevi num curso cuja ementa girava em torno da discussão sobre racismo e necropolítica, e estava baseada na obra Políticas da Inimizade[4], do filósofo camaronês Achille Mbembe. Ao falar sobre as características que aludem à modernidade, Mbembe lista quatro aspectos que constituem a era moderna, sendo o primeiro deles - e o que mais me interessou analisar - os movimentos de repovoamento da Terra a partir das relações estabelecidas entre o império e as colônias na modernidade, principalmente no tocante à lógica de povoamento e exploração construída com base na escravidão. Se pensamos no Brasil a partir da reflexão de Mbembe, inclusive quando ele aborda o conceito de o “corpo noturno da democracia” (2017, p. 31), percebemos que a longevidade e particularidade do processo escravocrata brasileiro resultaram na democracia genocida vivenciada no país desde o seu erguimento como nação até os dias de hoje.
O processo de escravidão no Brasil teve especificidades e se diferenciou de outros regimes escravocratas das Américas. Uma das obras literárias mais importantes da literatura brasileira sobre esse período da história do país é Um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves. Publicado originalmente em 2006 pela editora Record, o livro é narrado e protagonizado por Kehinde, uma menina africana trazida escravizada ao Brasil no início do século XIX que passa toda a sua vida desvelando-se com suas memórias ao resistir e questionar o deslocamento geográfico a ela imposto, a diáspora forçada que a trouxe para ser parte do projeto de nação que se delineava na outra margem do atlântico negro. Essa deslocação, movimento que dá início à trajetória da personagem narradora, a coloca em constante batalha pelo não apagamento de suas raízes, pela manutenção de sua identidade e pelo entendimento sobre o seu lugar como uma mulher negra no processo de formação da nação brasileira.
Ao conhecermos a trajetória de Kehinde em seus múltiplos deslocamentos espaciais, temporais, subjetivos, uma questão se impõe à reflexão: quantos e quais movimentos de resgate de memória são necessários para a construção da identidade de uma mulher negra em meio ao processo de escravidão que tivemos no Brasil e que, em muitos aspectos, não pode ser considerado inteiramente finalizado? A escrita de uma mulher negra que optou por estruturar seu romance histórico, resultado de consistente pesquisa documental, sob o ponto de vista de outra mulher negra ainda que fruto de uma construção ficcional, foi também responsável por abrir as sendas do caminho que Gonçalves trilha agora como escritora reconhecida. A relação difusa entre autora e personagem, não é gratuita ou despretensiosa, mas sim parte fundamental de minha leitura, que considera o texto de Um defeito de cor como uma escrita de si, ainda que o livro não seja uma obra diarística ou autobiográfica.  As memórias de Kehinde, contadas por ela desde que era uma criança em África, são os fios da ancestralidade que a autora busca tecer para si mesma quando cria a trama vivida pela narradora e protagonista de seu romance, num exercício deliberado de autorrepresentação. Essa aproximação permite a Gonçalves, por meio de sua criação literária, e a Kehinde atráves de seu falar, reconstruírem reciprocamente uma identidade feminina negra tantas vezes negada a elas.
Todos os trajetos feitos pela protagonista, não apenas os externos e espaciais, mas também os internos e subjetivos, se conformam como a trilha seguida por ela e cujo destino final, porém jamais acabado, é a construção de sua identidade no novo espaço, a nova nação que habita. Uma identidade que, pela construção colonial do racismo, se constitui como insurgente, cerne de um sujeito desterritorializado, cuja ontologia se mostra irrealizável, nas palavras de Fanon (2008). Para pensar essa reflexão de forma material, são essenciais os objetos que a protagonista carrega durante sua vida – imagens de santos, bonecos de orixás e outras miudezas herdadas de sua mãe, avó, irmã – símbolos de sua necessidade de pertença ao seu passado. Estes pequenos objetos, ao ressignificarem o desejo de retorno à terra natal, se transformam, ainda que não conscientemente, em um confrontamento com o tempo e com a morte. Não apenas a sua, mas as mortes das mulheres que foram essenciais na trajetória da protagonista.  Neste pequeno trecho do livro, Kehinde fala da urgência que sente em poder realizar o culto aos orixás, de recuperar pequenas memórias de sua irmã gêmea morta, de, enfim, construir uma memória de si para reter uma memória do outro, no sentido de estar ciente sobre a sua própria morte.

A Nega Florinda disse que já sabia que eu precisava falar com ela e que podia ajudar. Contei como eu tinha chegado até ali e ela disse que isso já era um sinal de que os voduns e os orixás estavam comigo, mesmo que no momento eu não pudesse cultuá-los como mereciam, pois se eu tinha sobrevivido era porque havia uma importante missão a cumprir. (...) Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khesiobô, Legba, Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xaponã e Olokum.(...). A Nega Florinda foi embora prometendo me ajudar, primeiro com o pingente da Taiwo, depois com a estátua dos Ibêjis, as maiores urgências. As outras coisas chegariam cada qual a seu tempo, como tinha que ser naquele lugar onde fingíamos cultuar os santos dos brancos.[5]

Subjetividades, afetos e diáspora

A construção de uma subjetividade negra diaspórica significou, para os povos africanos, a saída de um lugar ao qual se pertencia para serem transitados para um novo território onde seu corpo foi sujeito à marcação por uma ideia de raça, de diferença; e sua individualidade cerceada do direito à vida e à humanidade. No processo de construção dessa alteridade, cuja referência é o homem branco europeu, e a guerra o método de submissão de corpos negros, a violência se torna natural, tanto para quem a exerce, como para quem a recebe, sendo vista como parte necessária e inevitável do dito processo civilizatório.
A urgência que a colonização e as práticas de subjugação de povos de África impõem para o reconhecimento de um inimigo encontram eco nos medos e paranoias que o corpo racializado provoca no sujeito racista, a partir do entendimento de que é o racismo quem produz a categoria de corpos racializados. Em outras palavras, pode-se afirmar que a crença de que existe um corpo marcado por uma raça é produto do racismo. O livro Baratas[6], da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, foi uma das leituras que fiz recentemente e que ganhou intensidade com o incremento das reflexões sobre a descolonização radical, proposta por Fanon, e da leitura do livro de Mbembe. Mukasonga, ao relatar o genocídio de milhares de pessoas da etnia tutsi pelas mãos de seus conterrâneos da etnia hutu, ocorrido em Ruanda no ano de 1994, exemplifica a reflexão trazida pelo filósofo sobre a construção do inimigo, tido como necessário para a manutenção de uma paz falseada pela controversa sensação de insegurança que as democracias perpetuam. Os hutus, ao assassinarem a sangue frio mais de 800 mil tutsis, estavam imbuídos da crença que os corpos tutsis eram o os corpos racializados naquele contexto. O inimigo era o outro, a quem se devia negar e destruir. A necessidade de destruição desse inimigo, alimentada continuamente pela negação de si mesmo, traz como consequência a constituição do inimigo através de um espelho. O sujeito olha para si mesmo e a imagem que ali se forma refletida é a dele como o seu inimigo. O relato autobiográfico da escritora ruandesa tenta dar uma dimensão da violência que a colonização informa aos corpos negros, projetando nesses corpos um auto-ódio destruidor de humanidades:
Da morte dos meus, só me restam buracos negros e fragmentos de horror. O que mais sofrer? Ignorar como foram mortos ou saber como os mataram? O terror do qual foram tomados, o horror que sofreram, às vezes é como se eu tivesse o dever de senti-los, às vezes é como se eu tivesse o dever de escapar. Não me resta nada a não ser a lancinante recriminação de estar viva em meio a todos os meus mortos. Mas o que é meu sofrimento, comparado ao que eles sofreram antes de obter de seus carrascos essa morte que, para eles, foi sua única libertação?[7]

Que tipo de existência se faz possível e é honestamente desejada depois de uma experiência de morte, não apenas do corpo físico, mas dessa subjetividade que, nas palavras de Mbembe, passa a existir como morta-viva? Como romper esse ciclo, de repetição da dor causada pelo racismo, e transformar o sofrimento em autocuidado, retirando do veneno o antídoto para a cura? Para Fanon, o restabelecimento do contato consigo e com o mundo é uma estratégia para o rompimento do ciclo de doenças e degenerações que decorrem das vivências racistas, não apenas as que causam injúrias físicas, mas também aquelas que provocam feridas subjetivas, emocionais. Seria necessário, então, o renascimento da pessoa adoecida pelo racismo. O renascimento desse paciente precisa, contudo, ser acompanhado de um renascimento do mundo.
Em constante diálogo com Fanon, e apesar de apontar um caminho de destruição do mundo (ou talvez justamente por isso), Lucas Veiga é um homem extremamente afetuoso e presente. Pude conhecê-lo e estar com ele há poucos dias, num desses encontros que a vida organiza e que parecem ser afortunadamente inevitáveis. Psicólogo clínico que tem se dedicado a estudar e aprofundar as bases teóricas para uma Psicologia Preta no Brasil, Veiga se debruça sobre como desvendar caminhos de cuidado para negritude enfrentar a violência racista e desmontar os seus efeitos. Um trabalho que reestabelece o senso de pertença de mulheres e homens negros, mobiliza afetos e aposta na reconstrução de laços. Nas palavras de Lucas, outro mundo torna-se possível: o aquilombamento cura.



Referências:
FANON, Frantz. Pele negras máscaras brancas. EDUFBA. Salvador, 2008.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro. Record, 2006.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Antígona. Lisboa, 2017.
SCHOLASTIQUE, Mukasonga. Baratas. Tradução de Elisa Nazarian. Editora Nós. São Paulo, 2018.

VEIGA, Lucas. Psicologia Preta: Como curar a negritude dos efeitos do racismo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BVquf1HY0eg&t=51s.


[1] Para conhecer mais do trabalho de Mulambö: https://joaodamotta.wixsite.com/mulambo

[2] VEIGA, Lucas. Psicologia Preta: Como curar a negritude dos efeitos do racismo. Disponível em

[3] FANON, Frantz. Pele negras máscaras brancas. EDUFBA. Salvador, 2008.
[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Lisboa: 2017, Antígona.
[5] GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro. Record, 2006. P. 83-84.
[6] SCHOLASTIQUE, Mukasonga. Baratas. Tradução de Elisa Nazarian. São Paulo. Editora Nós, 2018
[7] SCHOLASTIQUE, Op. Cit. p. 136

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