Marina Farias Rebelo
Faço o
fogo e carrego a fogueira, xarpigrafia do artista visual Mulambö[1]
muito pouco quase nada do que se diga
serve de atenuante para a dor que cada corpo-mente preta sentiu ao saber da morte
do músico preto no domingo, dez de abril de dois mil e dezenove. um corpo
perfurado oitenta vezes por ser o corpo racializado num mundo em que raça é uma
marca no corpo marcado e colonizado pela violência e pela guerra. poucos dias
depois no mesmo rio de janeiro, uma das maiores cidades do planeta, outro corpo
preto é alvo de fuzilamento quando, em meio ao dilúvio, caixote pós caixote minuciosamente
organizados por mãos pretas acostumadas à rua permitiram que a senhora branca
idosa continuasse incólume o seu caminho com os pés secos preservados de
tocarem a água suja que corria junto ao meio fio e encharcava os pés pretos
descalços do flanelinha. o filósofo camaronês diz que existem muitos jeitos de
morrer para além da morte do corpo físico. aqui no brasil a gente sabe que pode
ser de bala na pele, de arrastamento pelo carro da polícia, de repetição do
padrão de dominação, de mata-leão. corpos pretos muitas vezes morrem, mas
outras muitas morrem e continuam vivos morrendo cada dia um pouco ao ver na mão
da mãe preta o uniforme da escola sujo de sangue. não há o que se diga, há
quase nada que se faça pra arrancar do peito preto, que se diz preto e por isso
é preto diante de brancos e outros pretos, esse mal. o mundo esse que taí não
se ajeita não tem jeito só há o jeito desse mundo findar e outro ser mundo
criado e parece que recentemente se descobriu que deusa é uma mulher preta.
(brasil, abril de 2019)
Em meados de 2018, uma amiga
muito querida e próxima, sabendo da minha constante e cada vez maior inquietação
com os efeitos do racismo sentidos por mim em minhas relações afetivas, me
mostrou o vídeo[2]
de um jovem rapaz, psicólogo, negro, que acabara de defender a sua dissertação
de mestrado e participava de um evento na Universidade Federal Fluminense
(UFF), apresentando uma parte de seu texto sobre psicologia preta e produção de
conhecimento decolonial. Não tenho formação em psicologia e pouco li sobre
psicanálise, mas os 17 minutos da fala de Lucas Veiga me deixaram profundamente
tocada, não apenas pelo jeito sereno e concentrado que ele tinha de se
expressar e criar metáforas simples para conceitos complexos das teorias de
Freud e Lacan, mas também pelo contraste entre essa serenidade e a proposta radical
de implosão do mundo, que, referenciada em Frantz Fanon[3], estava contida em seu
discurso. Passei alguns dias revolvida com o que ouvi, particularmente detida
em um pensamento de Lucas: nós, negras e negros, carregamos em nossos corpos a
semente do porvir de um novo mundo e a granada para implosão do mundo tal qual
conhecemos hoje. O vídeo, datado de 17 de maio de 2018, instaurou em mim o
entendimento dessa contradição e, desde então, a possibilidade de ruir o mundo
me atravessa olhos a cada leitura que tenho feito e a cada movimento que planejo
e executo em direção à consciência dos espaços que ocupo como uma mulher negra
no ambiente acadêmico.
Alguns meses depois do
episódio do vídeo, ao realizar a matrícula em disciplinas para obter os
créditos exigidos pelo doutorado em literatura, me inscrevi num curso cuja
ementa girava em torno da discussão sobre racismo e necropolítica, e estava
baseada na obra Políticas da Inimizade[4],
do filósofo camaronês Achille Mbembe. Ao falar sobre as características que
aludem à modernidade, Mbembe lista quatro aspectos que constituem a era
moderna, sendo o primeiro deles - e o que mais me interessou analisar - os
movimentos de repovoamento da Terra a partir das relações estabelecidas entre o
império e as colônias na modernidade, principalmente no tocante à lógica de
povoamento e exploração construída com base na escravidão. Se pensamos no
Brasil a partir da reflexão de Mbembe, inclusive quando ele aborda o conceito
de o “corpo noturno da democracia” (2017, p. 31), percebemos que a longevidade
e particularidade do processo escravocrata brasileiro resultaram na democracia
genocida vivenciada no país desde o seu erguimento como nação até os dias de hoje.
O processo de escravidão no
Brasil teve especificidades e se diferenciou de outros regimes escravocratas
das Américas. Uma das obras literárias mais importantes da literatura
brasileira sobre esse período da história do país é Um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves. Publicado
originalmente em 2006 pela editora Record, o livro é narrado e protagonizado
por Kehinde, uma menina africana trazida escravizada ao Brasil no início do
século XIX que passa toda a sua vida desvelando-se com suas memórias ao
resistir e questionar o deslocamento geográfico a ela imposto, a diáspora
forçada que a trouxe para ser parte do projeto de nação que se delineava na
outra margem do atlântico negro. Essa deslocação, movimento que dá início à
trajetória da personagem narradora, a coloca em constante batalha pelo não
apagamento de suas raízes, pela manutenção de sua identidade e pelo entendimento
sobre o seu lugar como uma mulher negra no processo de formação da nação
brasileira.
Ao conhecermos a trajetória de Kehinde em seus múltiplos
deslocamentos espaciais, temporais, subjetivos, uma questão se impõe à
reflexão: quantos e quais movimentos de resgate de memória são necessários para
a construção da identidade de uma mulher negra em meio ao processo de
escravidão que tivemos no Brasil e que, em muitos aspectos, não pode ser
considerado inteiramente finalizado? A escrita de uma mulher negra que optou
por estruturar seu romance histórico, resultado de consistente pesquisa
documental, sob o ponto de vista de outra mulher negra ainda que fruto de uma
construção ficcional, foi também responsável por abrir as sendas do caminho que
Gonçalves trilha agora como escritora reconhecida. A relação difusa entre
autora e personagem, não é gratuita ou despretensiosa, mas sim parte
fundamental de minha leitura, que considera o texto de Um defeito de cor como uma escrita de si, ainda que o livro não
seja uma obra diarística ou autobiográfica.
As memórias de Kehinde, contadas por ela desde que era uma criança em
África, são os fios da ancestralidade que a autora busca tecer para si mesma quando
cria a trama vivida pela narradora e protagonista de seu romance, num exercício
deliberado de autorrepresentação. Essa aproximação permite a Gonçalves, por
meio de sua criação literária, e a Kehinde atráves de seu falar, reconstruírem
reciprocamente uma identidade feminina negra tantas vezes negada a elas.
Todos os trajetos feitos pela protagonista, não apenas os
externos e espaciais, mas também os internos e subjetivos, se conformam como a
trilha seguida por ela e cujo destino final, porém jamais acabado, é a
construção de sua identidade no novo espaço, a nova nação que habita. Uma
identidade que, pela construção colonial do racismo, se constitui como
insurgente, cerne de um sujeito desterritorializado, cuja ontologia se mostra
irrealizável, nas palavras de Fanon (2008). Para pensar essa reflexão de forma
material, são essenciais os objetos que a protagonista carrega durante sua vida
– imagens de santos, bonecos de orixás e outras miudezas herdadas de sua mãe,
avó, irmã – símbolos de sua necessidade de pertença ao seu passado. Estes
pequenos objetos, ao ressignificarem o desejo de retorno à terra natal, se
transformam, ainda que não conscientemente, em um confrontamento com o tempo e com
a morte. Não apenas a sua, mas as mortes das mulheres que foram essenciais na
trajetória da protagonista. Neste
pequeno trecho do livro, Kehinde fala da urgência que sente em poder realizar o
culto aos orixás, de recuperar pequenas memórias de sua irmã gêmea morta, de,
enfim, construir uma memória de si para reter uma memória do outro, no sentido
de estar ciente sobre a sua própria morte.
A Nega Florinda disse que já sabia que
eu precisava falar com ela e que podia ajudar. Contei como eu tinha chegado até
ali e ela disse que isso já era um sinal de que os voduns e os orixás estavam
comigo, mesmo que no momento eu não pudesse cultuá-los como mereciam, pois se
eu tinha sobrevivido era porque havia uma importante missão a cumprir. (...)
Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás para cultuar alguns voduns,
porque, na Bahia, Mawu, Khesiobô, Legba, Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu
eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xaponã e
Olokum.(...). A Nega Florinda foi embora prometendo me ajudar, primeiro com o
pingente da Taiwo, depois com a estátua dos Ibêjis, as maiores urgências. As
outras coisas chegariam cada qual a seu tempo, como tinha que ser naquele lugar
onde fingíamos cultuar os santos dos brancos.[5]
Subjetividades,
afetos e diáspora
A construção de uma
subjetividade negra diaspórica significou, para os povos africanos, a saída de
um lugar ao qual se pertencia para serem transitados para um novo território
onde seu corpo foi sujeito à marcação por uma ideia de raça, de diferença; e
sua individualidade cerceada do direito à vida e à humanidade. No processo de
construção dessa alteridade, cuja referência é o homem branco europeu, e a
guerra o método de submissão de corpos negros, a violência se torna natural,
tanto para quem a exerce, como para quem a recebe, sendo vista como parte
necessária e inevitável do dito processo civilizatório.
A urgência que a colonização e
as práticas de subjugação de povos de África impõem para o reconhecimento de um
inimigo encontram eco nos medos e paranoias que o corpo racializado provoca no
sujeito racista, a partir do entendimento de que é o racismo quem produz a
categoria de corpos racializados. Em outras palavras, pode-se afirmar que a crença
de que existe um corpo marcado por uma raça é produto do racismo. O livro Baratas[6],
da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, foi uma das leituras que fiz
recentemente e que ganhou intensidade com o incremento das reflexões sobre a
descolonização radical, proposta por Fanon, e da leitura do livro de Mbembe. Mukasonga,
ao relatar o genocídio de milhares de pessoas da etnia tutsi pelas mãos de seus
conterrâneos da etnia hutu, ocorrido em Ruanda no ano de 1994, exemplifica a
reflexão trazida pelo filósofo sobre a construção do inimigo, tido como
necessário para a manutenção de uma paz falseada pela controversa sensação de
insegurança que as democracias perpetuam. Os hutus, ao assassinarem a sangue
frio mais de 800 mil tutsis, estavam imbuídos da crença que os corpos tutsis
eram o os corpos racializados naquele contexto. O inimigo era o outro, a quem
se devia negar e destruir. A necessidade de destruição desse inimigo,
alimentada continuamente pela negação de si mesmo, traz como consequência a
constituição do inimigo através de um espelho. O sujeito olha para si mesmo e a
imagem que ali se forma refletida é a dele como o seu inimigo. O relato
autobiográfico da escritora ruandesa tenta dar uma dimensão da violência que a
colonização informa aos corpos negros, projetando nesses corpos um auto-ódio
destruidor de humanidades:
Da
morte dos meus, só me restam buracos negros e fragmentos de horror. O que mais
sofrer? Ignorar como foram mortos ou saber como os mataram? O terror do qual
foram tomados, o horror que sofreram, às vezes é como se eu tivesse o dever de
senti-los, às vezes é como se eu tivesse o dever de escapar. Não me resta nada
a não ser a lancinante recriminação de estar viva em meio a todos os meus
mortos. Mas o que é meu sofrimento, comparado ao que eles sofreram antes de
obter de seus carrascos essa morte que, para eles, foi sua única libertação?[7]
Que tipo de
existência se faz possível e é honestamente desejada depois de uma experiência
de morte, não apenas do corpo físico, mas dessa subjetividade que, nas palavras
de Mbembe, passa a existir como morta-viva? Como romper esse ciclo, de
repetição da dor causada pelo racismo, e transformar o sofrimento em
autocuidado, retirando do veneno o antídoto para a cura? Para Fanon, o
restabelecimento do contato consigo e com o mundo é uma estratégia para o
rompimento do ciclo de doenças e degenerações que decorrem das vivências
racistas, não apenas as que causam injúrias físicas, mas também aquelas que
provocam feridas subjetivas, emocionais. Seria necessário, então, o
renascimento da pessoa adoecida pelo racismo. O renascimento desse paciente precisa, contudo, ser
acompanhado de um renascimento do mundo.
Em constante diálogo com
Fanon, e apesar de apontar um caminho de destruição do mundo (ou talvez
justamente por isso), Lucas Veiga é um homem extremamente afetuoso e presente.
Pude conhecê-lo e estar com ele há poucos dias, num desses encontros que a vida
organiza e que parecem ser afortunadamente inevitáveis. Psicólogo clínico que
tem se dedicado a estudar e aprofundar as bases teóricas para uma Psicologia
Preta no Brasil, Veiga se debruça sobre como desvendar caminhos de cuidado para
negritude enfrentar a violência racista e desmontar os seus efeitos. Um
trabalho que reestabelece o senso de pertença de mulheres e homens negros,
mobiliza afetos e aposta na reconstrução de laços. Nas palavras de Lucas, outro
mundo torna-se possível: o aquilombamento cura.
Referências:
FANON,
Frantz. Pele negras máscaras brancas. EDUFBA. Salvador, 2008.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio
de Janeiro. Record, 2006.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Antígona. Lisboa,
2017.
SCHOLASTIQUE, Mukasonga.
Baratas. Tradução de Elisa Nazarian. Editora Nós. São Paulo, 2018.
VEIGA,
Lucas. Psicologia Preta: Como curar a
negritude dos efeitos do racismo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BVquf1HY0eg&t=51s.
[1] Para
conhecer mais do trabalho de Mulambö: https://joaodamotta.wixsite.com/mulambo
[2]
VEIGA, Lucas. Psicologia Preta: Como curar a negritude dos efeitos do
racismo. Disponível em
[3] FANON, Frantz. Pele negras máscaras brancas. EDUFBA.
Salvador, 2008.
[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Lisboa: 2017,
Antígona.
[5] GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro. Record,
2006. P. 83-84.
[6] SCHOLASTIQUE, Mukasonga. Baratas.
Tradução de Elisa Nazarian. São Paulo. Editora Nós, 2018
[7] SCHOLASTIQUE, Op. Cit. p. 136
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