Flávia de Castro Souza
But Truly I do Fear it, de Regina Parra[1]
You may
write me down in history
With your
bitter, twisted lies,
You may
trod me in the very dirt
But
still, like dust, I'll rise.
(Maya Angelou)
Começo
esse texto explicando como cheguei ao livro O
quarto branco (2019), de Gabriela Aguerre[2], romance brasileiro
contemporâneo. Para minhas pesquisas busco textos literários de autoria de
mulheres que tragam temáticas sobre o corpo. Entremeado ao tema está o da
maternidade. No caso de O quarto branco, o da não-maternidade. Li o livro em
poucas horas, é curto e intenso. O livro de estreia da autora, meio brasileira
meio uruguaia, tem alguns pontos em que a ficção se esbarra com a sua
biografia, ou vice-versa, como o fato de ter tido uma irmã gêmea que morreu
dias após o nascimento, ter nascido no Uruguai e vindo para o Brasil na
primeira infância, no período da ditadura ocorrida no país vizinho, e também
fragmentos de histórias de mulheres do seu convívio, com alguns acontecimentos
e conflitos próprios da geração de mulheres da atualidade. Em declarações
feitas por Gabriela Aguerre por ocasião do lançamento do livro, ela afirma que
se inspirou em sua própria vida, embora ela mesma alerte que não se trata de
uma autobiografia.
Comecei
a investigar os assuntos ao meu redor e escolhi como guia a história das
gêmeas. É um assunto que sempre me interessou, faz parte das minhas obsessões.
Sou gêmea, minha irmã gêmea morreu aos 3 meses, é um fator biográfico que
investigo com viés criativo. Mas não é uma autobiografia. Tem muito de
imaginativo no livro, mas é um assunto que me constitui.
(...)
Me
deixei atravessar por outras emoções, sentimentos, outras histórias. Sempre
pensando o que tenho a dizer e como essa personagem se coloca. Aos poucos, fui
entendendo a questão da descendência, como podemos nos dividir pra frente e pra
trás… É quase uma questão matemática, quem somos.[3]
Uma
das questões que me envolveu nessa leitura foi como a experiência da
maternidade está sendo representada nas artes, em especial na literatura, pelas
artistas mulheres. E ainda quais os reflexos do movimento feminista na vida
social das mulheres estão sendo representadas nas narrativas contemporâneas.
A
maternidade desde o contexto social do final dos anos 1960 até meados da década
de 1980, com o advento do feminismo, tornou-se pauta recorrente entre as
feministas e ocupou os círculos teóricos e políticos das ciências como um todo.
Desde a publicação do livro Segundo Sexo,
de Simone de Beauvoir, em 1949, questiona-se a função da maternidade, entre
outras pautas como a liberdade sexual, o uso de contraceptivos, o aborto etc. A
história do movimento feminista se desenvolve por etapas, primeiro passa pelas
reivindicações ao igualitarismo, depois centraliza nas mulheres como sujeito,
em seguida reforça os elementos para a politização das questões privadas, e
toda essa evolução culmina no feminismo contemporâneo. Em um primeiro momento,
a maternidade foi considerada pela crítica feminista como o elemento-chave para
explicar a dominação masculina sobre a feminina. Depois, num segundo momento, a
maternidade passou a ser valorizada como uma forma de poder da mulher e de
recuperação de um saber feminino que os homens jamais teriam acesso. Já em um
terceiro momento, com o avanço das novas tecnologias conceptivas, a dominação
masculina sobre a feminina passa a ser explicada por fatores sociais e não
biológicos. A partir dos estudos das ciências sociais e do desenvolvimento do conceito
de gênero é que a maternidade passa a ser abordada em suas múltiplas facetas,
desde forma de opressão à realização feminina, revelando assim que a temática
pode ter inúmeras interpretações. A perspectiva de gênero possibilitou também a
compreensão de que a maternidade é um símbolo histórico, cultural e político
construído a partir das relações de poder e de dominação de um dos sexos sobre
o outro[4].
No
artigo “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”[5], de Regina Dalcastagnè, me
chamou a atenção o apontamento da pesquisa realizada sobre os romances
brasileiros contemporâneos de dois períodos, de 1965 a 1979 e de 1990 a 2004, a
ausência de temáticas sobre aborto, infertilidade e violência doméstica,
inclusive entre as autoras:
Parece
ser mais fácil atacar os tabus relacionados à sexualidade feminina (...) do que
representar, por exemplo, o sentimento de perda causado por um aborto
voluntário, ou mesmo involuntário, bem como os riscos e o estigma que pesa
sobre aquelas que passaram pela experiência, comum entre tantas mulheres. (p.
61)
Passaram-se
quinze anos do período pesquisado por Regina Dalcastagnè e, hoje, em 2019,
temos alguns romances brasileiros que tratam dessas temáticas antes silenciadas.
O quarto branco é um deles. Além do
aborto involuntário, ele trata também de problemas com a fertilidade da mulher
madura. A idade reprodutiva da mulher é um tabu social
que quase não encontra representação na literatura, por isso talvez tenha me
instigado a leitura e a breve análise da obra. É importante ressaltar que as abordagens
de gênero e feminista contribuem para a compreensão da questão da maternidade
no contexto social contemporâneo.
A história de O quarto branco inicia com um
choro individual que é ao mesmo tempo coletivo, “de mil mulheres” (p. 10), um
abismo, um oco, um diagnóstico: “não posso mais ter filhos” (p. 9) e termina
com um silêncio, uma despedida, uma tranquilidade. A protagonista Gloria narra sua
busca por respostas para situações suscetíveis da vida, narra a experiência dos
lutos enfrentados, do aborto espontâneo que precede a descoberta da
infertilidade, da morte incompreensível da irmã gêmea, e da morte já anunciada
do pai, após um tratamento fracassado contra um câncer. Toda a narrativa
decorre em alguns dias, desde a descoberta da infertilidade, uma viagem rápida ao
Uruguai, até a morte do pai. A narradora recorre a fragmentos de memórias distantes,
como episódios da infância, de viagens de férias, dos encontros com a mãe ou com
o pai e a madrasta, e de outras memórias mais recentes, como da cena em que é
demitida do emprego e ainda precisa fazer um exame demissional, das conversas com
as amigas e da rotina com o marido.
O mote da narrativa é a
maternidade na maturidade. A protagonista tem por volta de quarenta anos e,
após um aborto espontâneo, descobre que não pode mais engravidar. Gloria recebe
o diagnóstico a partir de um exame de dosagem do
hormônio antimülleriano
que serve para avaliar a reserva ovariana, por conta da idade madura ela
confirma a infertilidade. Me arrisco a afirmar que pela aproximação da idade da
autora com a da protagonista de O quarto
branco haveria uma familiaridade para tratar dos temas do aborto e da
infertilidade, caros às mulheres, embora não seja relevante para a análise do
romance nenhuma experiência íntima de Gabriela Aguerre. Apesar da coincidência,
proposital ou não, a personagem Gloria nasceu no mesmo ano da autora, em 1974, a
minha especulação é de que a perspectiva social da mulher pode levá-la a criar
personagens femininas mais plurais, minuciosas e complexas, com abordagens feministas,
muitas vezes ignoradas pelos autores homens.
A questão da
maternidade é bastante presente na obra de Gabriela Aguerre. Entremeada à narrativa
de Gloria ela vai esmiuçando várias histórias de outras personagens
relacionadas ao tema, mostrando como se trata de assunto delicado, profundo e
complexo, com relatos de experiências individuais, com manifestações de
incertezas frequentes, próprias das mulheres da contemporaneidade. A narradora
reflete sobre uma conversa com as amigas sobre ter ou não filhos, todas com
idade próxima aos quarenta anos: “cada qual com sua condição diferente mas
parecida, a questão: sim ou não? sim mas quando? não, mas por quê?” (p. 48).
A narradora Gloria
conta em detalhes como se deu o aborto involuntário que ela sofreu, são cenas
descritivas e imagéticas que fazem o(a) leitor(a) sentir a dor da experiência
daquela mulher:
(...) eu consigo
me levantar e ele vai comigo até o banheiro, e lá se termina de fazer o que
começava a ter sido feito, o lixinho do banheiro se enchendo de papéis densos,
vermelhos e pesados, e em uma dessas vezes eu vejo, o que não tinha forma ainda
e era quase uma ideia abstrata, o amor em forma de ideia e coisa concreta, que
chamamos de grão, depois de arroz, depois de coisinha. Vejo a forma do que não
tinha forma ainda e volto culpada para a cama. Eu dei descarga, eu disse, eu
dei descarga. (...)
Eu carrego um filho
morto mas sinto imenso amor por ele (...) mas morto diz muito menos para mim do
que filho. Então espero docemente aquele tempo em que o corpo pede para fazer o
que devia. Conselho médico: toma o tempo do corpo. Nós aceitamos, achamos que
ia ser melhor assim. Ainda fomos para lá ouvir o coraçãozinho bater, mas não
ouvimos nada, e por um momento achamos que era o filhinho brincando de
esconde-esconde. (p. 39-40)
Gloria representa
muitas mulheres que já passaram pela perda de uma gravidez e que ficaram,
muitas vezes, reservadas à memória exclusiva dessas mães. De acordo com o
artigo “Idade materna: resultados perinatais e via de parto” [6], de João Luiz de Carvalho
Pinto e Silva e Fernanda Garanhani de Castro Surita, o risco de abortamento espontâneo
chega a 25% nas mulheres entre 35 e 40 anos e a 51% nas mulheres com mais de 40
anos.
Em outro momento da
narrativa, Gloria repassa na memória um diálogo com a amiga Teresa que diz: “eu
também passei por isso” (p. 39). Os abortos espontâneos são mais recorrentes na
vida social de mulheres do que eu, como leiga, sou capaz de prever. A
personagem Teresa, diferente de Gloria, acaba por engravidar novamente: “Teresa
tinha passado pelo mesmo que eu. Teresa tinha sobrevivido, bem até, e depois
veio o Tom” (p.39). A personagem convive
com a experiência da amiga, abre uma brecha no seu sofrimento para usufruir
daquela relação mãe e filho:
Ver Tom a cada
semana é a única concessão que faço à
multidão de mães ao meu redor: todas as amigas, as amigas das amigas, a
vizinhança que engravida e empurra carrinhos de bebê na praça, no parque, na
calçada: eu não posso. Eu não posso lidar com isso agora (p. 39)
Uma outra experiência
narrada por Gloria diz respeito à outra amiga, Beatriz, que cheia de incertezas
sobre ser ou não mãe, decide por um aborto voluntário:
Continuo
caminhando pela rua plana, falo com
Beatriz ao celular. Ela está angustiada. Descobriu que está grávida e
ainda nao contou ao marido: quer que seja no momento ideal, que não chega, ele
está estranho, parece que esconde alguma coisa. Ela me pede para que ligue para
a Paula, que já se decidiu por um aborto: não confia no cara, não quer um corpo
estranho dentro do corpo dela, não quer ser mãe, mas está presa a uma cama
desde que fez o teste de farmácia e não consegue se levantar. (p. 48)
Apesar de não julgá-la,
Gloria não é capaz de auxiliá-la a realizar o aborto e tampouco consegue explicar
seus motivos, devido ao turbilhão de emoções que vêm à tona ao tratar do tema
da maternidade, ainda sendo processado pela personagem através do seu luto.
Para
além do texto escrito, a imagem da capa de O
quarto branco me chamou bastante a atenção. Pesquisei sobre a obra e a vida
da artista plástica Regina Parra, uma jovem paulistana. A imagem corresponde a
uma das cinco pinturas, óleo sobre papel, da série “Tenho medo que sim”, de
2018. A pintura de uma mulher apertando seu próprio pescoço, num ato de
auto-estrangulamento, causa a sensação de falta de ar, de angústia, de dor,
exatamente os sentimentos transmitidos durante boa parte da leitura da história
da personagem Gloria. A escolha de capa da edição da Todavia foi tão perfeita
que a “coincidência” não termina por aqui. Outro trabalho de Regina Parra que
constitui sua obra é intitulado “Eu me levanto” com inspiração no poema “Still I Rise”, de Maya Angelou. A trajetória de
vida da artista plástica que passou cinco
anos buscando a cura para uma doença grave e rara que a acometeu, levando-a a
dores intensas no corpo e a uma fraqueza muscular que a mantinha quase sempre
sentada ou deitada, também serviu de inspiração para a sua criação artística.
Após um tratamento de cinco anos, hoje já curada, a artista revela em
entrevista à Revista Trip[7] que
durante a doença passou a se interessar mais pelo seu próprio corpo: “Não tinha
como não pensar no corpo porque ele virou meio que um impedimento para tudo o
que eu queria fazer”. Durante o processo de
criação, para compor e nomear a série de autorretratos, Regina Parra diz ter se
inspirado ainda em Ofélia, personagem de Hamlet,
de William Sheakespeare. A frase “Tenho medo que sim” faz parte de um diálogo
entre Ofélia e o pai, Polônio, sobre um acesso de loucura e de violência
protagonizados por Hamlet contra a noiva. A artista plástica declarou ainda que
além de seu corpo, são objetos de seus estudos outros elementos como, por
exemplo, a dor, a morte e o feminismo. Na releitura da personagem Ofélia,
Regina Parra traz imagens ambíguas que oscilam entre a angústia e a luxúria.
As
duas artistas mencionadas, Gabriela Aguerre e Regina Parra, trouxeram, cada uma
à sua maneira, para suas respectivas obras, experiências relevantes acerca do
corpo feminino. São duas artistas contemporâneas, uma na literatura e outra nas
artes visuais, que desafiam as noções canônicas e redutoras impostas
pela sociedade à identidade feminina. Ambas as obras têm protagonistas fortes
que, mesmo permeadas pela dor e pelo sofrimento, causados por limitações
corporais, de idade ou de saúde física, conseguem encontrar saídas, alívios e
superações. Na minha pespectiva, o poema de Maya
Angelou que serviu de inspiração para a artista visual tem o poder de reverberar
a força de se reinventar que une as personagens Gloria de O quarto branco e a mulher da imagem do autorretrato de Regina
Parra e todas as mulheres que foram atravessadas por algum tipo de experiência
com o corpo e com a maternidade, seja por aborto, involuntário ou não, por
infertilidade, pelos estigmas e consequências que a condição de ser mulher traz
consigo.
Assim, a minha sensação
ao ler Gabriela Aguerre é que ela condensa sua prosa, oferece ao leitor uma
história melancólica, gera um deleite literário e transmite uma poesia em tons
suaves. A cor branca do título, mencionada em diversos momentos da narrativa,
pode sinalizar essa busca por purificação ou de um estado de espírito da
narradora em busca de descanso para o corpo e para a mente: “Um imenso branco
em volta de mim, silencioso, sereno, límpido, com paredes que se misturam do
chão ao teto, sem limites nem ângulos retos. Um quarto branco. Uma felicidade
do avesso, uma paz triste, uma paz” (p.117).
[1] Imagem retirada do sítio eletrônico da artista plástica: http://www.reginaparra.com.br/tenho-medo-que-sim. Acesso
em 5 de maio de 2019.
[2] AGUERRE, Gabriela. O quarto branco.
São Paulo: Todavia, 1ªed., 2019.
[3] http://blogs.correiobraziliense.com.br/leiodetudo/gabriela-aguerre-romance/. Acesso em 5 de maio de
2019.
[4] SCOTT, Joan. “Gênero: uma
categoria útil de análisa histórica”. Educação
e realidade, n.º 16, v. 2, Porto Alegre, jul-dez 1990.
[5] In: DALCASTANGÈ, Regina e
LEAL, Virginia Maria Vasconcelos (org.). Deslocamentos
de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Editora
Horizonte, 2010.
[6] SILVA,
João Luiz de Carvalho Pinto e SURITA , Fernanda Garanhani de Castro. “Idade
materna: resultados perinatais e via de parto”. Acesso em http://www.scielo.br/pdf/rbgo/v31n7/v31n7a01.pdf.
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