22 de junho de 2019

A mulher de 40: uma análise de O quarto branco, de Gabriela Aguerre

 Flávia de Castro Souza



But Truly I do Fear it, de Regina Parra[1]



You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I'll rise.
(Maya Angelou)



Começo esse texto explicando como cheguei ao livro O quarto branco (2019), de Gabriela Aguerre[2], romance brasileiro contemporâneo. Para minhas pesquisas busco textos literários de autoria de mulheres que tragam temáticas sobre o corpo. Entremeado ao tema está o da maternidade. No caso de O quarto branco, o da não-maternidade. Li o livro em poucas horas, é curto e intenso. O livro de estreia da autora, meio brasileira meio uruguaia, tem alguns pontos em que a ficção se esbarra com a sua biografia, ou vice-versa, como o fato de ter tido uma irmã gêmea que morreu dias após o nascimento, ter nascido no Uruguai e vindo para o Brasil na primeira infância, no período da ditadura ocorrida no país vizinho, e também fragmentos de histórias de mulheres do seu convívio, com alguns acontecimentos e conflitos próprios da geração de mulheres da atualidade. Em declarações feitas por Gabriela Aguerre por ocasião do lançamento do livro, ela afirma que se inspirou em sua própria vida, embora ela mesma alerte que não se trata de uma autobiografia.

Comecei a investigar os assuntos ao meu redor e escolhi como guia a história das gêmeas. É um assunto que sempre me interessou, faz parte das minhas obsessões. Sou gêmea, minha irmã gêmea morreu aos 3 meses, é um fator biográfico que investigo com viés criativo. Mas não é uma autobiografia. Tem muito de imaginativo no livro, mas é um assunto que me constitui.
(...)
Me deixei atravessar por outras emoções, sentimentos, outras histórias. Sempre pensando o que tenho a dizer e como essa personagem se coloca. Aos poucos, fui entendendo a questão da descendência, como podemos nos dividir pra frente e pra trás… É quase uma questão matemática, quem somos.[3]

Uma das questões que me envolveu nessa leitura foi como a experiência da maternidade está sendo representada nas artes, em especial na literatura, pelas artistas mulheres. E ainda quais os reflexos do movimento feminista na vida social das mulheres estão sendo representadas nas narrativas contemporâneas.
A maternidade desde o contexto social do final dos anos 1960 até meados da década de 1980, com o advento do feminismo, tornou-se pauta recorrente entre as feministas e ocupou os círculos teóricos e políticos das ciências como um todo. Desde a publicação do livro Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, em 1949, questiona-se a função da maternidade, entre outras pautas como a liberdade sexual, o uso de contraceptivos, o aborto etc. A história do movimento feminista se desenvolve por etapas, primeiro passa pelas reivindicações ao igualitarismo, depois centraliza nas mulheres como sujeito, em seguida reforça os elementos para a politização das questões privadas, e toda essa evolução culmina no feminismo contemporâneo. Em um primeiro momento, a maternidade foi considerada pela crítica feminista como o elemento-chave para explicar a dominação masculina sobre a feminina. Depois, num segundo momento, a maternidade passou a ser valorizada como uma forma de poder da mulher e de recuperação de um saber feminino que os homens jamais teriam acesso. Já em um terceiro momento, com o avanço das novas tecnologias conceptivas, a dominação masculina sobre a feminina passa a ser explicada por fatores sociais e não biológicos. A partir dos estudos das ciências sociais e do desenvolvimento do conceito de gênero é que a maternidade passa a ser abordada em suas múltiplas facetas, desde forma de opressão à realização feminina, revelando assim que a temática pode ter inúmeras interpretações. A perspectiva de gênero possibilitou também a compreensão de que a maternidade é um símbolo histórico, cultural e político construído a partir das relações de poder e de dominação de um dos sexos sobre o outro[4].
No artigo “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”[5], de Regina Dalcastagnè, me chamou a atenção o apontamento da pesquisa realizada sobre os romances brasileiros contemporâneos de dois períodos, de 1965 a 1979 e de 1990 a 2004, a ausência de temáticas sobre aborto, infertilidade e violência doméstica, inclusive entre as autoras:

Parece ser mais fácil atacar os tabus relacionados à sexualidade feminina (...) do que representar, por exemplo, o sentimento de perda causado por um aborto voluntário, ou mesmo involuntário, bem como os riscos e o estigma que pesa sobre aquelas que passaram pela experiência, comum entre tantas mulheres. (p. 61)

Passaram-se quinze anos do período pesquisado por Regina Dalcastagnè e, hoje, em 2019, temos alguns romances brasileiros que tratam dessas temáticas antes silenciadas. O quarto branco é um deles. Além do aborto involuntário, ele trata também de problemas com a fertilidade da mulher madura. A idade reprodutiva da mulher é um tabu social que quase não encontra representação na literatura, por isso talvez tenha me instigado a leitura e a breve análise da obra. É importante ressaltar que as abordagens de gênero e feminista contribuem para a compreensão da questão da maternidade no contexto social contemporâneo.
A história de O quarto branco inicia com um choro individual que é ao mesmo tempo coletivo, “de mil mulheres” (p. 10), um abismo, um oco, um diagnóstico: “não posso mais ter filhos” (p. 9) e termina com um silêncio, uma despedida, uma tranquilidade. A protagonista Gloria narra sua busca por respostas para situações suscetíveis da vida, narra a experiência dos lutos enfrentados, do aborto espontâneo que precede a descoberta da infertilidade, da morte incompreensível da irmã gêmea, e da morte já anunciada do pai, após um tratamento fracassado contra um câncer. Toda a narrativa decorre em alguns dias, desde a descoberta da infertilidade, uma viagem rápida ao Uruguai, até a morte do pai. A narradora recorre a fragmentos de memórias distantes, como episódios da infância, de viagens de férias, dos encontros com a mãe ou com o pai e a madrasta, e de outras memórias mais recentes, como da cena em que é demitida do emprego e ainda precisa fazer um exame demissional, das conversas com as amigas e da rotina com o marido.
O mote da narrativa é a maternidade na maturidade. A protagonista tem por volta de quarenta anos e, após um aborto espontâneo, descobre que não pode mais engravidar. Gloria recebe o diagnóstico a partir de um exame de dosagem do hormônio antimülleriano que serve para avaliar a reserva ovariana, por conta da idade madura ela confirma a infertilidade. Me arrisco a afirmar que pela aproximação da idade da autora com a da protagonista de O quarto branco haveria uma familiaridade para tratar dos temas do aborto e da infertilidade, caros às mulheres, embora não seja relevante para a análise do romance nenhuma experiência íntima de Gabriela Aguerre. Apesar da coincidência, proposital ou não, a personagem Gloria nasceu no mesmo ano da autora, em 1974, a minha especulação é de que a perspectiva social da mulher pode levá-la a criar personagens femininas mais plurais, minuciosas e complexas, com abordagens feministas, muitas vezes ignoradas pelos autores homens.
A questão da maternidade é bastante presente na obra de Gabriela Aguerre. Entremeada à narrativa de Gloria ela vai esmiuçando várias histórias de outras personagens relacionadas ao tema, mostrando como se trata de assunto delicado, profundo e complexo, com relatos de experiências individuais, com manifestações de incertezas frequentes, próprias das mulheres da contemporaneidade. A narradora reflete sobre uma conversa com as amigas sobre ter ou não filhos, todas com idade próxima aos quarenta anos: “cada qual com sua condição diferente mas parecida, a questão: sim ou não? sim mas quando? não, mas por quê?” (p. 48).
A narradora Gloria conta em detalhes como se deu o aborto involuntário que ela sofreu, são cenas descritivas e imagéticas que fazem o(a) leitor(a) sentir a dor da experiência daquela mulher:

(...) eu consigo me levantar e ele vai comigo até o banheiro, e lá se termina de fazer o que começava a ter sido feito, o lixinho do banheiro se enchendo de papéis densos, vermelhos e pesados, e em uma dessas vezes eu vejo, o que não tinha forma ainda e era quase uma ideia abstrata, o amor em forma de ideia e coisa concreta, que chamamos de grão, depois de arroz, depois de coisinha. Vejo a forma do que não tinha forma ainda e volto culpada para a cama. Eu dei descarga, eu disse, eu dei descarga. (...)
Eu carrego um filho morto mas sinto imenso amor por ele (...) mas morto diz muito menos para mim do que filho. Então espero docemente aquele tempo em que o corpo pede para fazer o que devia. Conselho médico: toma o tempo do corpo. Nós aceitamos, achamos que ia ser melhor assim. Ainda fomos para lá ouvir o coraçãozinho bater, mas não ouvimos nada, e por um momento achamos que era o filhinho brincando de esconde-esconde. (p. 39-40)

Gloria representa muitas mulheres que já passaram pela perda de uma gravidez e que ficaram, muitas vezes, reservadas à memória exclusiva dessas mães. De acordo com o artigo “Idade materna: resultados perinatais e via de parto” [6], de João Luiz de Carvalho Pinto e Silva e Fernanda Garanhani de Castro Surita, o risco de abortamento espontâneo chega a 25% nas mulheres entre 35 e 40 anos e a 51% nas mulheres com mais de 40 anos.
Em outro momento da narrativa, Gloria repassa na memória um diálogo com a amiga Teresa que diz: “eu também passei por isso” (p. 39). Os abortos espontâneos são mais recorrentes na vida social de mulheres do que eu, como leiga, sou capaz de prever. A personagem Teresa, diferente de Gloria, acaba por engravidar novamente: “Teresa tinha passado pelo mesmo que eu. Teresa tinha sobrevivido, bem até, e depois veio o Tom” (p.39).  A personagem convive com a experiência da amiga, abre uma brecha no seu sofrimento para usufruir daquela relação mãe e filho:

Ver Tom a cada semana é a única  concessão que faço à multidão de mães ao meu redor: todas as amigas, as amigas das amigas, a vizinhança que engravida e empurra carrinhos de bebê na praça, no parque, na calçada: eu não posso. Eu não posso lidar com isso agora (p. 39)

Uma outra experiência narrada por Gloria diz respeito à outra amiga, Beatriz, que cheia de incertezas sobre ser ou não mãe, decide por um aborto voluntário:

Continuo caminhando pela rua plana, falo com  Beatriz ao celular. Ela está angustiada. Descobriu que está grávida e ainda nao contou ao marido: quer que seja no momento ideal, que não chega, ele está estranho, parece que esconde alguma coisa. Ela me pede para que ligue para a Paula, que já se decidiu por um aborto: não confia no cara, não quer um corpo estranho dentro do corpo dela, não quer ser mãe, mas está presa a uma cama desde que fez o teste de farmácia e não consegue se levantar. (p. 48)

Apesar de não julgá-la, Gloria não é capaz de auxiliá-la a realizar o aborto e tampouco consegue explicar seus motivos, devido ao turbilhão de emoções que vêm à tona ao tratar do tema da maternidade, ainda sendo processado pela personagem através do seu luto.
Para além do texto escrito, a imagem da capa de O quarto branco me chamou bastante a atenção. Pesquisei sobre a obra e a vida da artista plástica Regina Parra, uma jovem paulistana. A imagem corresponde a uma das cinco pinturas, óleo sobre papel, da série “Tenho medo que sim”, de 2018. A pintura de uma mulher apertando seu próprio pescoço, num ato de auto-estrangulamento, causa a sensação de falta de ar, de angústia, de dor, exatamente os sentimentos transmitidos durante boa parte da leitura da história da personagem Gloria. A escolha de capa da edição da Todavia foi tão perfeita que a “coincidência” não termina por aqui. Outro trabalho de Regina Parra que constitui sua obra é intitulado “Eu me levanto” com inspiração no poema “Still I Rise”, de Maya Angelou. A trajetória de vida da artista plástica que passou cinco anos buscando a cura para uma doença grave e rara que a acometeu, levando-a a dores intensas no corpo e a uma fraqueza muscular que a mantinha quase sempre sentada ou deitada, também serviu de inspiração para a sua criação artística. Após um tratamento de cinco anos, hoje já curada, a artista revela em entrevista à Revista Trip[7] que durante a doença passou a se interessar mais pelo seu próprio corpo: “Não tinha como não pensar no corpo porque ele virou meio que um impedimento para tudo o que eu queria fazer”. Durante o processo de criação, para compor e nomear a série de autorretratos, Regina Parra diz ter se inspirado ainda em Ofélia, personagem de Hamlet, de William Sheakespeare. A frase “Tenho medo que sim” faz parte de um diálogo entre Ofélia e o pai, Polônio, sobre um acesso de loucura e de violência protagonizados por Hamlet contra a noiva. A artista plástica declarou ainda que além de seu corpo, são objetos de seus estudos outros elementos como, por exemplo, a dor, a morte e o feminismo. Na releitura da personagem Ofélia, Regina Parra traz imagens ambíguas que oscilam entre a angústia e a luxúria.
As duas artistas mencionadas, Gabriela Aguerre e Regina Parra, trouxeram, cada uma à sua maneira, para suas respectivas obras, experiências relevantes acerca do corpo feminino. São duas artistas contemporâneas, uma na literatura e outra nas artes visuais, que desafiam as noções canônicas e redutoras impostas pela sociedade à identidade feminina. Ambas as obras têm protagonistas fortes que, mesmo permeadas pela dor e pelo sofrimento, causados por limitações corporais, de idade ou de saúde física, conseguem encontrar saídas, alívios e superações. Na minha pespectiva, o poema de Maya Angelou que serviu de inspiração para a artista visual tem o poder de reverberar a força de se reinventar que une as personagens Gloria de O quarto branco e a mulher da imagem do autorretrato de Regina Parra e todas as mulheres que foram atravessadas por algum tipo de experiência com o corpo e com a maternidade, seja por aborto, involuntário ou não, por infertilidade, pelos estigmas e consequências que a condição de ser mulher traz consigo.
Assim, a minha sensação ao ler Gabriela Aguerre é que ela condensa sua prosa, oferece ao leitor uma história melancólica, gera um deleite literário e transmite uma poesia em tons suaves. A cor branca do título, mencionada em diversos momentos da narrativa, pode sinalizar essa busca por purificação ou de um estado de espírito da narradora em busca de descanso para o corpo e para a mente: “Um imenso branco em volta de mim, silencioso, sereno, límpido, com paredes que se misturam do chão ao teto, sem limites nem ângulos retos. Um quarto branco. Uma felicidade do avesso, uma paz triste, uma paz” (p.117).



[1] Imagem retirada do sítio eletrônico da artista plástica: http://www.reginaparra.com.br/tenho-medo-que-sim. Acesso em 5 de maio de 2019.
[2] AGUERRE, Gabriela. O quarto branco. São Paulo: Todavia, 1ªed., 2019.
[4] SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análisa histórica”. Educação e realidade, n.º 16, v. 2, Porto Alegre, jul-dez 1990.
[5] In: DALCASTANGÈ, Regina e LEAL, Virginia Maria Vasconcelos (org.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte, 2010.
[6]  SILVA, João Luiz de Carvalho Pinto e SURITA , Fernanda Garanhani de Castro. “Idade materna: resultados perinatais e via de parto”. Acesso em http://www.scielo.br/pdf/rbgo/v31n7/v31n7a01.pdf.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.