Leocádia Aparecida
Chaves
Em busca do destino, de Chiharu Shiota |
Faltam
algumas gotas de melancolia
páginas
muitas
brancas
o
lápis não escorre
parece
parece
seco
sempre
foi, verdade
mas
há algo novo
um
novo incômodo,
lombada
recente
existe
uma alegria
uma
plenitude de espírito agora
um encontro
tatiana nascimento (2018; 2019) – intelectual negra,
sapatona, escritora, editora e ativista –, ao produzir sua literatura e ao
fomentar a produção negra e/ou lgbtqi+ contemporânea – como um rato que faz a
sua toca (Deleuze; Guattari, 1977) – tem
nos revelado escritas potentemente anticoloniais; escritas que têm conformado,
como ela mesma cunha, o “cuíerlombismo literário” brasileiro. Um arcabouço que
nasce, como explica, do diálogo com o conceito de quilombo de Abdias Nascimento
e Beatriz Nascimento – resistência e organização – e com as discussões pautadas
por teóricos e ativistas do movimento queer
brasileiro como Jota Mombaça, Bibi Abigail e Marisa Lobo.
Movimento teórico que lhe permite, inclusive, numa
artimanha decolonial, traduzir o queer
para “cuíer” (nascimento, 2018); conceitual que “(...) refund[a] a noção de literatura negra
e/ou lgbtqi+ contemporânea, que até então era feita, lida e compreendida apenas como combativa, mas que tem dado “[...]
o passo adiante: anúncio, (re)criação. [...] experimentações de liberdade”
(nascimento, 2019, p.15-16); paragem indubitavelmente subversiva, pois – só
para começar – nos permite acessá-la “desorbitando do paradigma da dor” (nascimento,
2019).
Uma arquitetura conceitual biopotente, como me permite
pensar Peter Pal Pelbart (2011), pois irrompe tanto como política de vida para a
escrita literária “de povo que ainda falta” (Deleuze; Guattari, 1977) quanto para
a crítica literária, que, de um modo geral, ainda está pautada pelas múltiplas
colonialidades: saber, poder e ser, como discutem os decoloniais; mas não só; como
se fosse pouco. Uma arquitetura que se vincula à padê editorial, platô criado
pela teórica em parceria com Bárbara Esmenia, que desde 2016 tem publicado autoras
negras e/ou lgbtqi[2].
Pois
bem, é a partir desse “acuíerlombamento” (nascimento, 2019) que nascimento idealizou, organizou e viabilizou, com apoio do
Fundo Elas de Investimento Social, do Rio de Janeiro, em edital de 2018, a
terceira coleção da padê: “a Cole-sã escrevivências”, um conjunto de 46[3] obras escritas por pessoas
LBTs majoritariamente negras (75%) publicadas entre junho de 2018 e junho de
2019[4]. Cole-sã que carrega no
seu título de batismo a potência da inspiração teorizada por Conceição Evaristo, “(...)
a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos (...)” (Evaristo, 2007, p.16), como
justifica tatiana nascimento na apresentação geral dos livros. Uma cartografia literária conquistada para
que essas pessoas (...) inventa[ssem] novos mundos, im ou possíveis, utópicos,
diz-tópicos (...)” (nascimento, 2019, p.24).
Como resultado dessa “ocuíerpação”[5], quatorze obras são de
autoria trans majoritamente negra, sendo uma teórica, “Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade
decolonial”, de Viviane
Vergueiro (2018), e treze literárias. Dessas treze, dois contos longos: “piroclastos” (2018), de Lázaro e “Uma
natureza secreta”, de Luci Universo (2019); uma história em quadrinhos: “cartas para ninguém” (2019), de Diana
Salú; três obras de gênero híbrido: “bricolagem
travesti” (2019) de Maria Léo Araruna, “Vagamente”, de Daniel Brito, e “Crônicas
coiote”, em que duas das quatro autoras, Bruna Kury e Marcia Marci, são
travestis (o livro tem ensaios, poemas, ou letras de funk de alguma/s delas e
mais Gilda Puri e Raíssa Vitral); e sete de poesia, dos quais seis são
analisados neste ensaio marcadamente a partir da perspectiva “cuíerlombista”: “sal a gosto” (2018), de Esteban
Rodrigues; “EP” (2018), de Téo
Martins; “sapa profana” (2018),
de Raíssa Éris Grimm; “amar devagarinho...” (2018), de Bruno
Santana; “no âmago” (2019), de Enzo Iroko; “a piada
que vocês não vão contar” (2018), de
Kuma França; e “Meus versos e inversos”, de Augusto Liras (2019, fora da
amostragem por não ter sido lançado no contexto da escrita deste ensaio).
Antes, porém, um parêntese! Ao incluir a poesia de
Raíssa Eris Grimm – mulher trans branca – portanto privilegiada
pelo racismo estruturante no rol “cuíerlombista”, proponho uma expansão da discussão realizada por nascimento
(2018, 2019), que acredito ser pertinente, uma vez que a desumanização e
abjetificação da transgeneridade também é fruto da colonialidade,
estruturada pelo racismo e cissexismo
colonial (Vergueiro, 2015, 2018). Portanto, ainda que o marcador raça seja um
pilar na teoria de nascimento, acredito que territorializar a escrita de
autoria trans branca neste espaço “cuíerlombista” nos permite pensá-lo,
inclusive, como um espaço de aliança inter-racial aos moldes dos quilombos
coloniais que “[...] tornaram-se sistema complexos, de produção cultural,
convivência inter-racial, troca de saberes [...]” (nascimento, 2019, p.16).
Uma literatura que, a meu ver, simultaneamente, nasce de
afectos bem
como os gestaciona, pois se viabilizada por uma política editorial empenhada em
“libertar a vida daquilo que a aprisiona” também é capaz de produzir “novas possibilidades de vida”, (Deleuze;
Guatarri, 1997). Portanto, uma acepção que não se territorializa no gesto
do sentir, mas na potência de devir, tornar-se. Pois como salientam os teóricos,
se o artista é mostrador, inventor e criador de afectos pela obra que os cria, também
nos dá a possibilidade de transformação – potência de afetação. Uma perspectiva potente
para discutir toda a literatura de autoria trans desta “cole-sã”, mas que aqui
será manejada “a pinceladas” para pensar uma temática que atravessa as obras de
poesia: a do afeto – amor, prazer –, o qual neste ensaio se revela tanto como
mostrador de afectos como viabilizador de transformação.
Isso
se deve porque, como nos ajuda a pensar bell hooks em “Vivendo de amor” (1994),
se amar e ser amado ainda é um desafio para o povo negro e de um modo especial para
as mulheres negras neste planeta racista, o mesmo se constata para os
dissidentes sexuais, que, desde a mais tenra idade, via de regra, tem aprendido
o desamor, pois – do íntimo do lar ao espaço público – reconhecidos pela sociedade transfóbica como corpos
perversos, aberrações da natureza (Jesus, 2013)! Desumanização que ainda pode
ser agravada em função da articulação entre raça e classe (Davis, 2016). Portanto,
conforme as teóricas têm diagnosticado, se por um lado, há uma mecânica mortífera
para o desamor, por outro, conclamam o amar como ação e como gesto, pois nutrir
a capacidade do amor interior e do amar também é resistir, o que temos visualizado
nessas poesias.
Em “sal a gosto”
(2018), por exemplo, Esteban Rodrigues, constrói a segunda parte de sua obra com
uma sequência de fragmentos de um discurso amoroso dele – um eu lírico
configurado na voz de um homem trans – para
ela, a sua musa, amante. Uma poética que tanto garante espaço para revelar a
intimidade do amor romântico quanto a sua expectativa de permanência, comumente
usurpados das vidas trans em nossa sociedade:
eu faço planos sem querer / no dia
que você se atrasou quase meia hora eu listei 13 coisas que eu gosto de reparar
em você: seus olhos, sua boca, sua orelha aberta, seu sorriso, suas mãos, seu
braço dobrado, seus seios, a cicatriz na sua perna, a forma que o cabelo cai
sobre a testa, sua bunda, sua tatuagem, sua clavícula, suas combinações de
roupas; eu lembrei do dia que saímos juntos e eu preto e branco e você toda
estampada e é como eclipse no meio da natureza, eu gosto da gente (Rodrigues,
2018, p. 47).
Na obra “EP” (2018), de Téo Martins, nos
deparamos com um amor-canção que não só evidencia a quebra da previsibilidade
dos corpos passíveis para a vivência do amor, como garante lirismo para esse
devir amoroso, fraturador da cisheteronormatividade reprodutivesca:
Eu quero sentir o xuxu / De Raquel Vírgínia. / O
hálito matinal / [...] Quero sua voz grave de quem mal acordou / Quero a graça
de ver aquela mijadinha em pé / De quem sai rápida faminta / Atrás de café /
Quero tê-la de mãos dadas cruzando a 24 de maio / [...] Eu quero minha pele
preta / Coladinha na pele preta / De Raquel / [...] / Eu quero ser o homem / Que
sou / De vagina / No pau, nas mãos / No corpo / De Raquel Vírginia” (Martins,
2018, p. 8).
Por outro lado, se
o eu lírico de Raíssa Éris Grimm em “sapa
profana” (2018) afirma que é preciso desestruturar os alfabetos para
escrever uma história de amor, “impossível de ser lida” (Grimm, 2018, p.23), paradoxalmente,
o realiza em sua poética! Além. Permite-nos
visualizar essa vivência por meio de gozo: pleno, sagrado, humano: “não sei ainda entender / essa correnteza / que
jorra, molha e me guia / por essa linha entre teus / olhos / e sorrisos. [...] Sob
tua presença /me torno / inteira / presente” (Grimm, 2018, p. 29). Um
corpo que se (re) faz, que se revela, ao longo de sua escritura, também como
objeto de amor, auto- amor, amor interior, como em “Hoje seu corpo é sua casa / mas não começou assim. Antes de ser casa,
seu corpo foi campo de batalha foi luta. Seu corpo é ocupação” (Grimm,
2018, p. 31). Aspecto que atravessa, ainda que em intensidades variadas, todas
essas escritas.
Do
corpo poético de Bruno Santana “amar devagarinho...” (2018), escolho o poema
XXIV, que traz o abraço como devir-vida para o eu lírico também homem trans.
Uma voz-vida, que marcada para morrer à míngua, se pronuncia libertariamente no
devaneio, direito humano: “Seu abraço me ativa / vários big bangs, / dilata
minhas / galáxias / mexe na órbita / dos meus planetas... / e melhor de tudo, /
acende em mim / uma estrela” (Santana, 2018, p. 41). Aqui, portanto, a revolução reside na potência
explosiva do mais banal dos gestos humanos, que gesto-ação também pode ser lido
como signo de expansão que promove o “cuíerlombo” – espaço de afeto e partilhas.
Na
“escrevivência” de Enzo Iroko “no âmago” (2019), pirilampa-me o sublime,
o pleno da relação sexual poetizada para corpos, apenas: “[...] O corpo no corpo / Encontro de almas
distintas / Sem separação / O corpo no corpo / Reinventa a criação / O corpo no
corpo / Nenhuma abjeção / O corpo no corpo / Orgasmo e palpitação / Meu corpo
em seu corpo / Pura libertação”. (Iroko, 2019, p.39). Uma escritura capaz
de esvaziar demonizações e estigmas criados pelo nosso “olhar” cishteronormativado: fatalmente violentador da
subjetividade humana.
Já em a “piada que vocês não vão contar” (2018), de
Kuma França, o eu lírico dedica com muita potência o seu afeto, a sua pulsão de
vida, ao seu povo: “Jamais chame meu irmão de pagado / Mexeu com minha família
/ Mexeu comigo / Seguimos firme na escuridão / Dando fuga a vários outros
irmãos / Crescimento ( nós por nós) é isso” (França, 2019, p. 35). Uma poética que
se sustenta numa comunidade ancestral,
a afro-diásporica, expandida e em expansão:
[...]
Vou tomando espaço que sempre me pertenceu
Cês tudo puto pirando e perguntando
“Quem sou eu “
– Mandingueiro de
primeira
Siga a minha ladainha
[...]
Sou estratégia, Oxóssi, destemido feito Ogum
Trago o canto de Oxum, me aprecie sou Exu
Eu sou a insistência com a pirraça de Oxalá
Prazer Kuma Fumaça
A piada que vocês não vão contar. (França, 2018, p. 32-33).
O que evidencia e reforça uma
comunidade de partilha, de afetos pela palavra (nascimento, 2018; 2019), que o sistema branco,
cishetero – cotidiana e historicamente – tenta exterminar: “ [...] Há beleza
por trás da feiura / Há humanidade na criatura / [...] / Diga a eles que eu sou
a cura / [...] Tá sem cor esse seu colorido / Tá visível o seu escondido / Tão
bonito o seu mal vestido / Diga a eles
que sou seu amigo [...]” (França, 2018, p. 40).
Portanto, estamos nos deparando, como
exorta nascimento, com uma poesia que se revela prenhe de vivências de amor, capaz de subverter as expectativas de morte sobre suas
vidas em expectativas de vida (nascimento, 2018). Poéticas que, consequentemente,
nos permitem acessar um mundo de emoções e sentimentos – categoria “luxo” – (lorde,
1984) usualmente pensáveis somente para brancos, cisheteros, ricos –, mas que
aqui são reivindicadas como necessidades básicas, saúde emocional; como versifica
Raíssa Éris Grimm, permitem “abismos sonharem voo” (2018, p. 8) tanto para os seus criadores,
criadoras quanto para quem desse ninho de afectos se aproximar.
Referências
Bibliográficas
DELUEZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “A
literatura Menor”. In: Kafka por uma
literatura menor. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977. p.25-42.
DELUEZE,
Gilles. “Literatura e vida”. In: Crítica
e Clínica. Editora 34, 1997.p.11-16.
DAVIS, Ângela. Mulheres,
raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
EVARISTO,
Conceição. Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e
suas interfaces. (org)
Marcos Antônio Alexandre, Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p 16-21.
hooks,
bell. Vivendo de amor. Tradução de
Maísa Mendonça. Geledés, 09 de mar.
2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em: 20 de jun. 2019.
LORDE,
Audre. Poesia não é luxo. Tradução de
tatiana nascimento de Poetry is not a luxury. Ensaio do livro Sister, outsider:
essays and speeches. Nova York: The crossing press feminist series, 1984. Disponível
em: https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/. Acesso em : 13
de fev. de 2019.
NASCIMENTO, tatiana. Cuírlombismo literário: poesia negra LGBTQI desorbitando o paradigma da
dor. São Paulo: N-1 edições, 2019.
__________. o cuíerlombo da
palavra (y da palavra queerlombo…) > poesia preta lgbtqi de denúncia da dor
até direito ao devaneio. In: ARAÙJO, Adriana de Fátima Barbosa; SOUTO, Suzana
(Orgs.). I Encontro Ler: Literatura,
Éstetica e Revolução. Brasília: Universidade de Brasília, 2018.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
VERGUEIRO, Viviane Simawaka (2015). Por inflexões decolonais de corpos e
identidades de gênero inconformes: uma
análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. (Dissertação
de Mestrado) Universidade Federal da Bahia, Bahia 2015. 243 fls.
VERGUEIRO,
Viviane. Sou
travestis: estudando a cisgeneridade como possibilidade decolonial.
Brasília: Padê Editorial, 2018.
[1] Registra-se que o escritor alterou,
recentemente, a sua assinatura para Preto Téo.
[2] Informações no sítio: http://pade.lgbt/.
[3] Esta Cole-sã pode ser comprada
pelo sítio da padê http://pade.lgbt/ ou baixada gratuitamente pelo
portal www.literatura.lgbt, conforme divulgado na página do facebook: padê editorial.
[4] Essas informações estão
publicizadas no sítio da editora http://pade.lgbt/ e em sua página do facebook: padê editorial.
[5] A partir do conceito de “cuíerlombismo”
(nascimento 2018, 2019) derivo a palavra “ocuíerpação”, que traduz,
a meu ver, um movimento em andamento.
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