6 de julho de 2019

A poesia de autoria trans no contexto da "cole-sã escrevivências": ninho de afectos

Leocádia Aparecida Chaves



 Em busca do destino, de Chiharu Shiota 


Faltam algumas gotas de melancolia
páginas muitas
brancas
o lápis não escorre
parece
parece seco
sempre foi, verdade
mas há algo novo
um novo incômodo,
lombada recente
existe uma alegria
uma plenitude de espírito agora
um encontro
                                                                                                                                (Téo Martins[1])


tatiana nascimento (2018; 2019) – intelectual negra, sapatona, escritora, editora e ativista –, ao produzir sua literatura e ao fomentar a produção negra e/ou lgbtqi+ contemporânea – como um rato que faz a sua toca (Deleuze;  Guattari, 1977) – tem nos revelado escritas potentemente anticoloniais; escritas que têm conformado, como ela mesma cunha, o “cuíerlombismo literário” brasileiro. Um arcabouço que nasce, como explica, do diálogo com o conceito de quilombo de Abdias Nascimento e Beatriz Nascimento – resistência e organização – e com as discussões pautadas por teóricos e ativistas do movimento queer brasileiro como Jota Mombaça, Bibi Abigail e Marisa Lobo.
Movimento teórico que lhe permite, inclusive, numa artimanha decolonial, traduzir o queer para “cuíer” (nascimento, 2018); conceitual que  “(...) refund[a] a noção de literatura negra e/ou lgbtqi+ contemporânea, que até então era feita, lida e compreendida  apenas como combativa, mas que tem dado “[...] o passo adiante: anúncio, (re)criação. [...] experimentações de liberdade” (nascimento, 2019, p.15-16); paragem indubitavelmente subversiva, pois – só para começar – nos permite acessá-la “desorbitando do paradigma da dor” (nascimento, 2019).
Uma arquitetura conceitual biopotente, como me permite pensar Peter Pal Pelbart (2011), pois irrompe tanto como política de vida para a escrita literária “de povo que ainda falta” (Deleuze; Guattari, 1977) quanto para a crítica literária, que, de um modo geral, ainda está pautada pelas múltiplas colonialidades: saber, poder e ser, como discutem os decoloniais; mas não só; como se fosse pouco. Uma arquitetura que se vincula à padê editorial, platô criado pela teórica em parceria com Bárbara Esmenia, que desde 2016 tem publicado autoras negras e/ou lgbtqi[2].
Pois bem, é a partir desse “acuíerlombamento (nascimento, 2019) que nascimento idealizou, organizou e viabilizou, com apoio do Fundo Elas de Investimento Social, do Rio de Janeiro, em edital de 2018, a terceira coleção da padê: “a Cole-sã escrevivências”, um conjunto de 46[3] obras escritas por pessoas LBTs majoritariamente negras (75%) publicadas entre junho de 2018 e junho de 2019[4]. Cole-sã que carrega no seu título de batismo a potência da inspiração teorizada por Conceição Evaristo, “(...) a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos (...)” (Evaristo, 2007, p.16), como justifica tatiana nascimento na apresentação geral dos livros. Uma cartografia literária conquistada para que essas pessoas (...) inventa[ssem] novos mundos, im ou possíveis, utópicos, diz-tópicos (...)” (nascimento, 2019, p.24).
Como resultado dessa “ocuíerpação”[5], quatorze obras são de autoria trans majoritamente negra, sendo uma teórica, “Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial”, de Viviane Vergueiro (2018), e treze literárias. Dessas treze, dois contos longos: “piroclastos” (2018), de Lázaro e “Uma natureza secreta”, de Luci Universo (2019); uma história em quadrinhos: “cartas para ninguém” (2019), de Diana Salú; três obras de gênero híbrido: “bricolagem travesti” (2019) de Maria Léo Araruna, “Vagamente”, de Daniel Brito, e “Crônicas coiote”, em que duas das quatro autoras, Bruna Kury e Marcia Marci, são travestis (o livro tem ensaios, poemas, ou letras de funk de alguma/s delas e mais Gilda Puri e Raíssa Vitral); e sete de poesia, dos quais seis são analisados neste ensaio  marcadamente  a partir da perspectiva “cuíerlombista”: “sal a gosto” (2018), de Esteban Rodrigues; “EP” (2018), de Téo Martins; “sapa profana” (2018), de Raíssa Éris Grimm; amar devagarinho...” (2018), de Bruno Santana; “no âmago” (2019), de Enzo Iroko; “a piada que vocês não vão contar” (2018), de Kuma França; e “Meus versos e inversos”, de Augusto Liras (2019, fora da amostragem por não ter sido lançado no contexto da escrita deste ensaio).
Antes, porém, um parêntese! Ao incluir a poesia de Raíssa Eris Grimm mulher trans branca – portanto privilegiada pelo racismo estruturante no rol “cuíerlombista”, proponho uma  expansão da discussão realizada por nascimento (2018, 2019), que acredito ser pertinente, uma vez que a desumanização e abjetificação da transgeneridade também é fruto da colonialidade, estruturada  pelo racismo e cissexismo colonial (Vergueiro, 2015, 2018). Portanto, ainda que o marcador raça seja um pilar na teoria de nascimento, acredito que territorializar a escrita de autoria trans branca neste espaço “cuíerlombista” nos permite pensá-lo, inclusive, como um espaço de aliança inter-racial aos moldes dos quilombos coloniais que “[...] tornaram-se sistema complexos, de produção cultural, convivência inter-racial, troca de saberes [...]” (nascimento, 2019, p.16).
Uma literatura que, a meu ver, simultaneamente, nasce de afectos bem como os gestaciona, pois se viabilizada por uma política editorial empenhada em “libertar a vida daquilo que a aprisionatambém é capaz de produzir “novas possibilidades de vida”, (Deleuze; Guatarri, 1997). Portanto, uma acepção que não se territorializa no gesto do sentir, mas na potência de devir, tornar-se. Pois como salientam os teóricos, se o artista é mostrador, inventor e criador de afectos pela obra que os cria, também nos dá a possibilidade de transformação – potência de afetação. Uma perspectiva potente para discutir toda a literatura de autoria trans desta “cole-sã”, mas que aqui será manejada “a pinceladas” para pensar uma temática que atravessa as obras de poesia: a do afeto – amor, prazer –, o qual neste ensaio se revela tanto como mostrador de afectos como viabilizador de transformação.
Isso se deve porque, como nos ajuda a pensar bell hooks em “Vivendo de amor” (1994), se amar e ser amado ainda é um desafio para o povo negro e de um modo especial para as mulheres negras neste planeta racista, o mesmo se constata para os dissidentes sexuais, que, desde a mais tenra idade, via de regra, tem aprendido o desamor, pois – do íntimo do lar ao espaço público –  reconhecidos pela sociedade transfóbica como corpos perversos, aberrações da natureza (Jesus, 2013)! Desumanização que ainda pode ser agravada em função da articulação entre raça e classe (Davis, 2016). Portanto, conforme as teóricas têm diagnosticado, se por um lado, há uma mecânica mortífera para o desamor, por outro, conclamam o amar como ação e como gesto, pois nutrir a capacidade do amor interior e do amar também é resistir, o que temos visualizado nessas poesias.
Em “sal a gosto” (2018), por exemplo, Esteban Rodrigues, constrói a segunda parte de sua obra com uma sequência de fragmentos de um discurso amoroso dele – um eu lírico configurado na voz de um homem trans – para ela, a sua musa, amante. Uma poética que tanto garante espaço para revelar a intimidade do amor romântico quanto a sua expectativa de permanência, comumente usurpados das vidas trans em nossa sociedade:

eu faço planos sem querer / no dia que você se atrasou quase meia hora eu listei 13 coisas que eu gosto de reparar em você: seus olhos, sua boca, sua orelha aberta, seu sorriso, suas mãos, seu braço dobrado, seus seios, a cicatriz na sua perna, a forma que o cabelo cai sobre a testa, sua bunda, sua tatuagem, sua clavícula, suas combinações de roupas; eu lembrei do dia que saímos juntos e eu preto e branco e você toda estampada e é como eclipse no meio da natureza, eu gosto da gente (Rodrigues, 2018, p. 47).

Na obra “EP” (2018), de Téo Martins, nos deparamos com um amor-canção que não só evidencia a quebra da previsibilidade dos corpos passíveis para a vivência do amor, como garante lirismo para esse devir amoroso, fraturador da cisheteronormatividade reprodutivesca:

Eu quero sentir o xuxu / De Raquel Vírgínia. / O hálito matinal / [...] Quero sua voz grave de quem mal acordou / Quero a graça de ver aquela mijadinha em pé / De quem sai rápida faminta / Atrás de café / Quero tê-la de mãos dadas cruzando a 24 de maio / [...] Eu quero minha pele preta / Coladinha na pele preta / De Raquel / [...] / Eu quero ser o homem / Que sou / De vagina / No pau, nas mãos / No corpo / De Raquel Vírginia” (Martins, 2018, p. 8).

Por outro lado, se o eu lírico de Raíssa Éris Grimm em “sapa profana” (2018) afirma que é preciso desestruturar os alfabetos para escrever uma história de amor, “impossível de ser lida” (Grimm, 2018, p.23), paradoxalmente, o realiza em sua poética! Além. Permite-nos visualizar essa vivência por meio de gozo: pleno, sagrado, humano: “não sei ainda entender / essa correnteza / que jorra, molha e me guia / por essa linha entre teus / olhos / e sorrisos. [...] Sob tua presença /me torno / inteira / presente” (Grimm, 2018, p. 29). Um corpo que se (re) faz, que se revela, ao longo de sua escritura, também como objeto de amor, auto- amor, amor interior, como em “Hoje seu corpo é sua casa / mas não começou assim. Antes de ser casa, seu corpo foi campo de batalha foi luta. Seu corpo é ocupação” (Grimm, 2018, p. 31). Aspecto que atravessa, ainda que em intensidades variadas, todas essas escritas.
Do corpo poético de Bruno Santana “amar devagarinho...” (2018), escolho o poema XXIV, que traz o abraço como devir-vida para o eu lírico também homem trans. Uma voz-vida, que marcada para morrer à míngua, se pronuncia libertariamente no devaneio, direito humano: “Seu abraço me ativa / vários big bangs, / dilata minhas / galáxias / mexe na órbita / dos meus planetas... / e melhor de tudo, / acende em mim / uma estrela” (Santana, 2018, p. 41). Aqui, portanto, a revolução reside na potência explosiva do mais banal dos gestos humanos, que gesto-ação também pode ser lido como signo de expansão que promove o “cuíerlombo” – espaço de afeto e partilhas.
Na “escrevivência” de Enzo Iroko “no âmago” (2019), pirilampa-me o sublime, o pleno da relação sexual poetizada para corpos, apenas: “[...] O corpo no corpo / Encontro de almas distintas / Sem separação / O corpo no corpo / Reinventa a criação / O corpo no corpo / Nenhuma abjeção / O corpo no corpo / Orgasmo e palpitação / Meu corpo em seu corpo / Pura libertação”. (Iroko, 2019, p.39). Uma escritura capaz de esvaziar demonizações e estigmas criados pelo nosso “olhar” cishteronormativado: fatalmente violentador da subjetividade humana.  
Já em a “piada que vocês não vão contar” (2018), de Kuma França, o eu lírico dedica com muita potência o seu afeto, a sua pulsão de vida, ao seu povo: “Jamais chame meu irmão de pagado / Mexeu com minha família / Mexeu comigo / Seguimos firme na escuridão / Dando fuga a vários outros irmãos / Crescimento ( nós por nós) é isso” (França, 2019, p. 35). Uma poética que se sustenta numa comunidade  ancestral, a   afro-diásporica, expandida e em expansão:
[...]
Vou tomando espaço que sempre me pertenceu
Cês tudo puto pirando e perguntando
“Quem sou eu
Mandingueiro de primeira
Siga a minha ladainha
[...]
Sou estratégia, Oxóssi, destemido feito Ogum
Trago o canto de Oxum, me aprecie sou Exu
Eu sou a insistência com a pirraça de Oxalá
Prazer Kuma Fumaça
A piada que vocês não vão contar. (França, 2018, p. 32-33).

O que evidencia e reforça uma comunidade de partilha, de afetos pela palavra (nascimento, 2018; 2019), que o sistema branco, cishetero – cotidiana e historicamente – tenta exterminar: “ [...] Há beleza por trás da feiura / Há humanidade na criatura / [...] / Diga a eles que eu sou a cura / [...] Tá sem cor esse seu colorido / Tá visível o seu escondido / Tão bonito o seu  mal vestido / Diga a eles que sou seu amigo [...]” (França, 2018, p. 40).
Portanto, estamos nos deparando, como exorta nascimento, com uma poesia que se revela prenhe de vivências de amor, capaz de subverter as expectativas de morte sobre suas vidas em expectativas de vida (nascimento, 2018). Poéticas que, consequentemente, nos permitem acessar um mundo de emoções e sentimentos categoria “luxo” – (lorde, 1984) usualmente pensáveis somente para brancos, cisheteros, ricos ­ –, mas que aqui são reivindicadas como necessidades básicas, saúde emocional; como versifica Raíssa Éris Grimm, permitem “abismos sonharem voo”  (2018, p. 8) tanto para os seus criadores, criadoras quanto para quem desse ninho de afectos se aproximar.



Referências Bibliográficas

DELUEZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “A literatura Menor”. In: Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977. p.25-42.
DELUEZE, Gilles. “Literatura e vida”. In: Crítica e Clínica. Editora 34, 1997.p.11-16.

DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
EVARISTO, Conceição. Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e suas interfaces. (org) Marcos Antônio Alexandre, Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p 16-21.

hooks, bell. Vivendo de amor. Tradução de Maísa Mendonça. Geledés, 09 de mar. 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em: 20 de jun. 2019.

LORDE, Audre. Poesia não é luxo. Tradução de tatiana nascimento de Poetry is not a luxury. Ensaio do livro Sister, outsider: essays and speeches. Nova York: The crossing press feminist series, 1984. Disponível em: https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/. Acesso em : 13 de fev. de 2019.

NASCIMENTO, tatiana. Cuírlombismo literário: poesia negra LGBTQI desorbitando o paradigma da dor.  São Paulo: N-1 edições, 2019.

__________. o cuíerlombo da palavra (y da palavra queerlombo…) > poesia preta lgbtqi de denúncia da dor até direito ao devaneio. In: ARAÙJO, Adriana de Fátima Barbosa; SOUTO, Suzana (Orgs.). I Encontro Ler: Literatura, Éstetica e Revolução. Brasília: Universidade de Brasília, 2018.

PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
VERGUEIRO, Viviane Simawaka (2015). Por inflexões decolonais de corpos e identidades  de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal da Bahia, Bahia 2015. 243 fls.

VERGUEIRO, Viviane. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como possibilidade decolonial. Brasília: Padê Editorial, 2018.


[1] Registra-se que o escritor alterou, recentemente, a sua assinatura para Preto Téo.
[2] Informações no sítio: http://pade.lgbt/.
[3] Esta Cole-sã pode ser comprada pelo sítio da padê  http://pade.lgbt/ ou baixada gratuitamente pelo portal  www.literatura.lgbt, conforme divulgado na página do facebook: padê editorial.
[4] Essas informações estão publicizadas no sítio da editora http://pade.lgbt/  e em sua página do facebook: padê editorial.
[5] A partir do conceito de “cuíerlombismo” (nascimento 2018, 2019) derivo a palavra “ocuíerpação”, que   traduz, a meu ver, um movimento em andamento.

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