Rastro de rasgo, o feminino como procedimento
Débora Lucas Duarte
Rosana Monnerat (Rio de Janeiro, RJ, 1967). Outras
num céu, 1993. Sem título, 1994. Espelho d’água, 1993. Cipó, 1993 e Tecendo,
1993, coleção MAM.[1]
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Olho muito tempo o corpo de um poema
Até perder de
vista o que não seja corpo
E sentir
separado dentre os dentes um filete de
Sangue
Nas gengivas
Ana C. [2]
[...] Tanta coisa desmorona, mas não o que,
em sua queda,
abriria espaço para mais formas de vida
[...] Enquanto pudermos desejar,
seremos a constante posibilidade de uma bomba rente ao estado das
coisas.
[...] O que queima, o que enfrenta, o que não cessa de retornar.
O estado aquaso da matéria,
que, multiforme, escapa e avança.
[...] Para que faca eco e tambem eu escute.
Que escorra.
Priscilla Menezes.[3]
O que tem
o corpo a ver com a escrita, o que tem a escrita a ver com o sangue, o que o
sangue tem que, de si mesmo, poder parir muitos mundos, o que tem de estranho na
entranha do humano, que torna estranha sua escrita, que desmonta o corpo de si
como um todo. Caráter disruptivo. Corpo, sangue, escrita, saída de si – Sul. Essas
inquietações que se querem encadeadas são mote para o texto que se pretende
aqui, e para discuti-las dialogaremos com dois textos de Veronica Stigger[4], Sul
e Útero do Mundo, ambos publicados em 2016.[5]
O uso de
textos de uma mesma autora está implicado no modo como ela, Stigger, pensa o feminino
como alegoria de leitura do mundo, e por sua vez, como possibilidade de
transformação do mundo. Para isso a autora nos apresenta um retorno às noções vanguardistas
de arte e literatura como forma de reivindicação do feminino, e de outro lado a
prática da literatura, em um texto que desafia as classificações de gênero
textual, bem como da dualidade entre real-ficcional.
No artigo
“O útero do Mundo”, escrito como
texto do catálogo de mesmo nome, para uma exposição no MAM, em 2016, Veronica
Stigger faz um recorte das categorias de útero que ela encontra em três textos
de Clarice Lispector, A Paixão segundo
G.H. (1964), Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). São elas:
grito ancestral, montagem humana e vida primária. A partir disso, Stigger lança
mão de um conciso e possível retorno aos principais teóricos conhecidos sobre a
histeria, como Sigmund Freud, Jean-Martin Charcot, Georges Didi-Huberman.
Nessa
tentativa, Stigger aponta para o lado dessas narrativas que serviu como escopo
para negativação do corpo da mulher, e daí, retira delas seu caráter potencial
de positivação, ou seja, ela nos mostra que todos esses discursos que serviram
(e servem) em grande maneira para reiterar um determinismo, hoje podem ser
relidos pelo avesso, justamente porque a histeria seria a diferença crucial
para a facção da arte e, por conseguinte da própria literatura. O que tem de
mais efetivo nessa tese é que pela prática do feminino, nós sempre poderemos
retornar e parir novos e outros mundos. Seja pelas narrativas, seja pela obra
de arte, seja pela performance etc.
Pode
parecer estranho reinvidicar o lugar do feminino como o lugar da poética, da
errância, parece mais uma vez um discurso reiterador, e até mesmo biologizante.
No entanto, o feminino não está no corpo, ele está colocado como prática,
podendo ser encarnado por diferentes corpos. Segundo a autora, Platão expulsa
os poetas da República, justamente porque apresentavam efeminidade em demasia, o que lhes afastava da racionalidade.
Ainda
dentro desse pensamento, Stigger coloca como exemplo Oswald de Andrade e
Antonin Artaud, como dois homens que por sua poética reinvidicaram o lugar do
feminino como estrutura necessária para a arte, instaurando o feminino como
forma de destituição do procedimento já conhecido, fundando assim a contorção,
que hoje chamamos de vanguarda. Segundo
ela: “Como se vê, desde Oswald e Artaud, podemos afirmar que o princípio
feminino, na arte, é uma força tão poderosa e transformadora que pouco importa
se o artista nasceu homem ou mulher, seja como for, ele se impõe e se expõe”
(STIGGER, 2016, P.8).
Esse
texto de Stigger nos impele a sair de uma dualidade e propor o feminino como
procedimento, retirando disso sua consideração principal, que sempre foi de
submissão do corpo da mulher. É fazer disso outra coisa, colocar como
procedimento para produzir novas narrativas. É antes considerar a histeria como
torção da linguagem, assim como a torção de um corpo tomado pela histeria.
Segundo Stigger
Se, como Clarice Lispector afirma em Água viva,
“o útero do mundo” se apresenta como uma “ancestral caverna” de onde se pode
voltar a nascer, podemos ver a vagina como a figura, por excelência, dessa
possibilidade de renascimento, com tudo que ela tem de ambivalente e
perturbadora. Porta de entrada para o útero do mundo – mas também porta de
saída para o mundo (STIGGER, 2016, P.21).
O
feminino é o que não para de deslocar, segundo Alexandre Nodari (2012 apud
STIGGER, 2016, p.7) “o feminino e o poético convergem, pois são,
respectivamente, o princípio e a prática da errância, da instabilidade, em
suma, da diferença e da loucura”.
Quais seriam então os procedimentos para
empreender esse corpo na escrita dentro da obra Sul? Stigger coloca em questão a proposição direta do tema, não se
trata apenas de um relato sobre o sangue em si, mas da criação de narrativas em
que o sangue esteja sempre presente na vida das personagens mulheres e que
seja, por rastro e por rasgo, seu potencial criador. O rastro do rasgo é o procedimento do feminino colocado
dentro da obra.
Sul apresenta ao longo de 91 páginas, um conto, uma peça de teatro e dois
poemas respectivamente. Ao fazer uma primeira leitura, o que se percebe é que o
sangue vai ser um rastro de ligação entre as três narrativas, confirmando que para
ser mulher, é necessário que haja sangue, muito sangue.
Na
primeira parte do livro, onde temos um conto, a narrativa apresenta uma espécie
de ritual de iniciação, ou de sacrifício em que o corpo de uma menina criança
será colocado para o desmembramento
Constância sentiu o calor do sol no rosto, fechou os
olhos e sorriu mais uma vez. Os quatro cavaleiros, ao som do primeiro disparo
de canhão, comprimiram simultaneamente suas esporas contra as costelas dos
cavalos que montavam, fazendo-os disparar. Cada um correu para um lado, levando
consigo um dos membros de Constância e deixando um rastro vermelho sobre a
grama verde (STIGGER, 2016, p. 27).
Já na
segunda parte, o sangue aparece como símbolo da loucura, em uma espécie de
teatro do absurdo à là Ionesco, onde ambas as personagens têm o mesmo nome,
Carol 1 e Carol 2:
Carol 1, que bate o pé no chão em sinal de impaciência,
revira os olhos e imita, com caretas mudas, o jeito de falar de Carol 2. Carol
2, que, de costas, não vê o deboche da outra, cheira a mão suja e faz nova cara
de nojo. Olha mais uma vez para a maçaneta e passa o dedo sobre ela. Seu dedo
também fica tingido de vermelho. Cheira-o e franze o rosto em sinal de desgosto
(STIGGER, 2016, p. 31).
Esse relato
da loucura recoloca nessa característica que sempre foi atribuída a mulher, uma
forma de desestabilizar a linguagem, não só pelo que a loucura desarticula em
si, mas pelo que era difere da linguagem encadeada e do discurso linear.
As duas
análises citadas, ainda suscitam outra questão. Como o texto de Veronica
Stigger desapropria a especificidade da linguagem de gêneros textuais? Faz isso
não só pelo fato de recorrer a três gêneros literários, mas também porque tenta
pensar a narrativa não mais como representação da realidade, nem por meio da
descrição, nem pelo que chamamos hoje de relato. Em Sul não se quer alçar o status de verdade sobre o real. Mas apontar
como uma narrativa pode bordejar um limite desse real, por meio desse corpo,
que estamos chamando aqui de dispositivo de leitura do mundo por meio do
exercício da inespecificidade. A proposta da narrativa agora seria então a
desestabilização da homogeneidade do gênero literário, como modo de
procedimento.
A
metáfora do sangue de Stigger propõe um diálogo com o conceito de
inespecificidade de Florencia Garramuño, quando o exercício de não
pertencimento a um único gênero literário, coloca o texto na porosidade da
determinação. De acordo com Garramuño, o texto é um espaço, e não um
território, em suas palavras, “A inespecificidade está na combinação de
elementos diversos” (GARRAMUÑO, 2014, p.11).
Por isso
cada vez mais temos textos que não possuem fronteiras classificatórias, nem
muros, adequando-se também ao que sente o sujeito no mundo contemporâneo.
Escrever é sempre estar de frente a uma incompletude. Segundo Stigger, “O
inespecífico é a exploração da potência da potencialidade, em oposição à
concretização num ato definitivo – que acaba contribuindo para que o texto não
adquira uma forma definida, que ele permaneça, em alguma medida, informe” (STIGGER,
2016, p.14). Ainda segundo ela, “Em todos os exemplos de arte contemporânea – o
corpo torna-se inquietante. A imagem que temos do corpo humano sofre um golpe
quando nos é dado a ver em partes ou quando nos é revelado apenas o que dele
habitualmente não vemos” (STIGGER, 2016, p. 17). Nessa fragmentação não vemos
apenas pedaços desconectados, esse desfazer do corpo mostra principalmente que
ao desmembrar o corpo do texto questionamos o fazer da linguagem.
Além dos
aspectos já apresentados, há ainda um terceiro que gostaria de comentar. Além
de apresentar o corpo da mulher como leitor do mundo, e de apresentar um
romance composto de um conto, uma peça de teatro e um poema. Sul se diferencia pela própria confecção
do livro, sua materialidade enquanto objeto. Na terceira, mas não última parte
do livro, tempos uma narrativa na métrica de um poema. Essa parte tem por
título “O coração dos homens”, em que a narradora, conta sua primeira
menstruação durante uma peça de teatro na escola.
Depois
dessa parte temos em média 11 páginas que vêm coladas. Ao pegar o livro pela
primeira vez, o leitor pode chegar a pensar que seu livro tem um defeito, mas é
nessa “falha” que o livro alcança determinada potência. Para ler é necessário
que o leitor faça o esforço de rasgar a abertura das páginas.
Quando se
consegue abrir as páginas coladas, o título agora, ao contrário do anterior, se
apresenta como “a verdade sobre o coração dos homens”. Para contar tal verdade,
o uso do não é empregado para negar todos os fatos apresentados antes, ou para
apresentá-los de outra forma:
- Quando pequena,
fui o espelho numa encenação de [Branca de Neve e os sete anões. (STIGGER,
2016, p.59)
- Quando
pequena, fiz parte de uma encenação de [Branca de Neve e os sete anões.
- Mas não
fui o espelho.
-Fui a bruxa. (STIGGER, 20106, p.83)
Nesse momento
da narrativa a narradora já não está mais no presente dos fatos, agora já nem
menstrua mais, e se volta para o que havia enunciado desmentido o que já havia
dito, ou seria, nos contando a verdade?
Usar a
palavra não, para desconstruir o sentido de “verdade” enunciado na parte em que
a narrativa é aberta ao leitor, aponta como a noção de ficção é importante para
entender sua produção, mas que nem por isso o fato narrado tenha menos valor
estético e de representação. Esse procedimento instiga o leitor em direção da
desconstrução da verdade estabelecida sobre a narrativa, ou de uma verdade
produzida por ela, nem antes nem depois o objeto é descrito, ele é apresentado
no momento em que o texto se escreve na leitura, no momento em que esse corpo é
inscrito no texto escrito.
A leitura
desse romance tão curtinho em páginas traz muitas inquietações. A tentativa aqui
foi de aproximar as elaborações da própria Stigger sobre a histeria, do
procedimento que ela empreende na escrita de Sul. Como mulher do sul do
mundo, Sul esse que por meio de muito sangue, e em meio a tanto sangue tem
caminhado muito proximamente para um futuro em que prevemos ainda mais sangue.
Sul é como disse Alexandre Nodari[6], sangue
que corre das veias e não nas veias. Sangue e texto desmembram-se, e jorram do
desmembrar. Esse é o texto de Stigger que por personagens mulheres e seu sangue
no mundo, cria pela fragmentação dos gêneros narrativos, uma narrativa do
inespecífico, do incompleto diante deste mundo. Do feminino como rasgo do
rastro, como procedimento.
REFERÊNCIAS
GARRAMUÑO, Florencia.
Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de
Janeiro: Rocco, 2014.
STIGGER, Veronica. Sul.
São Paulo: Editora 34. 2016
STIGGER, Veronica. O útero
do Mundo. São Paulo: MAM, 2016.
[1] Imagem da exposição de curadoria de
Veronica Stigger, O útero do Mundo, 2016.
[2]Poema
– Primeira lição, página 19, cenas de abril, 1979, Companhia das Letras.
[3]Poema
sem título, Priscila Menezes, são nossas notícias que daremos, movimento
respeita 2019.
[4]
IMAGEM VERDADEIRA - CERTIFICO, por me haver sido verbalmente pedido pela parte
interessada que, revendo neste cartório o livro de registros de nascimentos
número A-cento e noventa e sete- (A-197), nele as folhas cento e trinta e
cinco* (135), encontrei o assentamento número cento e oitenta e quatro mil
quinhentos e setenta e um (184.571) lavrado no dia seis (6) de fevereiro de mil
novecentos e setenta e três-(1973) referente ao nascimento de: VERONICA ANTOINE
STIGGER, ocorrido no dia vinte e dois (22) de janeiro de mil novecentos e
setenta e três (1973), nesta capital, de cor branca, sexo masculino, filha
legítima de Ivo Egon Stigger, natural do es atado de Santa Catarina, e dona Ida
Antoine Stigger, natural deste estado. (Os anões – p. 58).
[5]
Essa aproximação dos textos de Veronica Stigger foi proposta uma primeira vez
no trabalho de conclusão de curso de Marina Dias Silva. Ver: “O feminino como
transgressão em Sul”, de Veronica Stigger/Repositório UFSC, 2017.
[6]
Texto de orelha do livro Sul, 2016.
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