20 de julho de 2019

Marilene Felinto, a irmã outsider

Andressa Marques da Silva



Não existe mágica, de Rosana Paulino,  2008.


“Eu me invoco eu brigo
Eu faço e aconteço
Eu boto pra correr
Eu mato a cobra e mostro o pau
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar

“Nego dito”, de Itamar Assumpção



            “Sou do mangue, feita daquela lama que tem cheiro de podridão, mas é fértil” é uma das reflexões feitas pela escritora Marilene Felinto em sua participação[1] na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, em 2019. A fala breve, pungente e ovacionada da autora do premiado As mulheres de Tijucopapo, de 1982, versou sobre sua emocionante trajetória, o olhar de uma escritora acerca da literatura, o papel da mídia, da raça e classe como estruturantes das relações sociais no país, além de sua visão acerca da conjuntura política. Destaco entre os tópicos, a reflexão da autora sobre o peso da escrita literária frente à experiência da mulher negra. Na oportunidade, Marilene Felinto nos ofertou uma chave para a compreensão do ethos da escritora negra, que forja a escrita como ferramenta de reflexão e agência sobre o mundo que sempre arquitetou mecanismos para localizá-la no lugar do incompreensível.
            Ter sua experiência considerada demasiado alheia para ser compreendida é uma questão que foi abordada pela escritora caribenha-americana Audre Lorde na coletânea de ensaios Sister outsider: Essays and Speeches, de 1984, que está prestes a ser lançada no Brasil com o título Irmã outsider, pela editora Autêntica. A autora argumenta que ouviu de muitas mulheres engajadas nos estudos de gênero do campo literário que a literatura escrita por mulheres negras vem de experiências “muito diferentes”, o que dificultaria seu ensino por parte das mulheres não-negras. Oras, seria impossível, então, como aponta Audre Lorde, que elas ensinassem Shakespeare, Platão ou Proust. Apesar da crítica, as colocações de Lorde sobre as diferenças nas experiências de mulheres brancas e negras na luta contra o patriarcado não foram elaboradas para distanciá-las, mas sim buscando ampliar as possibilidades de contato e ação entre elas. 
            Na palestra, ao pensar sobre o funcionamento do ato de escrever em sua vida, Marilene Felinto diz que: “Escrever literatura, do meu ponto de vista, só serve, portanto, para o próprio autor do texto tentar entender, elaborar, resolver melhor um fato, uma questão, uma vivência sua de todo insuportável na realidade como ela é” e continua logo adiante:  “Pois, então, é isto. Melhor falar, portanto, de outra coisa que talvez faça mais sentido: é que minha questão também é de classe – para não citar a questão de cor de pele, a que também chamam de raça; para não citar que ambas aqui, no meu caso, no caso da maioria dos brasileiros, não se separam – são estigmas que caminham juntos há séculos”.  Considero que o encontro entre essas experiências de escritora, negra e pobre amalgama o sentimento de outsider descrito por Audre Lorde em seu livro de ensaios, que ao se ver constantemente como a oura, a estrangeira, encontrou e lançou mão da escrita como uma das ferramentas de compreensão e sobre si e o mundo que a oprime para, então, enfrentar medos e compartilhar esperanças.
Na balança de Marilene Felinto o ato de escrever, com seu caráter de cura dos traumas e resolução de questões individuais, teria, naquela palestra, menos relevância que as questões relacionadas à raça e à classe dado nosso contexto social estruturado pelas violências e racismo. Porém, podemos perceber em seu raciocínio, que lidar com a construção de imagens através da linguagem é também erguer formas possíveis para o sentir e o pensar de quem sempre fora considerada a outra, a outsider, nos diferentes campos em que atuou, o que inclui a literatura.  A reflexão de Marilene Felinto sobre a escrita literária pode se aproximar daquela feita por Lorde em relação à experiência social das mulheres negras considerada, por vezes, demasiado alheia. O exercício de alteridade que pode ser experenciado pelo outro da mulher negra, a partir do conhecimento que ela elabora sobre o mundo, pode solapar a pobreza de experiências que nos assola hoje.  Além disso, a recepção desta criação torna impossível a separação entre escrever com o fim exclusivo de resolver questões consideradas internas. O texto pronto é também do outro e a possibilidade de alteridade que a escrita literária promove pode ser a porta de entrada para alargar o horizonte de expectativas entre perspectivas que se desconheciam.
            Além da resistente e bela reflexão feita para a FLIP, que ainda teceu considerações polêmicas acerca da obra do homenageado deste ano na feira, Euclides da Cunha, há novidades em relação às obras de Marilene Felinto em 2019 que precisam ser divulgadas e conhecidas. A autora acaba de lançar novas edições de Obsceno Abandono e As mulheres de Tijucopapo, além dos os inéditos Sinfonia de contos de infância: (para crianças e adultos), Mulheres Negras, Fama e Infâmia: uma crítica ao jornalismo brasileiro, Contos reunidos, Autobiografia de uma escrita de ficção – ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem, todos disponibilizados em e-book e alguns na versão impressa. Destaco a obra Mulheres Negras: carta aberta à um dia amiga Márcia, em que temos a oportunidade de nos reencontrarmos com a voz firme e audível que Marilene Felinto nos ofertou, principalmente, na época em que fora colunista da Folha de S. Paulo, entre 1989 e 2002, e posteriormente da revista Caros Amigos. Neste livro, Marilene faz o exercício de explicar a uma ex-amiga dos tempos de escola, loira e rica, que lhe procurou nas redes sociais, o porquê da impossibilidade de retomarem a amizade nos dias de hoje. Como é perceptível, essa experiência diz respeito ao cotidiano da maioria das pessoas no Brasil de hoje. Além correspondência pessoal que o texto evoca, as ponderações temporais e conjecturais da voz de uma jornalista que nunca se fez de rogada diante dos mecanismos escusos que soterram o país, é uma experiência imperdível para aqueles(as) que se indignam com a bestialidade que corre solta por aí.
            Já em Autobiografia de uma escrita de ficção – ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem (2019), temos a oportunidade de conhecer a dissertação de Mestrado da autora, defendida na PUC – Rio em 2019, mas que já havia sido iniciada e interrompida pela autora nos anos de 1990 quando fora aluna do mestrado do Departamento de Filosofia da USP. Especialmente para pesquisadores(as) da área de literatura, esse livro faz-se especial pela proposta de revisita de uma obra por sua autora. Marilene Felinto busca encontrar no que já escreveu os disparadores, os momentos, as fagulhas que os geraram, o que muitas vezes a leva para um exercício de reescrita, mas com uma voz audível que nos permite reconhecer seu complexo exercício de reencontro.
            Como jornalista, Marilene Felinto teve uma atuação de grande destaque no período em que foi colunista da Folha de S. Paulo e ficou conhecida por ter um olhar ácido aos conflitos engendrados no país, como uma excelente outsider no mundo da comunicação social ávido por pasteurizar os pontos de vista. Lembro-me bem de acompanhar seus textos para a Caros Amigos, em meados dos anos 2000, pois coincidiram com meu ingresso na graduação como estudante das primeiras turmas de cotistas do país. Hoje sei, ao olhar para trás, o quanto as palavras de Marilene ajudaram-me a compreender o desconforto que eu não sabia ainda nomear, mas que sentia no espaço hostil às trajetórias desiguais que era a academia daquele momento. No livro Fama e Infâmia: uma crítica ao jornalismo brasileiro, Felinto reúne alguns desses textos da Caros Amigos a outros publicados na Folha de S. Paulo, além do inédito “Projeto Folha e Projeto Otavio” em que a autora, por ocasião da morte de Otavio Frias, editor chefe da Folha e seu ex-chefe, reflete sobre as sujeiras do jornalismo e seus caminhos escusos.
            O olhar da autora de ficção ao mundo da escrita não-ficcional revela-nos o mal-estar que ela sentiu ao ver-se emaranhada no jogo feito grande que mídia corporativa que segue ditanto as cartas do jogo no país. Marilene Felinto, em outubro de 2002, quando da eleição de Lula, escreveu um texto lúcido e tocante sobre sua vitória. A autora parabenizou não a pessoa, mas a ideia que levou um nordestino pobre, a personificação de todo preconceito das elites arrogantes, ao cargo máximo da república. Em certa altura do texto, premonitoriamente, anuncia Felinto: “há fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de tudo para aterrorizar e destruir”. O olhar agudo de Marilene Felinto compreendeu antecipadamente o cenário que se montava, talvez ela já sentisse de perto os ataques monstruosos que jornalistas sérios, professores, políticos e ativistas hoje são alvos. A ponta de melancolia de Felinto naquele momento efusivo para os corações progressistas, já anunciava a necessidade de organizar o pessimismo para avançar.
            Walter Benjamim no ensaio “Experiência e pobreza” discute o desenvolvimento da técnica que, sobrepondo-se ao homem e à mulher, ofertou-nos uma nova forma de miséria: a pobreza de experiências. A escrita de Marilene Felinto, sobretudo a ficcional, se opõe à complacência paralisante que busca galvanizar pontos de vista levando-nos ao contentamento com o pouco, com o nada, o que para Benjamin, é uma espécie de barbárie. A obra de Felinto é embebida de uma desilusão radical com seu período, mas ao mesmo tempo é completamente comprometida com ele e isso é a chave para que avancemos. Marilene Felinto se rebela contra a pobreza de experiências como uma irmã outsider, sobre a qual refletiu Audre Lorde, num convite ao enfrentamento do medo e da quebra dos silêncios.


Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura – Volume 1. Série Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119.
FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. São Paulo: Editora 34, 1992.

FELINTO, Marilene. Contos reunidos. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
FELINTO, Marilene. Fama e infâmia: bastidores do jornalismo brasileiro. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
FELINTO, Marilene. Mulheres negras: carta aberta à um dia amiga Márcia. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
FELINTO, Marilene. Autobiografia de uma escrita de ficção: ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
LORDE, Audre. “La transformación del silencio em lengaje y acción”. In: LORDE, Audre (org.). La hermana, la extranjera. Madrid: Horas y Horas, 2003.



[1] Vídeo da fala de Marilene Felinto na FLIP 2019: https://marilenefelinto.com.br/flip-2019/ 

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