31 de dezembro de 2020

O Sarau da Cooperifa: forma e memória das noites

 

Rafa Ireno

Imagem: Grafite de Eduardo Kobra

Entre uma pergunta e outra sobre a Cooperifa, em algumas entrevistas, como num respiro, Sérgio Vaz sussurra: “É difícil explicar o que acontece para quem nunca foi…”, depois, retoma, insiste no raciocínio, fala sobre seu amor pela poesia, sobre o direito à literatura, a necessidade da formação de um público leitor na periferia, a dessacralização da arte, o problema do cânone e como, tendo em vista isso tudo, idealizou e desenvolveu, junto do poeta Marcos Pezão, em 2001, o Sarau da Cooperifa – um dos pilares da literatura periférica, no extremo sul de São Paulo.

            É verdade que, nos últimos anos, a produção artística das periferias tem sido reconhecida na cultura brasileira contemporânea (inclusive, pelo mercado editorial). Também é verdade que este reconhecimento se dá antes no plano ético ou político do que estético. O que já é um passo, porém, não suficiente. Este desequilíbrio, a meu ver, relaciona-se muito a um problema ligado à apreensão, às ferramentas de análise para se abordar formulações estéticas descentralizadas. Os utensílios críticos não foram imaginados segundo às necessidades das artes contemporâneas, menos ainda, àqueles feitos nas margens da sociedade. Por consequência, ao começar essa reflexão, é o hiato do poeta, as palavras não ditas no tempo d’um copo d’água, que ficam reverberando em mim. Quero dizer, o princípio da coisa é fácil de explicar: pessoas reunidas para ler e escutar poemas. Mas, colocado assim, não se compreende a dimensão, a potência transformadora e o valor estético dos saraus. A simplicidade é difícil. O gesto despretensioso, de compartilhar versos em grupo, é a transformação de sentimentos, histórias, desejos, angústias, sonhos, numa forma específica, a Cooperifa, edificada coletivamente a cada terça-feira, das 20h30 às 22h30, no Bar do Zé Batidão.

 

II

            Trata-se, entre muitas outras coisas, de um sistema inédito de organização literária no Brasil, que traz consigo uma dificuldade enorme de pensá-lo, observá-lo, comentá-lo, seja numa entrevista, seja num ensaio ou numa tese. Em parte, porque ele exige naturalmente um novo modelo de crítica. Um que não corrompa, em nome da objetividade da reflexão, a espontaneidade, o frescor e ineditismo do movimento; ao mesmo tempo em que lide com o desafio de traduzir em discurso uma experiência baseada nas vivências do lugar e do corpo na periferia. Carece de ter um olhar consciente da própria contradição. A literatura periférica tenta fincar os pés no chão, no território e diminuir a distância entre a poesia e a gente. Ela ambiciona reverter os símbolos em atos, a palavra em ação, a fim de mudar a realidade imediata. Enfim, talvez, por isso, é uma tarefa perniciosa e quase sempre frustrante a de falar da Cooperifa estando fora dela.

 

III

            Todas terças-feiras não importa onde esteja no mundo, é estranho não me arrumar, pegar o ônibus no terminal Sto. Amaro até a Piraporinha, subir o morro e chegar no bar do Zé Batidão (R. Bartolomeu dos Santos, 797 – está Jardim Guarujá no Google, mas, ali, ainda é Chácara Santana), pois, de 2013 até 2019, quase todas as semanas, eu estava na Cooperifa. Geralmente, sentado na escada, à direita do microfone. Para falar verdade, ia bem mais cedo, evitava o trânsito na M’boi Mirim e, como nasci e cresci poucas esquinas para baixo do sarau, visitava minha família, na rua do colégio Mario Moura. Vó mora lá até hoje. Jantava com ela, depois subia para o sarau. Foram tempos complicados: nos últimos anos, o vô adoeceu. Ele faleceria poucos meses depois de minha partida – em 2019, vim para França completar meu doutorado.

            Se olhar no mapa dá para ver que são poucos metros separando minha casa do Zé Batidão, ainda assim, na memória, este caminho se desdobrava numa grande estrada, uma linha longa, estendida entre dois pontos, duas periferias – a primeira que me repulsava, as violências, dores, silêncios, solidões; e, na outra beira, a festa, o coletivo, a criatividade, me atraindo, dando vontade de ficar mais um pouco. Essas duas extremidades, é claro, não estão completamente isoladas. A divisão tem a ver, eu acho, com a substância separando a ficção da realidade. Algo como uma fissura entre o que foi e o que deveria ter sido.

 

IV

            A Cooperifa, então, não é somente um espaço onde circula a literatura, o sarau é em si mesmo uma forma, por assim dizer, um poema. Uma releitura da própria periferia. Em outras palavras, é uma representação estética, com suas regras – uma poética – com suas razões de ser, seus ritos, tensões, que foram se construindo, adaptando-se, mudando ao longo do tempo e de acordo com o território.

            No começo, por exemplo, há uma abertura quase sempre feita por Sérgio Vaz. Um chamado para abrir os trabalhos, que serve tanto como boas-vindas, quanto como um lembrete do significado da Cooperifa, os princípios do sarau e, por fim, exige-se o silêncio para ouvir a poesia. Há, também, um encerramento com a pessoa que está lançando livros ou com música para celebrar o fim de mais uma reunião e assegurar a volta para casa com segurança. Entre estes dois pontos, estão certas passagens obrigatórias, invariáveis, instantes reconhecíveis e sobretudo esperados, que marcam o tempo da noite e mexem com a expectativa do público: é o caso, sem dúvida, da declamação de Dona Edite, pois, quando sua voz de setenta e oito anos corporifica os versos de “Navio Negreiro” de Castro Alves, o registro se eleva ao terreno da épica. Esta senhora conjuga muitos elementos em sua figura, desde seu destino individual quanto da história coletiva da zona sul de SP. Tal momento se repete magistralmente todas as terças-feiras e quando, por algum motivo, não acontece – eu lembro que a sensação é a de que falta alguma coisa. O mesmo sentimento se repete, por outras razões, na vez de Sérgio Vaz, de Rose Dorea e de Jairo Periafricania.

            Depois, o arranjo da obra se condiciona pela ordem de chegada dos participantes – aqueles considerados poetas da comunidade têm preferência na fila, afinal, já estavam neste espaço há mais tempo. O ritmo está nas mãos de Lu Sousa, uma escritora proeminente lírica, que anota os nomes na lista e conduz discreta o sarau. É ela quem lê as noites, que conhece os tons, os gestos, as linhas de cada um dos presentes e, com isso, tece o enredo do sarau. Avisa: um poema curto, por favor, está cheio hoje, certo? Às vezes adianta um, às vezes, atrasa o outro de acordo com a atmosfera. Neste intermeio, como um acréscimo eventual, frequentemente, artistas de outras paragens, de Estados diversos ou mesmo de outras regiões da cidade, visitam o espaço e contribuem ao sotaque da Cooperifa, que se tornou uma confluência da poesia na cidade de São Paulo. Essa prática, que se ensaia tem dezenove anos, condiciona as formas das obras da periferia, as tensões e ritmos. Daí, de repente, tem um corte, a festa se interrompe. Algum dos organizadores vai ao microfone, um papelzinho na mão, e declama a placa do carro bloqueando o caminho do ônibus na rua, o silêncio, a procura, o proprietário identificado, o 5318 passa e a poesia retoma.

 

 V

             Não sei bem o porquê, num destes dias frios e tristes em terra estrangeira, peguei-me pensando que existe mais poesia do que prosa na literatura periférica. Talvez, por causa dos saraus, talvez apenas seja solidão. Então, eu enviei uma mensagem para o Prof. Fábio, poeta e pesquisador da Cooperifa, perguntei-lhe sem mais, sem introdução; o meu anseio era que ele respondesse às minhas urgências:  “Por que você acha que na periferia temos, de maneira geral, menos romances?”. Sua resposta foi a seguinte:

         Trata-se de uma característica histórica, a meu ver, de grupos que menos exercem seu “direito à literatura” terem suas experiências com textos das esferas literárias iniciadas ou intensificadas com a poesia. Antonio Candido, em “Sentimento de Identidade”, por exemplo, fala sobre a popularização da poesia nas camadas menos letradas durante a consolidação do Romantismo entre nós. Alguns teóricos, ao tratar sobre literatura negra, como Zilá Bernd, apontam para predominância de uma (poesia) sobre outra (prosa). Ambos, a meu ver, a despeito de terem enfoques muito específicos, podem ajudar na reflexão acerca de a poesia permitir a elaboração de mensagens de forma mais rápida aos objetivos de quem escreve (o que não se confunde com falta de capacidade) e maior possibilidade de fruição nos processos de interação social (o que ajuda, ainda em minha modesta opinião, a valorizar iniciativas como os saraus periféricos, os slams, as batalhas de rima); como professor, inclusive, é massacrante o placar de estudantes e ex-estudantes que me procuram para expor suas artes com poemas em relação às prosas, crônicas e contos, por exemplo.

             A minha interrogação, é claro, disfarçava uma perspectiva negativa. Eu inseri o ato literário numa linha de montagem, na qual o romance se traduziria no elemento mais complexo da cadeia, aquele a ser buscado. Logo, o fato de não ser a forma prioritária da literatura periférica se ligaria a uma deficiência estética do movimento. Contudo, gentilmente, o professor Fábio Roberto Ferreira Barreto chamou minha atenção para o processo de formação de uma literatura, a função didática e comunicativa da poesia, lembrou-me das condições do bairro e de nossas emergências. Fez pensar, igualmente, na possibilidade do sistema de saraus já ser essa construção “mais complexa”, ou seja, que essa organização responda aos anseios formais de um grupo de pessoas, num lugar e tempo específicos.          

            Não me parece por acaso que essa manifestação tenha acontecido, em primeiro lugar, na zona sul de São Paulo. Essa região têm um histórico de engajamento, desde as demandas por moradias no Jardim São Luiz; passando pelos grupos de mulheres do Ângela, reunidas para resistir às violências policiais, até os sindicatos operários da área industrial de Santo Amaro. Existe o registro cultural das lutas negras, do movimento Black e do Hip-hop, fortes presenças neste canto da cidade. Outro aspecto a não ser ignorado, quando se pensa nos saraus, diz respeito a chegada do Partido dos Trabalhadores no poder, a figura de Luiz Inácio Lula da Silva indica um instante particular também no imaginário brasileiro.

VI

            Dona Edite quem costuma dizer que cada encontro é como se lêssemos um livro, todos juntos. Tem-se aqui uma boa chave de interpretação, porque implica pensar numa nova obra se escrevendo a cada terça. Nenhum sarau é igual ao outro. Ora, descontando feriados, férias, impedimentos, os dezenove anos representam mais de novecentas semanas, ou seja, 900 livros escritos e lidos coletivamente. Interpretem estes dados com o seguinte acréscimo: refiro-me apenas a um grupo. Se, por exemplo, adicionar o Sarau do Binho, do Grajaú, Suburbano Convicto, Elo da Corrente, Sobrenome liberdade, entre muitos outros, uma vez que, em certos momentos, eram mais de cem saraus espalhados nas periferias de São Paulo e do Brasil inteiro; trata-se da formação de um sistema literário quase autônomo, gigantesco e completamente paralelo ao cânone brasileiro. E, como era de se esperar, até pouco tempo, ignorado pela crítica tradicional. Mas, voltando ao raciocínio anterior, tal compreensão permitiria pensar que o melhor método de análise, para se olhar com justiça a literatura periférica, seria um balanço equilibrado entre cada noite e todas as noites. 

            VII

            A sabedoria de Dona Edite aponta, inclusive, para uma condição ambígua do movimento; porquanto esta realização estética não é recolhida num objeto material. E, eventualmente, quando isso acontece no formato de um livro, na passagem das noites para o papel, perde-se justamente a substância humana do corpo, a presença e os gestos[1]. A única antologia do sarau, de 2006, não representa o que foi a minha experiência a partir de 2013, assim como hoje, se houvesse outra publicação, não seria o mesmo de quando eu estava lá. Aliás, às vezes, este descompasso provoca um efeito prejudicial à literatura periférica (que acredito ser melhor resolvido em outras artes como na música e no cinema). Muitos poetas, eventualmente iludidos pelo sucesso de suas performances, publicam prematuramente. Nas páginas solitárias, entretanto, os versos não funcionam como no sarau, a leitura do livro mobiliza aspectos diferentes (o que é justamente o assunto tratado aqui!), de modo que os reveses da linguagem poética se evidenciam, acontecem equívocos e isso dá um ar de imediatismo à poesia.

            Se, então, por um lado, essa efemeridade configura um traço lírico e, de alguma maneira, resistente, na medida em que se estabelece numa outra relação temporal, dispensando a ideologia capitalista de que tudo deva resultar num produto (para ser consumido…), por outro lado, a dificuldade em gerenciar o passado, inconscientemente, reproduz o modus operandi da sociedade: o apagamento violento dos traços materiais e afetivos dos pobres. “Sarau” deveria ser sinônimo também de “arquivo”. Afinal, a tensão estética não é outra coisa senão uma contenta com o tempo, isso intensificado na quebrada, obrigando a desenvolver uma forma resistente à lógica opressiva; a buscar uma criação que valha um respiro de fabulação aos trabalhadores. Uma literatura capaz de dar uma esperança mínima, que feito um espelho, faça a gente da periferia se enxergar, pois é uma versão de suas histórias contadas ali. Porém, a indissociável proximidade com a matéria (o fato dela se constituir do corpo), inevitavelmente, como efeito colateral, traz em sua fatura poética a reprodução do drama trágico da periferia: a desapropriação da memória. Evidentemente, a sensibilidade periférica está atenta para continuar desenvolvendo estratégias para subverter essas condições. E, hoje, existem novas possibilidades de expressão poéticas. A questão é saber se isso acontece na dimensão das urgências e, infelizmente, à altura de lutar contra o futuro que se vislumbra no Brasil.

 

VIII

            Antonio Eleilson Leite, no texto “Literaturas da Periferia: o desafio da estética”, no site Outras Palavras, desenvolve uma sincera e corajosa análise, identificando que o argumento social e político do movimento periférico, poderoso e fundamental, está próximo de seu esgotamento. Quase não é mais suficiente para sustentar uma construção, que se diz, literária. Ele propõe, desta maneira, coisa que eu concordo, que a periferia dispute igualmente os conceitos estéticos, que se aproprie das reflexões também formais, o que implicaria, então, num trabalho crítico. Nesse sentido, o autor escreve na conclusão:

Mas para alcançar o reconhecimento artístico, é necessário que esta arte seja submetida à crítica:[…] Não estão em discussão os propósitos políticos do movimento, tão bem expostos nos manifestos da Semana de Arte Moderna da Periferia [texto de Sérgio Vaz]. A questão é analisar que arte está sendo produzida a partir desses propósitos. O bordão de Alessandro Buzo, que diz: “Pensavam que não sabíamos ler e agora estamos escrevendo livros”, já não dá conta da cena atual. É hora de discutir a qualidade literária desses escritos.

             Neste trecho, toca-se no ponto nevrálgico da coisa. Gostaria tão somente de acrescentar o seguinte: também é necessário que esta “crítica” se reelabore, redefina os seus próprios parâmetros. É indispensável que se estabeleça uma dinâmica dialética, captando as contradições e auxiliando o próximo passo, a superação do esgotamento – no plano estético. O trabalho, em outras palavras, é um exercício de simbiose, pois, se não for assim, “a crítica” será apenas mais uma barreira, que vai repulsar as artes periféricas em nome de um suposto valor estético; vai identificar as formulações como ruins, inferiores, desprovidas de complexidades artísticas. Esta “crítica” será somente mais uma instituição aumentando nossa desigualdade. Por isso, no excerto destacado, penso que o verbo “submeter” seja problemático; “dialogar”, “colaborar” ou até mesmo “criar” uma nova maneira de refletir a arte contemporânea, seriam termos mais apropriados.

IX

            Não se pode ignorar o lado romântico/utópico do movimento, anunciado em poemas como “Literatura das Ruas” e “Victor Hugo” de Sérgio Vaz. Neste sentido, por sinal, Os Miseráveis se refere a uma das leituras preferidas do poeta. É curioso o fato de que Hugo, enquanto escrevia a sua grande obra, tinha consciência que sua forma inovadora nutriria uma dificuldade de apreensão. Num prefácio deste romance, inclusive, leio a melhor conclusão para meu ensaio: uma carta de Hugo, dia 7 de fevereiro de 1862, para Albert Lacroix, na qual previne seu editor: “Você arriscaria se enganar, tentando compreender definitivamente ‘isso’ ou ‘aquilo’, e não olhando a perspectiva do TODO, você cometeria erros de perspectiva. Este livro é uma montanha; ele não pode ser medido, nem mesmo visto com clareza; unicamente à distância. Quero dizer, só por completo”. Da mesma maneira, “só por completo” será possível compreender o Sarau da Cooperifa.



[1]No evento “Centralidades Periféricas: Reflexões Sobre Literatura Periférica e Universidade”, realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP, dia 18 de junho de 2018, Heloisa Buarque de Hollanda sugere, para vencer esse problema, uma publicação em livro com códigos QR, conectando as páginas a um registro audiovisual.


*Rafa Ireno é escritor e crítico da periferia de São Paulo, do Chácara Santana. Neste momento, faz um doutorado sobre poesia e política nas obras de Rubem Braga e Jacques Prévert. Recentemente, publicou de maneira independente o segundo fascículo de poemas em prosa chamado Três por Quatro. Desde 2019, é colaborador do Letras in.verno e re.verso (http://www.blogletras.com/) e, não tão amiúde como gostaria, escreve em seu próprio blog (http://amiudo.blogspot.com/ ). E-mail: irenorafa@gmail.com




24 de dezembro de 2020

A raridade do sujeito negro

Marcel Silva

Joan Miró (1924), Harlequins Carnival



Quem diria que o fator representatividade produziria tantas obras marcantes e reflexivas no Brasil de 2020? Talvez, nós. Nós que observamos ansiosos os desdobramentos políticos e educacionais e desejamos que essa pátria seja gentil com todos os seus cidadãos. Nós que apoiamos a igualdade e lutamos pela cidadania. Nós que pensamos que a educação é a chave para um mundo melhor.

            Após a leitura de O Avesso da pele, de Jeferson Tenório e Marrom e amarelo, de Paulo Scott fica a sensação de que, finalmente, a população negra tem representantes na ficção brasileira que, por meio da educação, conseguiram condições de vida mais dignas, alçando o homem negro a um patamar de humanidade. Os estereótipos foram sobrepujados e as personagens vivem temas universais, usando os argumentos possíveis, sentindo e reagindo ao mundo como quaisquer pessoas e assumindo um lugar que, antes, fora estereotipado, mas, agora, também pertence literariamente ao coletivo negro.

            Tenório criou um mundo de introspecção, onde o protagonista rememora sua existência em busca de ressignificações que o ajudem a suportar o assassinato do pai. Enredados pelo racismo, os personagens transitam pela vida e são construídos por meio de uma tessitura que liga os fios da crueldade e da beleza, numa obra tocante, com traços de lirismo.

            O amarelo, de Scott, é um homem que está em conflito por causa de seu tom de pele mais claro e pergunta-se por que seus familiares não assumem uma posição mais atuante diante da sociedade segregadora em que vivem. Dentre os diversos questionamentos, surgem personagens adaptados à realidade gaúcha, utilizando mecanismos de sobrevivência que os mantenham em uma situação segura. Todos vivem suas singularidades.

            Em comum, as obras apresentam personagens que, de uma maneira geral, conhecemos no mundo real. São homens e mulheres que lutam, sofrem, amam e se frustram. Eles têm famílias, empregos e aspirações. Suas expectativas possuem as limitações ou a grandeza comum a qualquer pessoa, no entanto, é a cor de suas peles e o protagonismo dos autores que chama a atenção para a representação. Mesmo que os movimentos de insurgência contra o racismo sejam tão antigos quanto a invasão desse país pelos europeus, pouquíssimas obras apresentaram a humanidade das pessoas negras, sob uma ótica protagonizante, em que as personagens fossem mais do que clichês.

            Donos de suas vozes, esses personagens encenam uma revolução na composição literária que foi mantida sob o domínio de uma elite que não aprovava a presença negra em lugar algum. Muito menos nas Belas Letras. Ainda assim, autores, narradores e personagens chegaram às páginas dos livros e são procurados por uma gama de leitores que têm a urgência de reconhecerem-se na grafia ficcional. As histórias contadas perpassam as mazelas do racismo estrutural, contudo, colocam em primeiro plano a subjetividade de pessoas que foram bestializadas e, ainda hoje, lutam para que não sejam exterminadas por um Estado negligente e sua força policial. A valorização dos sujeitos, historicamente marginalizados, é o despontar de uma literatura que inclui e, finalmente, reconhece suas vivências para além dos estereótipos.

            É possível que estejamos vivendo um momento de transformações para o coletivo negro, porém, com uma lentidão e um atraso que refletem a crueza da realidade brasileira. Hoje, após conseguirem adentrar as portas elitistas das universidades e com o auxílio de tecnologias de informação capazes de unir, rapidamente, os mais distantes lugares do globo, a comunidade negra pode ver-se, sob diversos aspectos, em um universo que a mantinha sob o jugo da estigmatização, mas que está moldando-se para realocar seus membros em textos arquitetados para tal fim. Investidos do seu lugar discursivo e conscientes de que suas ações são importantes para o processo de emancipação negra, os autores produzem uma fluência literária que interrompe um ciclo violento de racismo. Mesmo que não vivamos em Wakanda e não tenhamos um herói trajado como uma pantera, temos a raridade do sujeito negro que transforma a realidade, performando um heroísmo a seu modo. A literatura não tem a finalidade de modificar as estruturas sociais, ainda que as represente; apesar disso, e sobremaneira, atreve-se a tanto.

 

*Marcel Fernando da Silva é turismólogo e graduando no curso de letras Português/Espanhol do Instituto Federal campus Restinga.


18 de dezembro de 2020

Notas sobre o romance regional

 

Eurídice Figueiredo (UFF/CNPq)

Auréolas da Foz (2017), de Olívio Ataíde


Essas anotações foram suscitadas pelos comentários críticos à resenha do romance Torto Arado, escrita por Raquel Carneiro e publicada na revista Veja de 15 de dezembro de 2020 com o título de “Com Torto arado, Itamar Vieira Júnior dá novo fôlego ao romance regional”. A resenha foi postada pelo autor no Facebook, de modo que pude acompanhar as reações de pessoas do meio literário à atribuição da categoria “romance regional” à obra, premiada inicialmente em Portugal no concurso da Leya e agora consagrado com o Jabuti de melhor romance.

De maneira sucinta, o debate em torno da oposição regional/nacional X universal remonta ao romantismo, quando havia, de um lado, o romance indianista de José de Alencar e, de outro, o romance urbano de Machado de Assis, cujo texto “Instinto de nacionalidade” deu forma teórica à percepção do que se esperava dos escritores brasileiros para criar uma literatura própria sem apelar para o exotismo. Na década de 1930 o romance realista, de cunho social, se consolida pelas mãos de escritores nordestinos como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e, no sul, por Érico Veríssimo. Os romances escritos por eles foram chamados de “romances regionalistas” porque narravam histórias que se passavam no mundo rural de suas regiões, ao passo que aqueles que tinham como cenário o Rio de Janeiro, capital da República, eram “universais”. Essa classificação é generalizadora porque alguns romances desses autores eram urbanos; entretanto, é preciso ressaltar que os autores “regionalistas” fazem parte do cânone da literatura brasileira, tendo sido traduzidos em outras línguas e muito bem recebidos nos grandes centros de consagração. Todavia, o termo continua sendo pejorativo porque é confundido com o naturalismo do primeiro regionalismo do século XIX.

Antonio Candido, no seu artigo “Literatura e subdesenvolvimento”, faz uma correlação entre as diferentes fases do regionalismo brasileiro e as tendências literárias da América Hispânica. Publicado no livro América Latina em sua literatura em 1972 pela editora Perspectiva, portanto em pleno boom do realismo mágico de García Márquez, José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Candido percebe que toda essa produção explorava o mundo do interior (o altiplano, o sertão, os confins). O crítico uruguaio Ángel Rama, criador do conceito de transculturação narrativa, considerava esses três escritores, assim como Guimarães Rosa, como representantes dessa tendência, em outras palavras, eles seriam transculturadores. Já Candido chama Guimarães Rosa de superregionalista, alguém que supera e, ao mesmo tempo, continua sendo regionalista; destaca o caráter metafísico e universal da obra do autor mineiro. Ele afirma que muitos escritores “rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas (...). Mas isto não impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior importância”. Ele aponta o “refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem e adquirem universalidade” (1972, p. 361).

Esses quatro escritores – García Márquez, Rulfo, Arguedas e Rosa – seriam os epítomes dessa geração cuja consciência política se explicita ao explorar o subdesenvolvimento da América Latina numa escrita não-naturalista, que faz apelo à magia, ao absurdo, ao monólogo interior, à elipse e ao fantástico.

E Torto arado, o que teríamos a dizer desse romance que foi reconhecido em Portugal antes mesmo de ser publicado no Brasil? Ele é, antes de mais nada, muito elaborado, não só na linguagem como na estrutura, portanto, sua fatura requintada torna-o universal. Mas ser universal não quer dizer eliminar a dimensão regional e nacional, porque toda literatura parte de um particular, às vezes de uma micro-região, e fala ao mundo. Devido a uma coincidência -- li o romance de Itamar no momento em que era publicada a tradução de Senhores do orvalho, do escritor haitiano Jacques Roumain, para a qual escrevi o posfácio – percebi elementos comuns: a seca que dificulta ainda mais a vida da gente pobre, o personagem que tem de se deslocar para tomar consciência política e lutar contra a opressão, a resistência das mulheres, a utilização de religiões de matriz africana e a força poética da obra. O romance haitiano, publicado originalmente em 1944, é suficientemente “universal” para despertar o interesse da editora Carambaia em 2020.

O problema que transparece nos comentários que apareceram no Facebook é o etnocentrismo, que faria com que só escritores do sudeste, principalmente do Rio e de São Paulo, pudessem ser urbanos e universais. Ainda que a imprensa muitas vezes caia nos clichês, como, p. ex., ao falar de Moacyr Scliar, escritor judeu, que sempre explorou as questões judaicas em sua obra, era sempre chamado no jornal O Globo de escritor gaúcho. Outro exemplo: parece-me equivocado estabelecer uma equivalência entre  Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus como “escritoras vindas da favela” porque, embora Conceição tenha, efetivamente, vivido na favela em sua infância em Belo Horizonte, ela teve acesso à educação, tornou-se professora e concluiu um doutorado. Sem desmerecer Carolina, é claro, pois como adverte a pesquisadora Giovana Xavier em entrevista ao jornal O Globo (2019) Carolina deveria ser apresentada como uma intelectual negra e não como uma favelada. E realmente, em Diário de Bitita ela interpreta o Brasil a partir de seu lugar de mulher pobre e negra que vê como funciona a sociedade brasileira. O clichê contém uma parte de verdade, mas tende a confundir, nivelando padrões a enunciados simplificados e repetidos à exaustão.

Torto arado, de um autor jovem (nascido em 1979), se distingue da maioria da produção atual brasileira que é urbana, não importando se o romance se passa na praia de Garopaba ou em Porto Alegre, em São Paulo ou no Rio. Perscrutando o cenário, olhando para meus livros, o único autor que me parece guardar semelhança com Itamar é Ronaldo Correia de Brito, cearense radicado no Recife (nascido em 1951). Na orelha de Livro dos homens, escrita por Marco Lucchesi, se lê: “Posso afirmar sem erro que este é um dos livros mais importantes de que tenho notícia nesses últimos anos. Um Brasil profundo, mas livre de cores locais. Uma palavra plural, embora incisiva. Uma imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao espaço ficcional de onde surge e para onde volta” (grifos meus). Em outras palavras, é regionalista sem sê-lo, ou, pelo menos, não é o que se costuma chamar de regionalista, embora explore a dimensão humana desses confins de Brasil.

 


7 de novembro de 2020

DES/APARECIDOS

 

Nicoletta Vallorani*

Imagem: The Disappearing Man, de Howard Ross


 

As palavras dão forma ao mundo. Enquanto digo isso, me assusto, porque penso nas palavras que estão se apagando agora, nesta infeliz contingência, e me convenço que talvez seja melhor permanecermos mudos. As palavras são pedras, como diz Portelli, combinando injustiças diferentes e colocando lado a lado casos como Giulio Regeni [um doutorando italiano da Universidade de Cambridge, que foi sequestrado no dia 25 de janeiro de 2016 e encontrado morto em 3 de fevereiro daquele ano na cidade do Cairo, Egito. As condições do corpo demonstravam sinais de tortura. Até hoje as autoridades egípcias não respondem a todos os questionamentos para uma investigação transparente sobre o assassinato de Regeni. Uma campanha da Anistia Internacional persiste pedindo verdade sobre o que foi feito contra ele] e BlackLivesMatter. As palavras dão aparência a e fazem desaparecer pessoas, tornam-nas visíveis ou apagam as coisas e situações. São armas que devem ser usadas com cautela.

 

As palavras da pandemia, em particular, como escreveu anteriormente Susan Sontag, têm uma validade dupla, uma genealogia metafórica dupla, que combina o desejo de abstrair-se da dor com a consciência de que o corpo doente é real, existe, é violável, é violado. As medidas “simbólicas” que dias atrás invocavam um dos governadores de uma região italiana são – se definidas como tais – ofensivas e perigosas. Estas cancelam a consciência dos corpos verdadeiros para preencher o espaço com um léxico político conveniente.

 

Há alguns anos, a partir do meu ponto de vista não médico, me ocupei dos temas epidemia e contaminação, trabalhando sobre Derek Jarman e sua potente expressão artística que, para esse extraordinário pintor e filmaker, é ligada à consciência de uma morte à época inevitável para quem adoecia de AIDS. Antes, como hoje, o léxico prevalente para falar de infecções virais era maniqueísta: saudável ou doente, limpo ou sujo, normal/normativo ou anormal/anômalo. Nenhuma gradação, nenhum espaço intermediário. Acima de tudo, uma terminologia bélica penetrante, militarizada já a partir dos acrônimos utilizados: quem contraía AIDS, por exemplo, era um PWA (“Person with AIDS/ Pessoa com AIDS”), uma definição com mais de uma proximidade com o militar POW (“Prisioner of War/Prisioneiro de guerra”).

 

Praticamente, desde os estudos de Susan Sontag sobre como se contam as epidemias em relação à linguagem expressiva de hoje, pouco mudou, senão que as metáforas biopolíticas de caráter militar por vezes são usadas comicamente sem um propósito. Como por exemplo, alguns dias atrás, tivemos que ler em um jornal de tiragem nacional as palavras de um secretário da região da Lombardia que declarava orgulhosamente: “Estamos perfeitamente equipados para enfrentar a Armada Vermelha”, quase como se o vírus fosse um comunista – o único comunista sobrevivente, provavelmente, no planeta – e pudesse ser derrotado com armas.

 

Na verdade, uma das tantas coisas que estão indo parar na conta das vítimas é a capacidade de “ver” aquilo que está acontecendo, e de contá-lo de modo que a narrativa sirva àquilo que servem as histórias: entender, encontrar caminhos, tornar visível, desvendar o emaranhado de erros. Na estupidez política que parece um sinal dos tempos, esta capacidade de dar forma ao desastre é um dos ilustres desaparecimentos, enquanto aparecem em todos os lugares especialistas em política, epidemiologia, especialistas em adolescentes, escolas, economistas autodidatas.

 

Entre esses se move, perdido, o cidadão comum, e este adjetivo, como poderemos ver, é importante – é um pouco como o estrangeiro, o migrante, a mulher, o homossexual, a figura não normativa, isto é, todos precisam se esforçar para não sê-lo (fingindo-se, portanto, de especialista em qualquer coisa) e de não vê-lo (se conseguiu sair da categoria de invisível).

 

Em alguns lugares que não se aconselha frequentar, o cidadão comum é formalmente inserido como criatura de segunda ordem. “Durante a pandemia, o sistema de saúde privado abriu seus quartos luxuosos para pacientes comuns que eram transferidos do setor público” proclamava o secretário de saúde da Lombardia, Gallera, no dia 24 de junho de 2020, e hoje essa mesma voz, com relação à vacina antigripal, diz: “O objetivo é cobrir as faixas de risco. Livre mercado? Não podemos nos ocupar do paciente comum”. Nos anos 70, Raymond Williams, professor, estudioso e ativista, orgulhosamente afirmava “Culture is ordinary”: a cultura é de todos, um bem comum, não prerrogativa de uma elite de intelectuais. Hoje temos o “paciente comum” que sustenta o privado com seus impostos, mas deve esperar a complacente beneficência, dentro de uma moldura administrativa que se constitui como um sistema autoimune, no qual a crítica não penetra, não porque não exista, mas porque é feita desaparecer antes mesmo de entrar nas fronteiras institucionais. Se desmaterializa, um pouco como os arquivos de um tempo quando são digitalizados.

   

Entretanto, nesta festa de desaparições, também outros são os desaparecimentos. Desapareceram, por exemplo, os corpos dos vivos. Não existem os sorrisos, as caretas tristes e alegres, as bocas fechadas ou escancaradas, cheias de dentes. Para tantos de nós que continuamos a lecionar, desapareceram os estudantes, transformados em bolinhas, no melhor dos casos decoradas com avatares que designam identidades imaginárias. Desapareceram os abraços. Na relação entre as pessoas, desapareceu a pele.

 

Além disso, desapareceram os corpos dos mortos. As pessoas que partiram são objetos sem respiração que não se pode ver. Entes queridos desaparecidos, dos quais apenas podemos imaginar a cerimônia fúnebre, em vez de vivê-la. A memória se evapora rapidamente, enquanto a dor permanece intensa, sem ser possível o consolo de uma despedida adequada.

 

Desapareceu a cultura, uma vez que ao contrário de a usarmos para contornar o problema, a empurramos para os cantos, nos interstícios da história. Reduzida a assunto de carteiras com rodinhas[1] [para retorno dos alunos às aulas presenciais] e acrônimos de duvidosa transparência, a cultura se afogou.

 

Enfim, desapareceram a responsabilidade e a obrigação da competência: teríamos, em teoria, como adultos, uma responsabilidade na relação com os mais jovens. Teríamos também a responsabilidade de evitar que desaparecessem as coisas que importam, por exemplo, as relações, a dimensão ética, a ideia de comunidade. Deveríamos, talvez, convencê-los de que não irão se afogar nas máscaras apertando entre punhos cerrados um título de estudo que vale pouco, especialmente se da área de humanas, porque com o passar do tempo esqueceu-se para que serve a cultura. Devemos, talvez, admitir que somos capazes de argumentar, discutir, mas não de elaborar os conflitos; de nos indignarmos, mas não de nos comprometermos; de pretender que devemos ser salvos, mas sem renunciar àquilo que contribuiu para o desastre.  

 

Pagamos – aqui em Milão, na minha percepção, mas talvez também em outros lugares – um outro desaparecimento importante, ainda mais penoso e originário: o desaparecimento da capacidade de entender aquilo que acontece ao nosso redor. Para esse tipo de compreensão, é preciso um tempo lento, uma reflexão que se tornou essencial, de uma consciência inédita, um olhar atento ao caos, que é nosso companheiro e, como escreve Haraway, é a condição permanente de um planeta que arrisca desaparecer também.

 




[1] Na Itália, a maioria das salas de aulas são dotadas de carteiras “duplas”, a mesa com cadeiras para dois alunos. Com a pandemia do novo coronavírus, a proposta mais divulgada (não sem polêmicas) do Ministério da Educação foi a aquisição de carteiras individuais com rodinhas, que permitiriam facilmente a administração do distanciamento entre os alunos. Os custos e a prioridade que se deu ao projeto foi muito criticado pela própria comunidade escolar, que apontava como mais preocupantes a própria falta de espaços para realocar os alunos distanciados e a necessidade de contratação de professores para cobrir os diferentes horários de aula e a substituição dos professores da faixa de risco que não poderiam voltar às aulas presenciais. 



* Escritora e professora de língua, literatura e cultura inglesa e anglo-americana na Università degli Studi di Milano.

Tradução: Grazielle Frederico

Publicado originalmente em:

27 de junho de 2020

Por uma gestão do infraordinário


Lucía Tennina
Universidade de Buenos Aires

Imagem: Dragan Bibin



Paralelamente ao trabalho de cientistas e epidemiologistas para encontrar uma vacina que acabe com o coronavírus, o confinamento global agitou teclados, agendas e projetos para pensar em horizontes possíveis e desejáveis ​​após o término da pandemia. O futuro nos envolve com uma incerteza que não apenas nos enche de esperanças de uma mudança global em termos sociais e climáticos, mas também nos assusta com novas catástrofes e realidades distópicas ou nos preocupa, ao pensarmos que tudo voltará ao que era antes.

Mas o que acontece portas adentro, na vida diária mais íntima?
Tomando como ponto de partida meu lugar de enunciação como mulher branca em um mundo ainda patriarcal, de classe média, professora universitária, pesquisadora, mãe de duas filhas muito pequenas, me ocorre pensar que esse nós do qual faço parte está imerso em um cotidiano permanente, em um dia a dia que se repete e que vai acumulando os hábitos uns sobre os outros, embora sem deixar de ser um diferente do outro. Cercada por brinquedos, diálogos imaginários com bonecas, role-playing onde às vezes eu sou um bebê, outros eu sou o lobo, montanhas de louças, roupas sujas para lavar ou limpas para pendurar, compras de supermercado para desinfetar, trabalho pendente para resolver, contas a pagar. Ruídos de água corrente, aspirador funcionando, telefone tocando, aquecimento por microondas. Gritos, choros, TV ao fundo, silêncios, diálogos. Tudo dentro de casa. E, enquanto isso, o calendário avança.
É possível falar sobre o futuro neste modo de vida? Prefiro dizer que estamos vivendo um presente que não dá lugar ao futuro. E também não sei se é possível falar do presente, mas de uma interioridade cheia de instantes intangíveis à primeira vista e que estão por trás do pensamento em uma dimensão, ainda, de tentar entender. Seria, de acordo com Clarice Lispector, um instante – já tão difícil de definir, porque é algo como uma quarta dimensão, trata-se do desconhecido dos instantes sempre iguais. Mas não igualitários. Porque essa conjuntura de uma pandemia mundial colocou sobre a mesa que nem todo mundo tem o direito de dimensionar seus instantes e que, para esses, os instantes se tornam urgências que gritam racismos, que gritam abandono e revelam que as mortes que estão acontecendo não são apenas tragédias, mas também assassinatos e que o futuro faz tempo que é impensável.
As perguntas que surgem, então, são: Que responsabilidade nos cabe, a nós que nos dedicamos à pesquisa básica, nestes momentos? Como devemos administrar os instantes para pensar em nosso cotidiano não apenas como repetição, mas como momentos de criação e agência? Que posição devemos tomar em relação às urgências que anulam o direito aos instantes?
Nestes dias estive lendo uma poeta chamada Marília Garcia e em um de seus poemas, do livro Parque das ruínas, ela menciona um termo de Georges Perec: o infraordinário. Marília diz:

            “o que se passa todos os dias e que volta todos os dias
o banal o cotidiano o óbvio o comum o ordinário
o infraordinário
o barulho de fundo o hábito
— como perceber todas essas coisas?          
como abordar e descrever aquilo que de fato
preenche a nossa vida?”

Parece-me que esse fragmento define muito bem o que, acredito, nos cabe como intelectuais nesse momento de confinamento. Quanto podemos pensar no futuro nessas circunstâncias que não deixam de ser privilegiadas? E o que resta do presente? Mais do que pensar no futuro ou no presente, acho que hoje seríamos forçados a pensar, antes, no todos os dias, pensar essas novas coordenadas de representação de nossos hábitos através do infraordinário, entendendo esse tipo de reflexão como política no sentido rancieriano de elaboração de uma sensibilidade do anônimo, do ainda não nomeado. Paradoxalmente, nesses tempos em que o distanciamento é a regra, a saída estaria em se debruçar com uma lupa sobre a potência do nosso cotidiano. E, como contrapartida, em assumir a desigualdade dessas reflexões, levando em conta que existe outro tipo de anonimato, o de grupos sociais historicamente marginalizados e abandonados, sufocados (literalmente) mais do que nunca neste momento, que não têm direito a esta repetição e que nos obrigam a replicar não apenas o "ruído de fundo do hábito", mas também os slogans dos protestos que essas violências reacendem.

16 de maio de 2020

Este não é um texto sobre a pandemia

Lucas Amaral de Oliveira


Imagem: Claire Harvey

Não teria sido possível seguir enfrentando esta sociedade incivil, mais explícita em função da pandemia, sem o horizonte intelectual e afetivo de Muniz Sodré

Calhou nestes dias de confinamento uma urgência de escrever, entregar às palavras o que tem sido do império das angústias. De início, pensei que talvez me fosse mais apropriado, na condição de sociólogo-docente-pesquisador, discorrer sobre como esta crise epidemiológica vem aniquilando os espaços de convivialidade de uma cidade tão culturalmente agitada como Salvador. Ou, por outro lado, como esta fatal necessidade do isolamento – e, paradoxalmente, para muitos cidadãos, a sua impossibilidade material – acaba por amplificar as desigualdades sociorraciais e a segregação urbana de uma das metrópoles com maior densidade populacional do planeta. Já havia, inclusive, esquematizado uma análise cujo eixo seguia os itinerários da operacionalização da necropolítica no Brasil. Foi então que recebi uma mensagem familiar.
Era uma sexta de pouco sol em Salvador, depois de semanas de chuva e tempo fechado. Condição atípica, que fez do isolamento a aceitação do exílio. A mensagem me chegou como sinal de alento, respiro – afinal, o luto se impõe quando diante de mais de quatorze mil mortes oficiais registradas no país. Após quinze dias de desassossego, soubemos que Muniz Sodré está melhor. Entendedor das culturas brasileiras. Espírito imensurável. Que tem se mostrado até então maior que seu quase-fim terreno. Suportou dias a fio de inconsciência febril, lidando com o ápice da infecção de Covid-19, na UTI de um hospital de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Com muito custo, o baiano parece disposto a engambelar esta doença que muitos ainda insistem em eufemizar. Mas pudera! Muniz não caberia em despedidas. Por galardosas que fossem. Não caberia em epílogos. Por adjetivosos que pudessem parecer. Se fosse o caso, certamente ele se transbordaria desde dentro da gente em forma lagrimosa. Num contexto de morte e nada mais, é preciso celebrar os sopros de vida, as sobrevivências do dia-a-dia. O axé de Muniz.
Ultimamente, quase não tem havido espaço para boas notícias. Pelo menos em terras incivilizadas. Como a nossa, latifúndio do ódio. Terra que agora ainda tem de enfrentar uma doença implacável que só tem trazido sofrimento, desalento, escassez, morte. Obviamente, a uns mais que a outros. Mas me traz um leve sorriso ao rosto saber que este texto não é tributo póstumo. E que estas palavras estejam sendo traçadas, agora, em tom de homenagem a alguém que, desde um lugar um pouco mais seguro, segue entre nós. Me abranda o espírito que este texto não ecoa palavras de despedida. É apenas um relato pessoal. Ou reminiscência intelectual que gostaria de tornar público, hoje. Porque constitui um testemunho de como um ser humano marcou, com tamanha solidez, uma geração inteira de pesquisadores da cultura – na qual eu próprio me incluo –, preocupada com efeitos éticos e políticos da produção do saber.
Se não há tamanho, também não há tempo neste mundo em que caiba Muniz Sodré de Araújo Cabral. O professor Muca, como costuma ser afetuosamente reconhecido entre colegas e familiares, é existência incabível, inencaixável, imorrível. Farol que orienta nossos pés nos entremeios das tormentas da história. Oriente. Horizonte. A exata somatória da vastidão de sua ternura com a fineza de um intelecto perspicaz, multiplicada pela seriedade investida no cultivo das belas artes do ensinar – que orientam a mim e a colegas no magistério público –, elevado à enésima potência da dedicação que tem depositado, nas últimas cinco décadas, em analisar as vicissitudes nacionais, às vezes desnudando nossos ilogismos mais desavergonhados.
Muniz é daqueles seres humanos insubstituíveis. Do tamanho da energia de vida que tem despendido buscando entender a alma, a mentalidade, o imaginário, a epiderme, os intestinos e o sistema nervoso central de um país periférico, culturalmente rico, não há dúvidas, e híbrido até a raiz de suas histórias mais recônditas; mas erguido na base de ferro, fogo, lágrima, sangue, racismo e muito genocídio. Da mesma maneira que as composições de Aldir Blanc e Moraes Moreira revolucionaram a bússola da música popular brasileira, que as atuações de Flavio Migliaccio politizaram a dramaturgia de um país naufragado no precipício do autoritarismo, ou então que os contos de Sérgio Sant’Anna redirecionaram a ficção na literatura brasileira contemporânea, as obras de Muniz Sodré sublevaram as ciências sociais e humanas de modo irremediável, em especial as teorias da comunicação e a sociologia da arte e da cultura: “O terreiro e a cidade” (1988), “A máquina de Narciso” (1990), “Antropológica do espelho” (2001), “A narração do fato” (2009), “Reinventando a educação” (2012), “A ciência do comum” (2014) e “Pensar nagô” (2017) são apenas alguns exemplos de sua prodigalidade.
Não podemos economizar adjetivos, analogias e perífrases quando homenageamos alguém em vida. A vida de Muniz. Mestre da tradução intercultural, artesão dos saberes, zelador da communitas e da civitas. Desconstruidor das práticas sócio-antropológicas que foram moduladas na obsessão euro-americana de conhecer a si à medida que subalternizava mundos. Transgressor das interdisciplinaridades acadêmicas. Crítico infatigável do racismo estrutural que, para ele, é constituído e constituidor tanto de nossas cordialidades interpessoais como dos patrimonialismos institucionais. Muniz Sodré é um decolonial nas humanidades brasileiras. Sua práxis é a política do afeto: “o vazio do sensível torna inócuo o conhecimento da evidência objetiva e inibe um posicionamento prático-teórico que possa contornar as taras monocausais”.
Livre-Docente e Professor Emérito da UFRJ, Doutor Honoris Causa da UFBA, Pós-Doutor na Paris-Sorbonne, ex-presidente da Biblioteca Nacional, escritor latino-americano rigoroso e eloquente. Verdadeiro gingador de brasilianidades. Virtuoso. Hábil em formalizar em palavras e conceitos as vidas de todos nós que, sem dinheiro no banco e nem parentes importantes, viemos do interior. Muniz é um dos teóricos brasileiros mais lidos, difundidos e respeitados no exterior. E seguirá sendo. Intelectual e ativista negro de brio, fala iorubá, inglês, russo, francês, espanhol, italiano, árabe, alemão. Ser multíplice, multiplicador. Alquimista do conhecimento. Guardião da ancestralidade. Autodidata dos impasses da vida. Aprendiz de Mestre Bimba – o mais ilustre entre batuqueiros e capoeiristas. Muniz, como seus estimados baianos Jorge Amado, Dorival Caymmi e Gilberto Gil, também é Obá Xangô do Axé Opô Afonjá, no culto nagô-ketu do candomblé baiano. E, como cientista social público e inventivo que é, faz questão de misturar suas vivências a epistemologias plurais para entender o presente.
Em especial, sou simpático de uma reflexão que ele vem equacionando e que parece ter ganhado força com a experiência do bolsonarismo no Brasil contemporâneo. Muniz insiste que, como nação, somos uma fábrica arcaica de “produção social do ódio”. Isso nos tem feito reféns daquilo que sempre fomos, porque forjados nos cemitérios do colonialismo: uma “sociedade incivil”. Ele argumenta que estamos a experimentar, hoje, um inquietante tropeção no fio transformador da história nacional. A imagem, tão potente quanto trágica, sugere que não se trata mais da antiga oposição entre civilização e barbárie, e sim de uma figuração social nova, em que relações humanas geridas pelas tecnologias de comunicação de massa acirram cada vez mais a criação, a difusão e o consumo egoístico de informações inautênticas, processo que vem desestabilizando consensos de representação do mundo – formato da Terra, história do nazismo, direitos humanos, acúmulo científico, etc. Não há mais ação comunicativa possível em um cenário em que parte da população brasileira se oferece a negacionismos, anti-intelectualismos, fundamentalismos e conspiracionismos de variados graus. O atoledo da ignorância nos asfixia.
Para ele, a farsa desta contemporaneidade é habitada por uma horda que exibe um desejo pornográfico pelo caos. São essas as pessoas que vêm alimentando o espectro do fascismo, real e virtualmente. Ou, como prevê o baiano de São Gonçalo dos Campos, é a entrega a essa pulsão que alicerça o protofascismo tupiniquim, em que a perseguição do Outro, inimigo em potencial, irrompe como fratura política, sociopatia e gozo pela catástrofe. Por si, a desigualdade já dificulta que pessoas privilegiadas vejam seus Outros como entes merecedores de respeito e consideração. Só que a desigualdade brasileira, que sempre foi um perverso projeto de nação, além de impor obstáculos à civilidade, transforma pessoas em “não pessoas”, esvaziando-as de valores intrínsecos, vertendo corpos e existências em vidas precárias, descartáveis. Daí a sanha pela ofensa, o fascínio pela violência, a apologia armamentista. Daí os absurdos regressivos e as defesas crônicas de um estado teocrático-miliciano que se anuncia como “salvador da pátria”, administrado por “cidadãos de bem”. Daí a transformação da morte em único horizonte de vida.
Como reflete Muniz, não se trata de ideologia capitaneada por um partido político com o beneplácito do Estado, como o nazifascismo histórico, mas sim do produto do ressentimento social das elites em relação a uma década de governos de centro-esquerda, estimulado por uma ordem de fatores que encontra na violência sua única justificação: a ignorância da história do país, a energia do descontentamento ante o acúmulo de diversas crises, alterações nos hábitos, corrupções políticas, versatilização dos estilos e estéticas de vida, sentimento de um suposto declínio ético e moral, etc. Tanto ontem como hoje, a “situação fascista” reflete um medo coletivo e manipulável, “paixão política negativa”. Medo imaginado, abstrato, fantasmagórico. Medo cujo saldo é o ódio. Não viveriam acólitos e colaboracionistas do presidente perdidos num labirinto assombrado por inimigos que eles próprios projetaram e, agora, querem eliminar? Como gramsciano, Sodré nota que “o velho mundo sempre morre, mas o novo tarda para surgir; e desse claro-escuro emergem os monstros”. Espero que as lições de Muca, nosso mandingueiro anticolonial que tem vertido suas últimas décadas de vida num campo de luta contra os monstros do fascismo e num espaço de reconhecimento e desmantelamento das “inscrições da barbárie no cotidiano”, orientem a todos nós neste mar de trevas no qual nos encontramos.
Finalizo meu testemunho intelectual com um trecho do discurso que Muniz proferiu na Academia de Letras da Bahia, em 31 de outubro de 2019, aqui em Salvador, alguns meses antes da pandemia nos atingir. Na cerimônia que marcou a sua posse da cadeira 33, cujo patrono é o poeta abolicionista Castro Alves, sucedendo a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, ele disse: “A ancestralidade – folha no chão – vem ensinar que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude.  O que hoje se vem chamando de crise moral não é a mera violação de valores e regras instituídos (corrupção, violência institucional, mutação nos costumes), mas sim o obscurecimento do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e conviver, portanto, a tudo o que implique um destino comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade”. Saravá, Muniz! Sigamos vivos, porque a luta continua...

* Lucas Amaral de Oliveira é Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFBA.

3 de maio de 2020

Para Carolina



Arte de Farnese de Andrade



Cara Carolina Maria de Jesus, nossa eterna Bitita,

estou te escrevendo do ano de 2020, quando um vírus letal tem mostrado para a humanidade, há muito doente, que ela tem seus pés de barro. Escrevo-te de uma pequena sala da minha casa, enquanto ouço o barulho de crianças gritando; o movimento dos carros; o chiado da panela de pressão na casa da vizinha; o pronunciamento do atual presidente do país nas redes sociais questionando “e daí?” diante da morte de mais de cinco mil pessoas devido à pandemia causada pelo vírus; os gritos de uma mulher que parecem vir do outro lado da rua; o sono leve de meu filho, de três anos, com febre aqui do meu lado devido a uma garganta inflamada. Vindo das batidas inquietas do meu coração, ouço ainda os sussurros invisíveis de milhares de Carolinas desesperadas por não saberem o que darão aos seus filhos para comer no dia de hoje e nos mais sombrios que ainda virão. Aproximando-se um pouquinho da sua, minha escrita se emaranha aos burburinhos que tecem o cotidiano desses dias e à urgência de dizê-los, ainda que seja só para pedir que o vento encontre uma fenda na vozaria por onde possa levar, à sala de visitas, as palavras de angústia, de indignação, de medo, mas também de amor, empatia e esperança, que movem o meu escrever.

Desculpe por introduzir a nossa conversa com alguns assuntos tão tristes. Queria eu começar esta carta te falando apenas dos sorrisos largos dados, por um breve tempo, pelo nosso Brasil. Dizer a você que um homem, que já passou fome, o governou. Sim, querida Bitita, o Brasil foi dirigido por alguém que teve como professora a fome. É bem verdade que, para conseguir governar, precisou fazer alianças com o mercado e isso lhe/nos custou muito caro. Em um outro momento te conto mais sobre isso. Por enquanto, quero que saiba que, como você previu, as políticas adotadas por esse governo contribuíram para que cada vez mais brasileiros pudessem comer três vezes por dia sem deixar de comprar sapatos para as suas filhas. E não parou por aí. Você, que atravessou cidades de Minas a pé, com as pernas feridas, em busca de um tratamento, certamente ficará feliz em saber que esse governo também investiu em saúde pública, ainda que não o suficiente. E tem mais, talvez seja difícil para você acreditar, mas por um tempo, os pobres puderam viajar de avião, misturando-se aos ricos nos pomposos aeroportos. Foi dessa forma que os pretos, espalhados pelo vento como folhas secas, puderam se juntar, ficar mais perto dos seus. Também muitos de nós puderam abandonar os quartos de despejo e comprar uma casa de alvenaria. Houve investimento na educação e na pesquisa. As nossas universidades foram ficando cada vez mais coloridas por pretos, índios, quilombolas, homossexuais, transexuais. Pessoas que, como você, também compreenderam o poder de transformação que tem a escrita e, com e por meio dela, têm feito coisas extraordinárias. Você precisa lê as literaturas inspiradoras que as filhas e netas de empregadas, de pedreiros e de outras tantas profissões desvalorizadas estão escrevendo!

Queria eu ter começado esta carta te dizendo que o Brasil já foi governado por uma mulher.  Essa é mais difícil de acreditar, não é? Mas foi. Estou te contando isso por acreditar que a menina Bitita, que tantas vezes sonhou atravessar o arco-íris para se tornar homem e assim desfrutar dos privilégios concedidos a esse gênero, ficará feliz em saber que, apesar de a desigualdade de gênero ainda existir e de a nossa primeira presidenta ter sido derrubada em meio a discursos extremamente machistas, um número significativo das mulheres do nosso tempo são, cada vez mais, donas de si e seguem sendo inspiração para tantas outras, como você foi e ainda é para muitas de nós.

Ah, e como eu queria ter começado esta carta te contando que as patroas do seu tempo encontrariam muita resistência ao tentar fazer as meninas pretas do meu tempo trabalhar de graça em troca de produtos que pudessem deixar os seus cabelos escorridos. As amarras de um sistema que te fizeram, e ainda fazem a muitas de nós, olhar os cabelos no espelho e desejar que eles tivessem nascido lisos têm sido denunciadas e contestadas por coletivos e por pessoas inspiradoras. Os nossos crespos e cacheados não querem mais ficar presos. Volumosos, eles têm entrado nos cinemas, na televisão, na internet, nos shoppings, nas propagandas, no concurso de Miss Brasil, em todos os lugares.

Infelizmente, não pude começar nossa conversa por aí. Escolhi que ela se iniciasse em um espaço-tempo despetalado. Porque assim como a escritora favelada foi rosa despetalada quando espinhos alcançaram o seu coração também foram aqueles(as) que, no meu tempo, ousaram não ficar em silêncio ou tentaram mudar a ordem estabelecida das coisas. Igual a um corpo envelhecendo, também nossos sonhos, florescidos nos tempos de alegrias contados acima, foram desiludindo, regredindo, envelhecendo, enrugando, murchando, morrendo. Os espinhos da minha época talvez não tenham os mesmos nomes que os da sua, mas não duvido que possuam os mesmos traços genéticos, as mesmas raízes, os mesmos sobrenomes. Continuam a humilhar a menina faminta que pega uma manga no quintal do vizinho para saciar a fome e a apertar a mão e dar uns tapinhas nas costas dos que roubam o país. A menina “ladra” ouviria, com muito medo, que bandido bom é bandido morto enquanto a amarrariam em um poste ou tatuariam “ladra e vacilona” em sua testa. A mãe trabalhadora que, sozinha, cria e mantém o sustento dos filhos, ouviria do vice-presidente que ela é fábrica de elementos desajustados que afetam o país.

É que os filhos dos Moreiras, Pereiras e Oliveiras do seu e do meu tempo, Carolina, continuam a violentar nossos corpos, nossas forças de trabalho, nossas identidades. Continuam a tratar bem os industriais e a tratar como animais os operários. Continuam a cobrar de nós que sejamos submissos, que abaixemos as vozes, que não façamos o que eles chamam de “mi-mi-mi” ao menosprezarem as nossas vozes. É que eles, Carolina, não suportaram nos ver nos infiltrando, para usar aqui uma palavra sua, em universidades; viajando para o exterior; indo aos mesmos shoppings, teatros, restaurantes e cinemas que eles; produzindo e vendendo cinema, música, literatura e arte de qualidade; fazendo pesquisa, tornando-se mestres(as) e doutores(as); saindo do quintal e ocupando a sala de visitas. Os de agora, como os da sua época, também não pensam nos nossos filhos. Quando bradam, vestidos de verde-amarelo, abraçados na bandeira do país ou dançando ao redor de um pato, em um domingo sangrento qualquer, que o que estão fazendo é pela família, estão falando apenas de suas próprias famílias, não das nossas. Eles estão, de certa forma, zombando de nosso sofrimento enquanto perguntam, covardemente: “E daí” se os seus filhos, avós, netos, pais, mãe, irmãos, irmãs estão morrendo? E daí, Bitita? O que eles têm a ver com isso, não é? Embora nos sepultem todos os dias, eles não são coveiros. Para eles basta que sigamos trabalhando, mantendo a engrenagem da economia funcionado. Quando um é engolido por ela, basta colocar outro no lugar e tudo segue igual, como se nada tivesse acontecido.

Embora tenha escolhido este tempo-espaço despetalado para iniciar a nossa conversa, esta carta não é para dizer que tudo está perdido, Bitita. Recolha a desilusão e a tristeza que as minhas palavras podem ter trazido. Quando eu digo que aqueles(as) muitos que fugiam ao vê-la ainda estão por aqui não é para que você entenda que nada mudou, é para que você compreenda que eles estão tentando nos silenciar porque a mudança aconteceu. É para que você saiba que, embora não plena nem por muito tempo, os pretos deste país já conheceram a felicidade e não vão abdicar dela tão facilmente. É para te dizer que muitas mulheres pretas do meu tempo, as que, como aconteceu contigo, são tolhidas pelo preconceito e o racismo, estão escrevendo, estão ocupando espaços socialmente privilegiados, estão levando outras consigo, não vão voltar atrás. É para que entenda que os pretos do meu tempo viram o sol, sabem de sua força, e que, embora estejam murchando nestes dias de escuridão, não vão se deixar ser sobreterrados. É para falar a você que, usando aqui as palavras de Conceição Evaristo, uma mulher preta que se inspira na sua escrita, “eles escolheram nos matar, mas nós escolhemos não morrer”.

Há um poema seu no qual você diz “quantas coisas eu quis fazer, fui tolhida pelo preconceito. Se eu extinguir, quero renascer num país em que predomina o preto. Adeus! Adeus, eu vou partir! Morrer! E deixo esses versos ao meu país. Se é que temos o direito de renascer, quero um lugar onde o preto é feliz”. É partindo dele que te pergunto, Bitita: e daí que eles dizem que não podemos renascer? E daí que eles não querem que os pretos sejam felizes? E daí que eles nos vejam como estatísticas e não seres humanos? E daí que eles pensam que nos mataram? E daí que eles foram assim antes, durante e depois do tempo de sua escrita? E daí? Apesar de tudo isso, a sua escrita alcançou o meu tempo, significou e ressignificou-se, floresceu em outras escritas e vidas. Nós somos sementes, Carolina. Os versos e as palavras que você deixou continuam germinando em outras vozes e escritas pretas. Nós florescemos umas nas outras, alimentadas por uma raiz que atravessou oceanos. As suas palavras, sua escrita, o poder dos teus versos, ecoados por vozes de outras mulheres no meu tempo, seguem a juntar as folhas espalhadas pelo vento, pela escravidão. Então, sigamos, Bitita! Enquanto eles menosprezam as nossas vidas ao gritarem “e daí?”, nós, resistentes como sempre, florescemos e seguimos rompendo os burburinhos lá fora com a nossa escrita, com a nossa voz.


Com carinho,


Rosângela Lopes da Silva.