Eurídice
Figueiredo (UFF/CNPq)
Auréolas da Foz (2017), de Olívio Ataíde |
Essas
anotações foram suscitadas pelos comentários críticos à resenha do romance Torto Arado, escrita por Raquel Carneiro
e publicada na revista Veja de 15 de
dezembro de 2020 com o título de “Com Torto
arado, Itamar Vieira Júnior dá novo fôlego ao romance regional”. A resenha
foi postada pelo autor no Facebook, de modo que pude acompanhar as reações de
pessoas do meio literário à atribuição da categoria “romance regional” à obra,
premiada inicialmente em Portugal no concurso da Leya e agora consagrado com o
Jabuti de melhor romance.
De
maneira sucinta, o debate em torno da oposição regional/nacional X universal
remonta ao romantismo, quando havia, de um lado, o romance indianista de José
de Alencar e, de outro, o romance urbano de Machado de Assis, cujo texto
“Instinto de nacionalidade” deu forma teórica à percepção do que se esperava
dos escritores brasileiros para criar uma literatura própria sem apelar para o
exotismo. Na década de 1930 o romance realista, de cunho social, se consolida
pelas mãos de escritores nordestinos como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel
de Queiroz, José Lins do Rego e, no sul, por Érico Veríssimo. Os romances
escritos por eles foram chamados de “romances regionalistas” porque narravam
histórias que se passavam no mundo rural de suas regiões, ao passo que aqueles
que tinham como cenário o Rio de Janeiro, capital da República, eram
“universais”. Essa classificação é generalizadora porque alguns romances desses
autores eram urbanos; entretanto, é preciso ressaltar que os autores
“regionalistas” fazem parte do cânone da literatura brasileira, tendo sido
traduzidos em outras línguas e muito bem recebidos nos grandes centros de
consagração. Todavia, o termo continua sendo pejorativo porque é confundido com
o naturalismo do primeiro regionalismo do século XIX.
Antonio
Candido, no seu artigo “Literatura e subdesenvolvimento”, faz uma correlação
entre as diferentes fases do regionalismo brasileiro e as tendências literárias
da América Hispânica. Publicado no livro América
Latina em sua literatura em 1972 pela editora Perspectiva, portanto em
pleno boom do realismo mágico de
García Márquez, José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Candido percebe que toda essa
produção explorava o mundo do interior (o altiplano, o sertão, os confins). O
crítico uruguaio Ángel Rama, criador do conceito de transculturação narrativa,
considerava esses três escritores, assim como Guimarães Rosa, como
representantes dessa tendência, em outras palavras, eles seriam transculturadores.
Já Candido chama Guimarães Rosa de superregionalista, alguém que supera e, ao
mesmo tempo, continua sendo regionalista; destaca o caráter metafísico e
universal da obra do autor mineiro. Ele afirma que muitos escritores
“rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas (...). Mas isto não
impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior
importância”. Ele aponta o “refinamento técnico, graças ao qual as regiões se
transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem e adquirem
universalidade” (1972, p. 361).
Esses
quatro escritores – García Márquez, Rulfo, Arguedas e Rosa – seriam os epítomes
dessa geração cuja consciência política se explicita ao explorar o
subdesenvolvimento da América Latina numa escrita não-naturalista, que faz
apelo à magia, ao absurdo, ao monólogo interior, à elipse e ao fantástico.
E
Torto arado, o que teríamos a dizer
desse romance que foi reconhecido em Portugal antes mesmo de ser publicado no
Brasil? Ele é, antes de mais nada, muito elaborado, não só na linguagem como na
estrutura, portanto, sua fatura requintada torna-o universal. Mas ser universal
não quer dizer eliminar a dimensão regional e nacional, porque toda literatura
parte de um particular, às vezes de uma micro-região, e fala ao mundo. Devido a
uma coincidência -- li o romance de Itamar no momento em que era publicada a
tradução de Senhores do orvalho, do
escritor haitiano Jacques Roumain, para a qual escrevi o posfácio – percebi
elementos comuns: a seca que dificulta ainda mais a vida da gente pobre, o
personagem que tem de se deslocar para tomar consciência política e lutar
contra a opressão, a resistência das mulheres, a utilização de religiões de
matriz africana e a força poética da obra. O romance haitiano, publicado
originalmente em 1944, é suficientemente “universal” para despertar o interesse
da editora Carambaia em 2020.
O
problema que transparece nos comentários que apareceram no Facebook é o
etnocentrismo, que faria com que só escritores do sudeste, principalmente do
Rio e de São Paulo, pudessem ser urbanos e universais. Ainda que a imprensa
muitas vezes caia nos clichês, como, p. ex., ao falar de Moacyr Scliar,
escritor judeu, que sempre explorou as questões judaicas em sua obra, era
sempre chamado no jornal O Globo de
escritor gaúcho. Outro exemplo: parece-me equivocado estabelecer uma
equivalência entre Conceição Evaristo e
Carolina Maria de Jesus como “escritoras vindas da favela” porque, embora
Conceição tenha, efetivamente, vivido na favela em sua infância em Belo
Horizonte, ela teve acesso à educação, tornou-se professora e concluiu um
doutorado. Sem desmerecer Carolina, é claro, pois como adverte a pesquisadora Giovana Xavier em entrevista ao
jornal O Globo (2019) Carolina deveria
ser apresentada como uma intelectual negra e não como uma favelada. E
realmente, em Diário de Bitita ela
interpreta o Brasil a partir de seu lugar de mulher pobre e negra que vê como
funciona a sociedade brasileira. O clichê contém uma parte de verdade, mas
tende a confundir, nivelando padrões a enunciados simplificados e repetidos à
exaustão.
Torto
arado, de um autor jovem
(nascido em 1979), se distingue da maioria da produção atual brasileira que é
urbana, não importando se o romance se passa na praia de Garopaba ou em Porto
Alegre, em São Paulo ou no Rio. Perscrutando o cenário, olhando para meus
livros, o único autor que me parece guardar semelhança com Itamar é Ronaldo
Correia de Brito, cearense radicado no Recife (nascido em 1951). Na orelha de Livro dos homens, escrita por Marco
Lucchesi, se lê: “Posso afirmar sem erro que este é um dos livros
mais importantes de que tenho notícia nesses últimos anos. Um Brasil profundo, mas livre de cores locais. Uma palavra plural,
embora incisiva. Uma imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao
espaço ficcional de onde surge e para onde volta” (grifos meus). Em outras
palavras, é regionalista sem sê-lo, ou, pelo menos, não é o que se costuma
chamar de regionalista, embora explore a dimensão humana desses confins de
Brasil.
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