Joan Miró (1924), Harlequins Carnival |
Quem diria que o fator representatividade produziria tantas
obras marcantes e reflexivas no Brasil de 2020? Talvez, nós. Nós que observamos
ansiosos os desdobramentos políticos e educacionais e desejamos que essa pátria
seja gentil com todos os seus cidadãos. Nós que apoiamos a igualdade e lutamos
pela cidadania. Nós que pensamos que a educação é a chave para um mundo melhor.
Após a leitura de O Avesso da pele, de Jeferson Tenório e Marrom e amarelo, de Paulo Scott fica a
sensação de que, finalmente, a população negra tem representantes na ficção
brasileira que, por meio da educação, conseguiram condições de vida mais
dignas, alçando o homem negro a um patamar de humanidade. Os estereótipos foram
sobrepujados e as personagens vivem temas universais, usando os argumentos
possíveis, sentindo e reagindo ao mundo como quaisquer pessoas e assumindo um
lugar que, antes, fora estereotipado, mas, agora, também pertence
literariamente ao coletivo negro.
Tenório criou um mundo de
introspecção, onde o protagonista rememora sua existência em busca de
ressignificações que o ajudem a suportar o assassinato do pai. Enredados pelo
racismo, os personagens transitam pela vida e são construídos por meio de uma
tessitura que liga os fios da crueldade e da beleza, numa obra tocante, com
traços de lirismo.
O amarelo, de Scott, é um homem que
está em conflito por causa de seu tom de pele mais claro e pergunta-se por que
seus familiares não assumem uma posição mais atuante diante da sociedade
segregadora em que vivem. Dentre os diversos questionamentos, surgem
personagens adaptados à realidade gaúcha, utilizando mecanismos de
sobrevivência que os mantenham em uma situação segura. Todos vivem suas
singularidades.
Em comum, as obras apresentam
personagens que, de uma maneira geral, conhecemos no mundo real. São homens e
mulheres que lutam, sofrem, amam e se frustram. Eles têm famílias, empregos e
aspirações. Suas expectativas possuem as limitações ou a grandeza comum a qualquer
pessoa, no entanto, é a cor de suas peles e o protagonismo dos autores que
chama a atenção para a representação. Mesmo que os movimentos de insurgência
contra o racismo sejam tão antigos quanto a invasão desse país pelos europeus,
pouquíssimas obras apresentaram a humanidade das pessoas negras, sob uma ótica
protagonizante, em que as personagens fossem mais do que clichês.
Donos de suas vozes, esses
personagens encenam uma revolução na composição literária que foi mantida sob o
domínio de uma elite que não aprovava a presença negra em lugar algum. Muito
menos nas Belas Letras. Ainda assim, autores, narradores e personagens chegaram
às páginas dos livros e são procurados por uma gama de leitores que têm a
urgência de reconhecerem-se na grafia ficcional. As histórias contadas
perpassam as mazelas do racismo estrutural, contudo, colocam em primeiro plano
a subjetividade de pessoas que foram bestializadas e, ainda hoje, lutam para
que não sejam exterminadas por um Estado negligente e sua força policial. A
valorização dos sujeitos, historicamente marginalizados, é o despontar de uma
literatura que inclui e, finalmente, reconhece suas vivências para além dos
estereótipos.
É possível que estejamos vivendo um
momento de transformações para o coletivo negro, porém, com uma lentidão e um
atraso que refletem a crueza da realidade brasileira. Hoje, após conseguirem
adentrar as portas elitistas das universidades e com o auxílio de tecnologias
de informação capazes de unir, rapidamente, os mais distantes lugares do globo,
a comunidade negra pode ver-se, sob diversos aspectos, em um universo que a
mantinha sob o jugo da estigmatização, mas que está moldando-se para realocar
seus membros em textos arquitetados para tal fim. Investidos do seu lugar
discursivo e conscientes de que suas ações são importantes para o processo de
emancipação negra, os autores produzem uma fluência literária que interrompe um
ciclo violento de racismo. Mesmo que não vivamos em Wakanda e não tenhamos um
herói trajado como uma pantera, temos a raridade do sujeito negro que
transforma a realidade, performando um heroísmo a seu modo. A literatura não
tem a finalidade de modificar as estruturas sociais, ainda que as represente;
apesar disso, e sobremaneira, atreve-se a tanto.
*Marcel
Fernando da Silva é turismólogo e graduando no curso de letras
Português/Espanhol do Instituto Federal campus
Restinga.
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