24 de dezembro de 2020

A raridade do sujeito negro

Marcel Silva

Joan Miró (1924), Harlequins Carnival



Quem diria que o fator representatividade produziria tantas obras marcantes e reflexivas no Brasil de 2020? Talvez, nós. Nós que observamos ansiosos os desdobramentos políticos e educacionais e desejamos que essa pátria seja gentil com todos os seus cidadãos. Nós que apoiamos a igualdade e lutamos pela cidadania. Nós que pensamos que a educação é a chave para um mundo melhor.

            Após a leitura de O Avesso da pele, de Jeferson Tenório e Marrom e amarelo, de Paulo Scott fica a sensação de que, finalmente, a população negra tem representantes na ficção brasileira que, por meio da educação, conseguiram condições de vida mais dignas, alçando o homem negro a um patamar de humanidade. Os estereótipos foram sobrepujados e as personagens vivem temas universais, usando os argumentos possíveis, sentindo e reagindo ao mundo como quaisquer pessoas e assumindo um lugar que, antes, fora estereotipado, mas, agora, também pertence literariamente ao coletivo negro.

            Tenório criou um mundo de introspecção, onde o protagonista rememora sua existência em busca de ressignificações que o ajudem a suportar o assassinato do pai. Enredados pelo racismo, os personagens transitam pela vida e são construídos por meio de uma tessitura que liga os fios da crueldade e da beleza, numa obra tocante, com traços de lirismo.

            O amarelo, de Scott, é um homem que está em conflito por causa de seu tom de pele mais claro e pergunta-se por que seus familiares não assumem uma posição mais atuante diante da sociedade segregadora em que vivem. Dentre os diversos questionamentos, surgem personagens adaptados à realidade gaúcha, utilizando mecanismos de sobrevivência que os mantenham em uma situação segura. Todos vivem suas singularidades.

            Em comum, as obras apresentam personagens que, de uma maneira geral, conhecemos no mundo real. São homens e mulheres que lutam, sofrem, amam e se frustram. Eles têm famílias, empregos e aspirações. Suas expectativas possuem as limitações ou a grandeza comum a qualquer pessoa, no entanto, é a cor de suas peles e o protagonismo dos autores que chama a atenção para a representação. Mesmo que os movimentos de insurgência contra o racismo sejam tão antigos quanto a invasão desse país pelos europeus, pouquíssimas obras apresentaram a humanidade das pessoas negras, sob uma ótica protagonizante, em que as personagens fossem mais do que clichês.

            Donos de suas vozes, esses personagens encenam uma revolução na composição literária que foi mantida sob o domínio de uma elite que não aprovava a presença negra em lugar algum. Muito menos nas Belas Letras. Ainda assim, autores, narradores e personagens chegaram às páginas dos livros e são procurados por uma gama de leitores que têm a urgência de reconhecerem-se na grafia ficcional. As histórias contadas perpassam as mazelas do racismo estrutural, contudo, colocam em primeiro plano a subjetividade de pessoas que foram bestializadas e, ainda hoje, lutam para que não sejam exterminadas por um Estado negligente e sua força policial. A valorização dos sujeitos, historicamente marginalizados, é o despontar de uma literatura que inclui e, finalmente, reconhece suas vivências para além dos estereótipos.

            É possível que estejamos vivendo um momento de transformações para o coletivo negro, porém, com uma lentidão e um atraso que refletem a crueza da realidade brasileira. Hoje, após conseguirem adentrar as portas elitistas das universidades e com o auxílio de tecnologias de informação capazes de unir, rapidamente, os mais distantes lugares do globo, a comunidade negra pode ver-se, sob diversos aspectos, em um universo que a mantinha sob o jugo da estigmatização, mas que está moldando-se para realocar seus membros em textos arquitetados para tal fim. Investidos do seu lugar discursivo e conscientes de que suas ações são importantes para o processo de emancipação negra, os autores produzem uma fluência literária que interrompe um ciclo violento de racismo. Mesmo que não vivamos em Wakanda e não tenhamos um herói trajado como uma pantera, temos a raridade do sujeito negro que transforma a realidade, performando um heroísmo a seu modo. A literatura não tem a finalidade de modificar as estruturas sociais, ainda que as represente; apesar disso, e sobremaneira, atreve-se a tanto.

 

*Marcel Fernando da Silva é turismólogo e graduando no curso de letras Português/Espanhol do Instituto Federal campus Restinga.


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