29 de abril de 2017

As dificuldades da leitura no Brasil

Mirian Hisae Yaegashi Zappone

        Imagem: Regina Dalcastagnè

Embora esteja mais diretamente relacionada à instituição escolar e com ela, à formação e à prática de professores, o problema da leitura no Brasil abarca outros espaços (do privado de cada lar até as livrarias, das bibliotecas à internet, do gabinete de ministros até a banca da esquina) sobre os quais nem sempre, ou melhor, quase nunca, o leitor pode interferir. Isso porque se relacionam às questões do acesso ao livro e ao impresso que permeiam o político e permitem matizar a questão da leitura como prática que depende exclusivamente das escolhas do leitor e de sua “capacidade de leitura”.
Talvez, para alguns, eu não saia do lugar comum, mas acho que vale a pena tentar enxergar a questão da leitura em nosso país através de uma ótica que leve em conta dados numéricos sobre as condições de acesso ao livro e ao impresso e que se colocam como questões sociais que afetam diretamente as práticas de leitura dos indivíduos. Na verdade, fico muito desconfiada do discurso que tende a analisar nossa condição cultural, onde se insere a prática da leitura, como reflexo de um suposto desafeto que o brasileiro nutre pelas “coisas do espírito”. Seríamos nós preguiçosos em potencial, desinteressados pela leitura e realmente inaptos para ler e entender o que lemos ou os resultados de tantos testes de leitura e mesmo o desempenho de nossos estudantes em avaliações institucionais (ENEM, ENADE, Prova Brasil) em parte, são resultados de anos de ausência de uma política efetiva para o desenvolvimento da leitura e de facilitação de acesso ao livro? Fico, é claro, com a segunda possibilidade, para a qual arrolo alguns dados.
Desde 2001, um grupo de instituições formado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), pela Associação Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA), pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e pela Abrelivros realiza uma das maiores pesquisas de leitura no Brasil, a Retratos da Leitura. Ela cobre todos os estados a fim de identificar a penetração da leitura de livros no país, o acesso dos brasileiros a livros e impressos e os leitores efetivos.  
Essa pesquisa tem servido, em suas várias versões (2000, 2007, 2011 e 2016) para que se relativize a ideia corrente entre nós de que brasileiro é um não-leitor  e de que não gosta da leitura. Desafiando este estereótipo, a pesquisa mostra que a leitura é uma prática bastante presente na vida do brasileiro. Dentre o universo pesquisado (população com 5 anos ou mais e que correspondeu a 187 milhões de pessoas), os leitores efetivos (aqueles que leram ao menos um livro nos últimos 3 meses anteriores à pesquisa) representaram 56% da amostra, o que projeta uma estimativa populacional de 104 milhões de leitores! Pessimistas de plantão podem achar esses dados pouco contundentes para uma população que ultrapassa os 200 milhões de habitantes. Por isso, um paralelo com outros países pode ser frutífero. Na França, uma pesquisa semelhante realizada em 1989 detectou um índice de 49% de leitores efetivos, o que equivalia a 23,5 milhões de leitores. Portugal, em 1995, tinha um índice de 37% dessa mesma categoria de leitores. Como se vê, nossos 56% de leitores efetivos são expressivamente numerosos.
Mas, o que gostaria de destacar dessa pesquisa é que os índices de todos os tipos de leitores têm uma relação direta com os fatores escolaridade e classe econômica. Os resultados de 2016 reforçam uma tendência percebida desde 2007: quanto maior a escolaridade e a renda, maior é o hábito de leitura de livros, assim como também é maior entre aqueles que ainda são estudantes, evidenciando como questões econômicas e culturais relacionam-se diretamente com a leitura. Isso leva a duas conclusões óbvias, mas que parecem não ser levadas em conta quando se coloca o peso do nosso mau desempenho em leitura na inépcia dos estudantes: 1) que a escola, mesmo com todas as suas arestas, ainda é a principal formadora de leitores e divulgadora da leitura; 2) que as condições econômicas de uma população têm relação direta com seus hábitos culturais, nos quais se inclui a leitura.
Sem entrar na questão da escola, o que muitos já fizeram para debater a leitura, detenho-me na questão econômica. Parece-me pouco provável que, num país onde a vergonhosa desigualdade social produz 53 milhões de pobres dentre os quais 22 milhões vivem em estado de miséria, as pessoas canalizem seus recursos para a compra de materiais de leitura quando o grande dilema é, ainda, sobreviver. Some-se a isso o alto preço dos livros no Brasil devido às baixas tiragens. Ora, se não se pode ler por não se poder comprar o que ler, pensa o cético, por que não emprestar livros de uma biblioteca?
Aí reside outro problema que ajuda a pensar nas dificuldades da leitura neste país. O Brasil possui, inacreditavelmente, um número irrisório (também derrisório) desses lugares de culto à leitura. Espalhadas num território de 8.511.996 Km2, salpicado de cidades, há, segundo dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas - SNBP , aproximadamente 6.102 bibliotecas no país. Destaque-se que esse número cresceu vertiginosamente a partir de 1996, quando o Minc implantou, em 2009, o Programa Uma Biblioteca em Cada Município e os números passaram de 3.500 para o número atual. Indicadores internacionais apontam que o número ideal de bibliotecas é de uma para cada cinco ou seis mil habitantes o que, no caso brasileiro, coloca a demanda de pelo menos 18 mil bibliotecas!!!
Esse, contudo, é um problema apenas de quantidade, pois quando se fala em qualidade, são outras as questões. Com exceção da Biblioteca Nacional (a décima biblioteca do mundo) e de algumas centenas de bibliotecas de centros universitários, as insuficientes bibliotecas brasileiras carecem de acervo atualizado, de espaço físico adequado para atender o público, bem como de pessoal especializado para garantir seu bom funcionamento, mesmo com a implantação de algumas políticas públicas bastante férteis como o Programa Nacional Biblioteca na Escola, mas que atinge apenas bibliotecas escolares.
Mesmo quando o problema não é dinheiro para aquisição de livros e impressos, as condições não são muito favoráveis. Poucos são, ainda, os pontos de venda. Segundo informações da Associação Nacional de Livrarias e da Distribuidora de Bancas da Editora Abril (Dinap), as livrarias somavam 3.095 pontos em 2014 e as bancas de jornais e revistas em torno de 32 mil. Cidades como a minha, Maringá, no Paraná, com direito à megastore e livrarias de bom porte são raridades comparadas aos tantos rincões do gigante Brasil.
Some-se a esse estado de coisas o longo período de ausência de campanhas mais efetivas de incentivo à leitura. Leitores não se formam de uma hora para outra e um “país letrado” tem muito a ver com ações políticas de seus dirigentes. O Brasil tem dado saltos importantes em relação à sua maturação como país de letras: profissionalizou seus escritores, conta com um parque gráfico considerável capaz de atrair empreendedores estrangeiros para seu mercado livreiro e consolidou, finalmente, um público leitor. O que resta a fazer?
A resposta está na ampliação do número de leitores e no seu aprimoramento. É nesse sentido que entram as campanhas governamentais e a busca de uma política para o livro e a leitura que possam ser levadas a sério. A escola tem, como se viu, papel fundamental, mas não consegue agir sozinha. Acabo de realizar uma pesquisa sobre práticas de leitura na escola e o que constatei é que os professores conhecem, como a sociedade, a importância da leitura, mas as confusões teóricas permanecem e se refletem em atividades de ensino pouco produtivas. Culpa do professor? Muito pouco.
É preciso relembrar que há determinadas áreas de nossa vida social que demandam uma ação mais direta do Estado. Penso que a leitura é uma delas: há espaço para ações individuais, mas o essencial precisa ser feito pelo Governo, através de investimentos na formação dos profissionais ligados à educação, através da melhora das condições gerais de acesso ao livro e ao impresso e de um movimento sólido que justifique e mantenha a leitura na escola como meio para a formação de indivíduos letrados, no sentido do termo letramento, exposto pela professora Magda Soares, que abarca não só o domínio das técnicas de leitura e escrita, mas também seu uso frequente e competente no âmbito das práticas sociais desenvolvidas pelos indivíduos.
Nesse sentido, justifica-se uma luta pelo direito à leitura, nos mesmos moldes como se luta pelo direito ao ensino gratuito de qualidade, por condições dignas de vida, de segurança, de saúde, de igualdade. Lugares comuns nos discurso sobre leitura? Alguns sim, outros não, mas que servem para matizar um pouco mais a questão e discordar do ponto de vista dominante, que vê simplesmente na “indisposição” e na “inépcia” do brasileiro os pingos para todos os “is”.

22 de abril de 2017

Modos de ver, formas de lembrar: a ditadura no Brasil e na Argentina

Berttoni Licarião


Imagem: Vincent Desiderio


Somos a memória que temos.
̶ José Saramago


O lugar é escuro, mas amplo. As paredes laterais são compostas por folhas de vidro que vão do chão ao teto cobertas por persianas do tipo blackout. Entre uma e outra dessas folhas, molduras de quadro com fundo branco foram colocadas no chão, encostadas às paredes. Não há cadeiras, bancos, nem coisa alguma que sirva de apoio ou descanso. Ao fundo, a parede com mais de seis metros de comprimento dedicada à projeção principal aguarda contando os segundos que restam até o início da próxima sessão.

O começo é arrepiante: uma a uma, as molduras passam a exibir as fotos de oficiais da marinha, do exército e da aeronáutica vestidos com a pompa simbólica de suas indumentárias militares. Ao lado de cada rosto, sobre o blackout das lâminas de vidro, projeta-se o nome completo do oficial, o apelido pelo qual ficou conhecido entre seus pares e seus crimes durante a última ditadura argentina [1976-1983]. Em pouco tempo, as informações são apagadas e surgem novos rostos igualmente paramentados, acompanhados de novos dados. Enquanto isso, na tela principal, o título Juicio y castigo a los culpables abre a exibição das datas de cada uma das audiências de investigação e julgamento dos retratados. Em menos de um minuto, cenas dessas sessões são apresentadas em breves trechos até culminarem na data do terceiro julgamento, ocorrido em 2012. Logo, todas as letras e números somem da tela principal para dar lugar à irrevogável sentença, escrita em caixa alta ocupando toda a parede:

C   O   N   D   E   N   A   D   O   S

Como num efeito dominó, cada um dos oficiais tem sua foto carimbada em vermelho com aquela mesma palavra, acompanhada pelo barulho seco do malhete. Seus rostos, no entanto, não são os mesmos de antes, não carregam quepes, dragonas e insígnias: estão envelhecidos e derrotados, viveram para ver o fim de seus anos de impunidade. Por todos os lados, começam a surgir listas e mais listas de nomes de militares envolvidos em crimes de lesa-humanidade. Ao lado de cada um, o estado atual de seus processos: falecido, julgamento em curso, condenado. Após a rápida exibição dos nomes, as luzes e projeções se apagam. As persianas então se abrem todas ao mesmo tempo, lentamente, deixando a luz da tarde invadir a sala pelas enormes folhas de vidro. Vozes dos julgamentos continuam soando no momento em que a luz alcança cada centímetro do espaço. A sala vazia e completamente iluminada anuncia o fim da exibição. Às vezes sinto que ainda estou lá, absorvendo aquela luz: sem palavras para descrever a emoção ou o arrepio na espinha.  

Excluída, naturalmente, a presença deste protagonista, a cena descrita acima acontece a cada 10 minutos de terça a domingo entre as 10h e as 17h no Casino de Los Oficiales da ESMA (Escuela de Mecanica de la Armada), atual Espacio Memoria y Derechos Humanos localizado em Buenos Aires. O referido Casino é apenas um dos muitos prédios que compõem o complexo da antiga ESMA e foi durante a ditadura argentina um centro clandestino de tortura e encarceramento de desaparecidos políticos. Inaugurado em 24 de março de 2004, o Espacio Memoria abriga exposições, painéis, projetos fotográficos, monumentos, eventos educativos, publicações periódicas e seminários, além da cobertura diária dos julgamentos, e tem como objetivo básico preservar a memória do período que implantou, nas palavras de Rodolfo Walsh[1], “el terror más profundo que há conocido la sociedad argentina”. Manteve intactos, na medida do possível, os espaços onde homens e mulheres foram confinados, os quartos em que presas grávidas tiveram seus bebês, as salas de tortura, as mensagens deixadas nas paredes. Trata-se de um “lugar de memória”, no sentido atribuído por Pierre Nora, que nasce e vive “do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”[2]. Lugares imprescindíveis que, como sabemos, o estado geralmente busca varrer para longe das vistas da história, sobretudo quando não há vigilância da sociedade civil.

Com efeito, quando a ditadura argentina acabou, “lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência do Estado”[3]. Observa-se em lugares como o Espacio Memoria y Derechos Humanos o esforço de manter vivas as histórias de vida e militância das vítimas do terrorismo de Estado sem, contudo, transformar cada caso em catástrofes pessoais. Essas, via de regra, se esgotam ao término de um longo processo jurídico no qual vítimas e famílias são devidamente indenizadas e os perpetradores, encarcerados. Ali, a memória de cada pessoa afetada passa a ser não apenas espólio do indivíduo, mas um dever para com a história do país e um caminho possível de regeneração moral e política. É evidente que a esfera pública argentina, muito a contragosto de setores privados e militares, assumiu para si os anos de ditadura como um trauma coletivo, concernente a todos os argentinos independente de terem vivido ou não durante os anos de exceção.

O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua comissão da verdade – iniciada em 2012 [4] e finalizada em 2014 – tornando-se, portanto, o último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante morosidade em um processo de resgate imprescindível à memória coletiva gera aquele temerário quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. A Argentina, por outro lado, pode ser considerada como um dos países mais eficazes no processo de resgate histórico e julgamento de militares e civis envolvidos em crimes de violação de diretos humanos durante o período da ditadura. Sua comissão da verdade teve início imediatamente após o fim dos regimes militares, ainda em 1983, e foi finalizada em 1985 com a entrega do relatório “Nunca más”. Esse documento serviu de ponto de partida para inúmeras denúncias e testemunhos que contribuíram para o julgamento de vários acusados, promovendo, com o auxílio do poder judiciário, uma medida de reparação junto à sociedade argentina, em especial aos torturados, mortos, desaparecidos e suas famílias.
Crimes contra a humanidade são imprescritíveis, ensina o direito internacional. Mesmo assim (ou exatamente por isso) o Brasil prossegue evitando sentar-se à mesa com seu passado recente. Enquanto isso, “as verdades feias”, como aponta a narradora de Azul corvo (Adriana Lisboa, 2010), “foram ao banheiro e retocaram a maquiagem”. Seguem incólumes de cara nova, sem palavra que lhes perturbe o sono. “O óbvio”, ainda citando o mesmo romance, “pulou para dentro dos arquivos”, virou história antiga, intratável e rançosa. Uma sucessão de datas e nomes mal digeridos que vez ou outra retornam na forma de um mal-estar não identificado, o qual vem à tona no momento em que condenamos os horrores da ditadura minutos antes de cruzar a ponte Rio-Niterói. Aquela mesma que homenageia o Costa e Silva, general responsável pelo AI-5.
Comparada ao modo dos argentinos, a forma brasileira de encarar os anos de chumbo provoca a necessidade de indagarmos, junto a Márcio Seligmann-Silva, “como a memória pode ‘lançar raízes’ em um país como o Brasil que reconhecidamente ‘não tem justiça’, onde não se incriminam os assassinos, onde os crimes são abandonados na ‘lata de lixo da história’?”[5]. Neste ponto, convém lembrar a entrevista com o escritor Bernardo Kucinski no programa Super Libris do canal Sesc TV. Nela, o autor de K. defende a tese de que houve um processo de individualização dos crimes contra a humanidade, na medida em que o país não assumiu a tarefa de superar o golpe de 64 como um trauma coletivo, deixando-o recair em tragédias pessoais. Destarte, nosso processo de recuperação dessa memória foi pervertido e limitou-se, com raras exceções, a medidas paliativas de retratação e indenizações. A Lei da Anistia de 1979 contribuiu sobremaneira para essa normatização do esquecimento, promovendo aquele “apagamento do erro” de que fala Paul Ricouer. Aqui, a anistia engendrou amnésia, e o luto de cada família ficou restrito à esfera do privado, carente de justiça. Torturadores seguem impunes, beneficiados pelo “mal de Alzheimer nacional”[6], à medida que casos continuam a ser enterrados sem corpos ou sepulturas. 

Lugares como o Espacio Memoria y Derechos Humanos em Buenos Aires são tributários da recusa ao silenciamento, da luta contra o apagamento da memória e dos corpos desaparecidos. Para Aleida Assmann, eles são verdadeiros transformadores culturais, capazes de transmitir a aura de experiências traumáticas e ancorá-las “de forma duradoura na memória histórica”[7]. Na falta de instalações e tribunais eficazes como os portenhos, nosso trauma resiste à obliteração e se reelabora por meio da literatura, através de um complexo arquivo de ficções e relatos que promovem, cada um à sua maneira, um acerto de contas com a história. Assim como aquela sala no Casino de los oficiales, a literatura apresenta o retrato dos torturadores, registra seus nomes e codinomes, enumera cada um de seus crimes. Construídas a partir de jornais, depoimentos, diários, cartas, relatórios, documentos e memórias, essas narrativas são o nosso multifacetado monumento em busca de reconhecimento e assimilação no âmbito público, nosso lugar de memória à espera do julgamento dos culpados.

Não obstante, a lição argentina está aí, aberta à visitação gratuita de terça a domingo, das 10h às 17h. Um testemunho de que não somos apenas a memória que temos, como disse certa vez José Saramago. Somos, sobretudo, nossa forma de ver e lembrar, nossos modos de construir o presente a partir dos despojos assombrosos de um trauma que não pode ser individualizado, porque raiz de um mal que afeta a todos.
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[1] Jornalista e escritor argentino, autor de Operação: Massacre. Foi assassinado e desaparecido pela ditadura em 1977.
[2] NORA, Pierre. “Entre a memória e a história: a problemática dos lugares”. Trad. Yara Aun Khoury. In: Projeto História, n° 10, p. 7-28, dez. 1993.      
[3] SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
[4] A comissão foi criada em 2009, mas apenas em 2012 foi sancionada a lei que estabelecia suas diretrizes e funções pela presidenta Dilma Rousseff.
[5] SELIGMANN-SILVA. Márcio. “Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento”. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013. P.84.
[6] KUCINSKI, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p.10.
[7] ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. Campinas: Editora UNICAMP. 2011. p.351.

15 de abril de 2017

Pela ocupação de um corpo

Leocádia Aparecida Chaves

Imagem: Kate Weakley


Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar?, ao discutir as possibilidades de fala daqueles que vivem historicamente em condições de subalternização nos leva a indagar sobre as possibilidades e potencialidades de sua produção discursiva bem como a sua representação num potente campo de poder, o literário. Impondo a essa área de saber, portanto, um compromisso: o de refletir sobre o caminho já percorrido e o por percorrer por vidas que, de acordo com Judith Butler em Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto, sequer são reconhecidas como vidas.

Nesta perspectiva, propomos, como recorte para esta reflexão, mapearmos, ainda que de forma inicial, a produção e a representação de pessoas transgêneras na literatura brasileira contemporânea. Este recorte, fruto da pesquisa em andamento no Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura na UnB, não é fortuito, pelo contrário, se impõe quando nos deparamos com o dado de que o Brasil, segundo pesquisa divulgada, em 2015, pela ONG Europe Transgender, é o país com o maior índice de assassinato de pessoas transgêneras por transfobia do mundo.

Esse indicativo de violência se manifesta em nossa cultura, como nos lembra Slavoj Zizek em Violência: seis reflexões laterais, tanto objetivamente quanto  subjetivamente, ou seja, tanto por meio dos dispositivos de poder quanto pelo comportamento das pessoas e, por isso, como espelhamento visualizamos essas violências também no corpo-campo literário. Essa constatação advém dos dados apresentados por Regina Dalcastagnè em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, que após extensa pesquisa, revela que tanto o controle da produção literária quanto o da representação em romances publicado pelas maiores editoras, entre os anos de 1990 e 2004, se concentra majoritariamente por homens, brancos, cisgêneros. Esse controle revela muito. Revela que os lugares de fala, que “os corpos que falam” estão concentrados na ordem patriarcal; revela que o mundo a ser representado, fatalmente, se circunscreverá aos valores e projetos dessa “casta social”.

Talvez isso explique o porquê da ocupação literária por esses “corpos”, inicialmente e fundamentalmente, se dê no terreno autobiográfico. Nesse sentido, Philipe Lejeune em O Pacto Autobiográfico: de Rosseau à Internet nos lembra que essa ocupação têm se constituído uma importante conquista pelas minorias, pois “os relatos autobiográficos, obviamente, não são escritos apenas para “transmitir a memória”, eles constituem um espaço em que se elabora, se reproduz e se transforma uma identidade coletiva.

Neste sentido, destaco como produção pioneira a obra de Anderson Herzer, A queda para o alto (1982). Herzer, que nasce Sandra e morre Anderson, escreve a sua vida sob múltiplas violências e negociações cotidianas. O seu relato-testemunho “falará” por si mesmo - a pedido de intelectuais - a sua história de vida - a experiência de seu transicionamento identitário efetivado, fundamentalmente, na Febem. Destaca-se que de um “inexistente discursivo” ocupa o espaço literário num processo de autorrestauração produzindo uma narrativa “legado” para a história da literatura testemunhal. Salienta-se, sobretudo, a sua compreensão sobre o alcance de sua representatividade como nos lembra Philipe Lejeune, que ao aceitar o convite para escrever a sua história, o aceita como se aceitasse participar de uma “batalha” ainda que solitariamente. A sua obra em prosa e versos detrata o sistema opressor falocêntrico cisgênero heteronormativo, que o leva à morte, ao suicídio, antes de ver a publicação de sua escrita.

Outro marco nessa ocupação discursiva se dá em 2011, quando é publicada a obra autobiográfica de João W. Nery, Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois, atipicamente, por uma editora de alcance mercadológico. Esta escrita é emblemática tanto pelo autor ser considerado o primeiro homem trans a ser submetido a cirurgias para a adequação de gênero no Brasil, quanto pela sua militância histórica em relação à despatologização da identidade transexual. Destaca-se que a sua vivência em muito se distancia da de Herzer, pois Nery, graduado em psicologia e proveniente de uma classe socioeconômica privilegiada, teve acesso a vivências que lhe garantiram, por exemplo, sobreviver.

No entanto, ressalto que a ocupação desse território literário tem se ampliado sensivelmente, afortunadamente. Roberto Dias Muniz em sua dissertação de Mestrado Editoras LGBTTT Brasileiras Contemporâneas como Registro de uma Literatura Homoafetiva salienta que, por força do crescimento dos movimentos e coletivos LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais), desde fins do século XX, editoras engajadas têm nascido e aberto espaço para “uma literatura que pela sua contemporaneidade pleiteia a visibilização de minorias historicamente silenciadas por relatar suas experiências e demandas sociais”.

Neste contexto, na esteira dos “desbravadores” acima indicados, destacamos a publicação do relato de vida de Jô Lessa Eu trans: alça da bolsa, relatos de um transexual (2014), o relato da Amanda Guimarães Meu nome é Amanda: #trans#mandycandy#youtube (2016) e o de Amara Moira E se eu fosse puta (2016).  

Dentre essas produções, destacamos a escrita de Amara Moira, ativista de reconhecimento nacional, que ao trazer para a sua escrita sua experiência na transição de gênero o faz ruminando e ruindo o status quo do patriarcado cisgênero higienizador por meio da língua - linguagem própria das ruas, o pajubá. Já no título, convoca o leitor a se deslocar: E se eu fosse puta?. Dessa forma, para além de ocupar um território considerado sagrado pelos letrados, o faz como travesti e puta, dois deslocamentos, no mínimo, incômodos. Portanto, de “cabo a rabo” dessacraliza os valores instituídos pelo Estado, pela Ciência, pela Família e pela Igreja. 

Moira, ao revelar a solidão e as violências vividas na prostituição, nas ruas de Campinas, também revela para o seu leitor, transformado em voyeur, as possibilidades de afeto possíveis para corpos negados pelo sistema, para corpos a que tudo é negado:

Aquele momento em que você se dá conta de que estão metralhando de olhares de todos os feitios, hostis, curiosos, divertidos, zombeteiros, não você, mas a pessoa com quem você está de mãos dadas, a pessoa a quem você dedica afeto. (Moira, 2017, p.187)

Sua identificação como travesti circunscreve-se, segundo ela mesma, como um território político, quanto a sua responsividade, quanto ao lugar social destinado às travestis na nossa sociedade que, fatalmente, será reconhecida puta e por consequência “feita” puta.

Por outro lado, ainda que de forma epidérmica e nem sempre de maneira empoderadora, esses corpos, ainda não passíveis de luto, também têm ocupado o terreno dos romances publicados pelas grandes editoras nacionais. Essa ocupação ainda que residual e dispersa, nos parece ser potente na luta pela desconstrução do enquadramento patologizador a elas atribuído e, dessa forma, ainda que a passos curtíssimos, ir “forçando” a alteração do “mapa de ausências” identificado por Regina Dalcastagnè em suas pesquisas. Quanto à representação de transexuais em romances contemporâneos, numa pesquisa ainda em andamento identificamos a obra de Marcelo Pedreira, A inevitável história de Letícia Diniz (2006), Joca Terron, Do fundo do poço se vê a lua (2010) e Elvira Vigna, Deixei ele lá e vim (2006).

Destaca-se, no entanto, que a obra de Marcelo Pedreira, fonte inspiradora para roteiro de filme e peça teatral com relativo reconhecimento de público, apresentará ao leitor uma narrativa cuja protagonista — uma travesti — terá como único destino a prostituição e a morte, ou seja, uma representação ainda circunscrita na subalternização.

Joca Terron, por sua vez, ao “dar voz para uma transexual já morta”, rompe simbolicamente com o seu silenciamento, pois ao ocupar o lugar de uma defunta-autora, aos moldes machadianos, permite ao leitor enlutar pelo seu corpo, pela sua vida:

Hosni esmurra meu rosto sem piedade. Ele chuta minha boca e os dentes voam. O sangue molha a areia em torno dos dentes caídos. Ele não diz nenhuma palavra. Faz isso de forma tão abnegada como se cumprisse uma obrigação (Terron, 2010, p.275).

Já Elvira Vigna, na obra Deixei ele lá e vim, nos possibilita reconhecer a personagem que decide usar o nome fictício de Shirley Marlone e que, na maior parte da narrativa, se apresenta como uma mulher disposta a vomitar tudo que lhe incomoda. Quanto à construção da personagem, a autora revela na linguagem um deslocamento que parece revelar a identidade da protagonista que vive um desconforto de existir: seu corpo feminino, sua documentação, a busca por uma colocação no mercado de trabalho, as inúmeras rupturas sociais, a necessidade de sempre partir, enfim, uma identidade sob suspeita. A certeza que o leitor tem é de que se trata de uma personagem protagonista que ao decidir escrever a sua história, também decidirá sobre o que irá revelar e o que irá ocultar. O que parece ser central é uma identidade, um corpo em desconforto, em deslocamento. Ao ocupar o território de uma escrita autobiográfica o faz com ironia e acidez: “Então, saiba: minha história tem falhas, buracos. E pior: vou preenchê-los” (Vigna, 2006, p.10).

Também sinalizamos para o leitor a existência de uma crescente produção literária por parte de escritores e escritoras ativistas transexuais, que têm fundamentalmente escrito sobre suas experiências, suas “escrevivências” por meio de publicações coletivas. Destaca-se neste cenário o papel da militância na criação e divulgação de sua produção literária nas redes socais e saraus, por exemplo, a publicação da Antologia Trans (2017), publicada pelo Cursinho Popular Transformação, editora Invisíveis Produções e a publicação do ebook Nós, Trans-Escrevivência e Resistência (2017). Essas obras trazem a marca de relatos de homens trans, mulheres trans negras, travestis idosas, pessoas não binárias que, numa atitude política, rompem com múltiplos silenciamentos fortalecendo narrativas de vidas.

Portanto, se por um lado, na “cartografia oficial”, há marcadamente uma ausência desses corpos-identidades, será na “cartografia marginal”, fundamentalmente, que nos depararemos com uma ocupação crescente aos moldes agambianos, pois justamente na época em que vivem, se orgulham de produzir narrativas que tentam perceber as trevas que provêm do seu tempo questionando os discursos patologizadores de suas experiências identitárias e denunciando o quanto elas são responsáveis pelas múltiplas opressões do existir na diferença. 

8 de abril de 2017

Eu escritora, eu lésbica

Natália Borges Polesso


Imagem: Marcos Villalva



Eu escritora, eu lésbica.


Eu, na minha insignificância, na minha ínfima condição de mulher lésbica, resolvi ser escritora. Escolha que não me isenta de pagar as contas, lavar as minhas roupas, tentar comer saudável, ficar puta dia sim e o outro também com comentários e fatos da vida e das internets, etcetera, etcetera. Antes de ser escritora, me tornei professora e, por escolha, pesquisadora (em eterna formação). Minha vida não é tão difícil, no mais tento equilibrar os assédios, tanto da vida acadêmica quanto da vida em geral e as necessidades prosaicas. Escrevo quando dá, não saio muito, bebo em casa (porque gosto e pra aguentar o tranco), não tenho carro, mas também não tenho dívidas, por enquanto. Não sobra dinheiro pra quase nada, mas dá tempo para organizar eventos de literatura na cidade, também insignificante, na qual vivo, longe do grande eixo da literatura brasileira, se é que uma coisa dessas (eixo?) ainda pode existir. Acho que essa metáfora, concreta demais, se desfez nos últimos anos, mas as relações de poder continuam existindo e exercem sua força opressora por outros meios nas mesmíssimas pessoas, como eixos, na tentativa de atravessar (talvez até atassalhar) minorias ou mulheres ou mulheres negras ou mulheres trans ou ainda mulheres lésbicas, onde me encaixo.


Bem, é no pouco tempo que me sobra entre essas atividades que eu penso na minha insignificante condição de escritora: escrevi três livros, três livros que tratam, direta ou indiretamente, de relações lésbicas. Sim. Simplesmente porque minha experiência de (r)existir é uma experiência de mulher e de mulher lésbica, e eu escolhi que escreveria sobre isso, porque eu, dentro de uma reflexão diária, entendi, primeiramente, a importância dessa experiência, e depois, a importância de sua visibilidade, reconhecimento e, sobretudo, respeito. Nos enredos do meu trabalho, esta se constitui uma escolha política e estética. Política por ser modo de ocupar, estética por ser modo de pensar e realizar a minha escrita.




É uma bandeira?, perguntam. Por que não seria? É uma escolha consciente? Sim, definitivamente. “Você quer escancarar o universo lésbico?”, foi a pergunta que recebi do editor de uma revista à época do lançamento do Amora (meu livro mais recente). Escancarar? (por que esta palavra tão violenta?) Até parece que vivemos num universo à parte, que precisa ser escancarado pra ser visto. Respondi, educadamente, porque também é preciso abrir diálogo frente à ignorância, que a pergunta seria descabida se trocássemos “lésbico” por “hétero”. Algumas pessoas me elogiam dizendo que “não é um livro lésbico, é um livro sobre questões maiores e que a todos tocam”. Muito obrigada, mas é justamente aí que reside o problema. Ser lésbica é uma questão maior pra mim. É parte de como eu me relaciono com o mundo, com as pessoas, e eu não quero que esse fator seja apagado. Ele é importante, primordial, até. Por outro lado, isso não quer dizer que o livro seja exclusivo para lésbicas. O livro trata de afetos, de relações de afeto e de experiências de afetividade comuns a todas as pessoas sim, é verdade, mas com uma pequena (grande) escolha estética: as mulheres são sempre protagonistas. É esse protagonismo que parece incitar os problemas quanto à critica – é um livro lésbico ou não é um livro lésbico? Isso é positivo ou redutor? – a questão não é banal e revela um descompasso. Se é um livro lésbico, é por necessidade e escolha política, o que não invalida escolhas estéticas muito menos construções narrativas. As relações não acontecem num ambiente amorfo, num fundo branco infinito, mas num espaço-tempo existente, que é o mundo, o meu, o seu, o nosso mundo, caso tenham dúvidas. E o mundo tá cheio de lésbicas.


1 de abril de 2017

O primeiro relatório da verdade do Brasil

Imagem: Lesley Oldaker


Publicado em 2007, Direito à memória e à verdade é o primeiro relatório produzido pelo Estado brasileiro sobre a ditadura militar. Produzido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República do governo Lula, este relatório antecede em sete anos a publicação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, instalada no governo Dilma Rousseff. No texto que segue, Rebecca Atencio se debruça sobre as 502 páginas de Direito à memória e à verdade para refletir sobre como o Estado brasileiro, pela primeira vez, se coloca de forma oficial frente às ideias de memória coletiva e justiça de transição.

O primeiro relatório da verdade do Brasil

            Rebecca Atencio


O prefácio de Direito à memória e à verdade tem início com uma apresentação introduzindo o relatório e também identificando seu objetivo de fomentar o respeito aos direitos humanos no país e apoiando o compromisso da nação de se tornar uma potência global, seguido de um resumo do conteúdo do relatório que, em certo ponto, diz:

Uma dupla face deste Brasil ... saltará à vista dos leitores (destaque da autora) ...
Uma face é a do país que vem fortalecendo suas instituições democráticas há mais de 20 anos. É a face boa, estimulante e promissora de uma nação que parece ter optado definitivamente pela democracia, entendendo que ela representa um poderoso escudo contra os impulsos do ódio e da guerra, que sempre se alimentam da opressão.
A leitura também mostrará uma outra face. É aquela percebida nos obstáculos que foram encontrados por quem exige conhecer a verdade, com destaque para quem reclama o direito milenar e sagrado de sepultar seus entes queridos.

Com essas palavras, os autores enfatizam a ideia de que o relatório tornará visível o que não está facilmente aparente, no que diz respeito não apenas às conquistas da transição democrática, mas também à intransigência histórica do Estado em face das demandas por memória e justiça.

Eu quero chamar a atenção para essa ênfase em visibilidade/invisibilidade, pois, se aceitarmos a definição proposta por Avery Gordon de visibilidade como um ″sistema complexo de permissão e proibição, intercalado por aparições e cegueira histérica″, então podemos presumir que a visibilidade defendida no relatório é parcial e problemática e que o relatório em si é caracterizado por (com as palavras de Gordon) ″uma constante negociação entre o que pode ser visto e o que permanece nas sombras″. A retórica do prefácio apresenta o próprio relatório como uma forma de luz e visibilidade em direção oposta à opacidade que o precedeu: o objetivo de Direito à memória e à verdade, está dito, é ″jogar luzes sobre um período de escuridão″. Apesar de toda sua ênfase em tornar visíveis certas realidades que historicamente não estavam à mostra para o público (as duas faces), o relatório em si produz (ou reproduz) certas invisibilidades, principalmente no que diz respeito à questão da responsabilidade criminal de indivíduos. É importante observar criticamente a questão da visibilidade porque esse relatório é uma narrativa de fundação da nova política de memória do Estado brasileiro: marca a primeira vez que o Estado sistemática e oficialmente apresentou sua visão do que significa justiça de transição no contexto do país.

O próprio título do relatório ilustra como a visibilidade proposta é parcial. Traz à luz os direitos à memória e à verdade brasileiras, mas relega a justiça à escuridão. Não há, no título, um correspondente ″direito à justiça″, nem em nenhuma outra parte do documento. É de fato extraordinário que a palavra justiça apareça somente uma vez em todo o relatório, e, mesmo assim, refere-se não à punição criminal, mas sim à memória: ″O trabalho da Comissão Especial é a possibilidade, com a resposta do Estado, da restauração da justiça e da paz, para que perseguições, mortes e desaparecimentos forçados nunca mais voltem a acontecer neste país″. Os autores, portanto, não associam justiça à punição criminal (nem mesmo a identificação dos criminosos). Além disso, eles redefinem justiça como sinônimo de restauração de um passado penoso: ″Redemocratizado, o Estado brasileiro cumpriu também um certo papel de juiz histórico ao fazer o resgate da memória e da verdade″. Nesse contexto, as indenizações materiais se tornam, nas palavras do relatório, a ″consequência natural e legal″ do reconhecimento do Estado de sua responsabilidade sobre as mortes e os desaparecimentos. Uso do termo natural não é fortuito: serve para naturalizar as indenizações e, por meio disso, desnaturalizar os processos judiciais que dão conta das violações de direitos humanos, que, junto a comissões da verdade, são consequências legais muito mais comuns nas transições democráticas do que programas de reparação financeira.  

Um apagamento similar ocorre na narrativa apresentada no relatório a respeito da luta travada por familiares dos desaparecidos ao longo dos últimos quarenta anos. Uma leitura atenta revela que essa narrativa suprime em grande medida a existência de uma demanda por punição. Por exemplo, ao apresentar o sofrimento dessas famílias no final da década de 1970, o relatório menciona ″a legítima pressão (...) a favor da Anistia e do direito à verdade″. Ao omitir o fato de que pelo menos algumas famílias também pressionaram por punição, o relatório não apenas silencia essas demandas, mas também deixa implícito que, mesmo que tenham existido, elas não são legítimas.

Isso não significa dizer que o relatório ignora completamente a questão da impunidade. Ele reconhece que a Anistia é polêmica, dá voz às críticas dos familiares sobre a Lei dos Desaparecidos e conclui com o argumento de que um desaparecimento segue ininterrupto e constitui um crime em continuidade até que um corpo seja localizado. Ainda assim, as referências tendem a ser breves, superficiais e relativamente brandas. As críticas mais severas aparecem em forma de citação, pulverizadas ao longo do texto, assinadas por personalidades sem vínculo com o Estado. Por exemplo, os autores do relatório observam que ″a sociedade aparenta ter aceito o argumento de que a Anistia protegeria os torturadores [de processos criminais]″, mas rapidamente apresentam uma refutação dessa tese por parte do jurista Belisário dos Santos Jr., o qual afirma que o argumento ″é incorreto do ponto de vista jurídico″. Não por acaso, o relatório esquece de identificar Santos como um antigo membro da comissão, apresentando-o na verdade como um cidadão qualquer cujas opiniões não representam as da comissão. Uma crítica tímida sobre a interrupção prevalecente da Lei da Anistia é expressa, mas apenas quando atribuída a vozes dissidentes ou minoritárias que não refletem a versão oficial do Estado. O mesmo ocorre com a questão de ″crimes continuados″: os próprios autores do relatório citam o ponto de vista abalizado por ″juristas altamente respeitados″ de que a Lei da Anistia não pode abranger os desaparecimentos forçados porque o processo desses crimes é contínuo até que os corpos sejam localizados. Os autores do relatório, entretanto, se contêm nesse ponto para não acabar evidenciando as conclusões desse raciocínio.

Apesar de o relatório insinuar insatisfação por parte de certos grupos pró-memória, a orientação geral é tornar as exigências de punição invisíveis. Em nenhum momento, isto é tão nítido quanto nos últimos parágrafos do prefácio: 

Nenhum espírito de revanchismo ou nostalgia do passado será capaz de seduzir o espírito nacional...
O lançamento deste livro na data que marca 28 anos da publicação da Lei de Anistia, em 1979, sinaliza a busca de concórdia, o sentimento de reconciliação e os objetivos humanitários que moveram os 11 anos de trabalho da Comissão Especial.

            Ao exaltar o ″desejo por unidade, o sentimento de reconciliação″, o relatório adota a retórica da reconciliação pela memória. Apesar do uso acrítico do termo revanchismo, o relatório reforça – e implicitamente endossa – a convicção de parte dos militares e da sociedade brasileira de que justiça se confunde com um tipo de vingança mesquinha quando se trata de responsabilizar indivíduos criminalmente, o que seria de algum modo antibrasileiro.

            A ideia de que essa noção de justiça (compreendida como vingança) é antibrasileira deriva de discursos influentes que celebram a conciliação e a cordialidade – a preferência por resoluções de conflitos de forma pacífica – como uma característica definidora da identidade nacional. Sérgio Buarque de Holanda dissertou sobre essa questão no capítulo ″O homem cordial″, do clássico Raízes do Brasil. No entanto, talvez nenhum pensador brasileiro encarne tão bem esse discurso quanto Gilberto Freyre, cujos escritos exaltam as virtudes do país de lidar com os conflitos de forma leve. Apesar de Holanda ter sido o primeiro a propor cordialidade como característica nacional, foi Gilberto Freyre, em seu Sobrados e mucambos e outros trabalhos, que deu à expressão o seu sentido popular. Por exemplo, em seu tratado Novo mundo nos trópicos, publicado em 1959, apenas cinco anos antes do golpe militar (que se consumou sem derramamento de sangue), o sociólogo louva as ″revoluções brancas, ou pacíficas″ que caracterizam a história brasileira, listando a Independência em relação a Portugal, a passagem de Império para República e a abolição da escravatura como exemplos. A tradução para o português de Novo mundo nos trópicos contém ainda uma frase (que não foi encontrada na versão original em inglês) a qual compara favoravelmente os brasileiros com ″outros povos, menos felizes na solução de seus desajustamentos sociais″.

          No contexto brasileiro de pós-ditadura, esse discurso é mantido pela elite política, em particular por meio da celebração da Lei da Anistia como um triunfo da reconciliação. Mesmo políticos de esquerda – Dilma Rousseff é o maior exemplo – se apropriam dessa linguagem para desarmar críticas a suas iniciativas de justiça de transição (ao apresentar tais iniciativas, há sempre a negação de que a motivação para tanto não se trata de revanchismo) e de escapar de discussões sobre seus próprios passados. Aqueles que se posicionam politicamente à esquerda e que desafiam essa lógica são rotulados de revanchistas e seus discursos são deslegitimados.

           Direito à memória e à verdade garante, do aspecto político, visibilidade aos desaparecimentos, no entanto, a questão da responsabilidade criminal aos indivíduos envolvidos – a justiça, em si – ainda permanece invisível. O relatório incorpora o discurso de reconciliação por meio da memória, atribuindo essa abordagem culturalmente dominante à hegemonia política passada. O principal autor de Direito à memória e à verdade é Paulo Vannuchi, então Ministro dos Direitos Humanos, um ator-chave na batalha para inserir a memória da ditadura na agenda nacional. O conservadorismo do relatório reflete a posição de dificuldade do ministro dos Direitos Humanos, que foi escolhido para falar em nome do governo Lula, no poder na época, ainda que estivesse ciente da dissidência de outros setores do governo, especialmente parte dos militares. O fato de que nenhum relatório foi produzido durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que pensou e implementou a Lei dos Desaparecidos, reflete essa dificuldade. De fato, a proposta inicial de Vannuchi de uma comissão nacional da verdade, apresentada ao presidente em 2010, acendeu uma crise política quando o Ministro da Defesa Nelson Jobim e os chefes dos três ramos das forças armadas ameaçaram abandonar o governo com uma demissão em massa, caso mudanças não fossem feitas.

Relatórios da verdade são apenas um dos modos de Estados – ou, mais precisamente, governos ou ministros que os compõem – articularem suas políticas e visões sobre o passado. A realidade é muito mais complexa que as narrativas desenhadas para moldá-la ou descrevê-la. Além disso, importantes progressos em relação à responsabilidade criminal de torturadores da ditadura têm ocorrido desde a publicação de Direito à memória e à verdade, em 2007: o Supremo Tribunal Federal reconsiderou a Lei da Anistia em 2010 (ainda que tenham votado para mantê-la); a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em 2010 pelos desaparecimentos ocorridos durante a ditadura e a impunidade que se seguiu; e o Ministério Público começou a tentar acolher queixas criminais contra acusados de violar os direitos humanos. Mesmo assim, Direito à memória e à verdade revela a resiliência da abordagem de reconciliação pela memória e sua apropriação pelo Estado brasileiro.  

Este texto é parte do livro Memory’s Turn: reckoning with Dictatorship in Brazil (2014), de Rebecca Atencio.
Tradução do texto: Humberto Torres.

O relatório Direito à memória e à verdade (2007) pode ser encontrado na íntegra aqui.