15 de abril de 2017

Pela ocupação de um corpo

Leocádia Aparecida Chaves

Imagem: Kate Weakley


Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar?, ao discutir as possibilidades de fala daqueles que vivem historicamente em condições de subalternização nos leva a indagar sobre as possibilidades e potencialidades de sua produção discursiva bem como a sua representação num potente campo de poder, o literário. Impondo a essa área de saber, portanto, um compromisso: o de refletir sobre o caminho já percorrido e o por percorrer por vidas que, de acordo com Judith Butler em Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto, sequer são reconhecidas como vidas.

Nesta perspectiva, propomos, como recorte para esta reflexão, mapearmos, ainda que de forma inicial, a produção e a representação de pessoas transgêneras na literatura brasileira contemporânea. Este recorte, fruto da pesquisa em andamento no Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura na UnB, não é fortuito, pelo contrário, se impõe quando nos deparamos com o dado de que o Brasil, segundo pesquisa divulgada, em 2015, pela ONG Europe Transgender, é o país com o maior índice de assassinato de pessoas transgêneras por transfobia do mundo.

Esse indicativo de violência se manifesta em nossa cultura, como nos lembra Slavoj Zizek em Violência: seis reflexões laterais, tanto objetivamente quanto  subjetivamente, ou seja, tanto por meio dos dispositivos de poder quanto pelo comportamento das pessoas e, por isso, como espelhamento visualizamos essas violências também no corpo-campo literário. Essa constatação advém dos dados apresentados por Regina Dalcastagnè em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, que após extensa pesquisa, revela que tanto o controle da produção literária quanto o da representação em romances publicado pelas maiores editoras, entre os anos de 1990 e 2004, se concentra majoritariamente por homens, brancos, cisgêneros. Esse controle revela muito. Revela que os lugares de fala, que “os corpos que falam” estão concentrados na ordem patriarcal; revela que o mundo a ser representado, fatalmente, se circunscreverá aos valores e projetos dessa “casta social”.

Talvez isso explique o porquê da ocupação literária por esses “corpos”, inicialmente e fundamentalmente, se dê no terreno autobiográfico. Nesse sentido, Philipe Lejeune em O Pacto Autobiográfico: de Rosseau à Internet nos lembra que essa ocupação têm se constituído uma importante conquista pelas minorias, pois “os relatos autobiográficos, obviamente, não são escritos apenas para “transmitir a memória”, eles constituem um espaço em que se elabora, se reproduz e se transforma uma identidade coletiva.

Neste sentido, destaco como produção pioneira a obra de Anderson Herzer, A queda para o alto (1982). Herzer, que nasce Sandra e morre Anderson, escreve a sua vida sob múltiplas violências e negociações cotidianas. O seu relato-testemunho “falará” por si mesmo - a pedido de intelectuais - a sua história de vida - a experiência de seu transicionamento identitário efetivado, fundamentalmente, na Febem. Destaca-se que de um “inexistente discursivo” ocupa o espaço literário num processo de autorrestauração produzindo uma narrativa “legado” para a história da literatura testemunhal. Salienta-se, sobretudo, a sua compreensão sobre o alcance de sua representatividade como nos lembra Philipe Lejeune, que ao aceitar o convite para escrever a sua história, o aceita como se aceitasse participar de uma “batalha” ainda que solitariamente. A sua obra em prosa e versos detrata o sistema opressor falocêntrico cisgênero heteronormativo, que o leva à morte, ao suicídio, antes de ver a publicação de sua escrita.

Outro marco nessa ocupação discursiva se dá em 2011, quando é publicada a obra autobiográfica de João W. Nery, Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois, atipicamente, por uma editora de alcance mercadológico. Esta escrita é emblemática tanto pelo autor ser considerado o primeiro homem trans a ser submetido a cirurgias para a adequação de gênero no Brasil, quanto pela sua militância histórica em relação à despatologização da identidade transexual. Destaca-se que a sua vivência em muito se distancia da de Herzer, pois Nery, graduado em psicologia e proveniente de uma classe socioeconômica privilegiada, teve acesso a vivências que lhe garantiram, por exemplo, sobreviver.

No entanto, ressalto que a ocupação desse território literário tem se ampliado sensivelmente, afortunadamente. Roberto Dias Muniz em sua dissertação de Mestrado Editoras LGBTTT Brasileiras Contemporâneas como Registro de uma Literatura Homoafetiva salienta que, por força do crescimento dos movimentos e coletivos LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais), desde fins do século XX, editoras engajadas têm nascido e aberto espaço para “uma literatura que pela sua contemporaneidade pleiteia a visibilização de minorias historicamente silenciadas por relatar suas experiências e demandas sociais”.

Neste contexto, na esteira dos “desbravadores” acima indicados, destacamos a publicação do relato de vida de Jô Lessa Eu trans: alça da bolsa, relatos de um transexual (2014), o relato da Amanda Guimarães Meu nome é Amanda: #trans#mandycandy#youtube (2016) e o de Amara Moira E se eu fosse puta (2016).  

Dentre essas produções, destacamos a escrita de Amara Moira, ativista de reconhecimento nacional, que ao trazer para a sua escrita sua experiência na transição de gênero o faz ruminando e ruindo o status quo do patriarcado cisgênero higienizador por meio da língua - linguagem própria das ruas, o pajubá. Já no título, convoca o leitor a se deslocar: E se eu fosse puta?. Dessa forma, para além de ocupar um território considerado sagrado pelos letrados, o faz como travesti e puta, dois deslocamentos, no mínimo, incômodos. Portanto, de “cabo a rabo” dessacraliza os valores instituídos pelo Estado, pela Ciência, pela Família e pela Igreja. 

Moira, ao revelar a solidão e as violências vividas na prostituição, nas ruas de Campinas, também revela para o seu leitor, transformado em voyeur, as possibilidades de afeto possíveis para corpos negados pelo sistema, para corpos a que tudo é negado:

Aquele momento em que você se dá conta de que estão metralhando de olhares de todos os feitios, hostis, curiosos, divertidos, zombeteiros, não você, mas a pessoa com quem você está de mãos dadas, a pessoa a quem você dedica afeto. (Moira, 2017, p.187)

Sua identificação como travesti circunscreve-se, segundo ela mesma, como um território político, quanto a sua responsividade, quanto ao lugar social destinado às travestis na nossa sociedade que, fatalmente, será reconhecida puta e por consequência “feita” puta.

Por outro lado, ainda que de forma epidérmica e nem sempre de maneira empoderadora, esses corpos, ainda não passíveis de luto, também têm ocupado o terreno dos romances publicados pelas grandes editoras nacionais. Essa ocupação ainda que residual e dispersa, nos parece ser potente na luta pela desconstrução do enquadramento patologizador a elas atribuído e, dessa forma, ainda que a passos curtíssimos, ir “forçando” a alteração do “mapa de ausências” identificado por Regina Dalcastagnè em suas pesquisas. Quanto à representação de transexuais em romances contemporâneos, numa pesquisa ainda em andamento identificamos a obra de Marcelo Pedreira, A inevitável história de Letícia Diniz (2006), Joca Terron, Do fundo do poço se vê a lua (2010) e Elvira Vigna, Deixei ele lá e vim (2006).

Destaca-se, no entanto, que a obra de Marcelo Pedreira, fonte inspiradora para roteiro de filme e peça teatral com relativo reconhecimento de público, apresentará ao leitor uma narrativa cuja protagonista — uma travesti — terá como único destino a prostituição e a morte, ou seja, uma representação ainda circunscrita na subalternização.

Joca Terron, por sua vez, ao “dar voz para uma transexual já morta”, rompe simbolicamente com o seu silenciamento, pois ao ocupar o lugar de uma defunta-autora, aos moldes machadianos, permite ao leitor enlutar pelo seu corpo, pela sua vida:

Hosni esmurra meu rosto sem piedade. Ele chuta minha boca e os dentes voam. O sangue molha a areia em torno dos dentes caídos. Ele não diz nenhuma palavra. Faz isso de forma tão abnegada como se cumprisse uma obrigação (Terron, 2010, p.275).

Já Elvira Vigna, na obra Deixei ele lá e vim, nos possibilita reconhecer a personagem que decide usar o nome fictício de Shirley Marlone e que, na maior parte da narrativa, se apresenta como uma mulher disposta a vomitar tudo que lhe incomoda. Quanto à construção da personagem, a autora revela na linguagem um deslocamento que parece revelar a identidade da protagonista que vive um desconforto de existir: seu corpo feminino, sua documentação, a busca por uma colocação no mercado de trabalho, as inúmeras rupturas sociais, a necessidade de sempre partir, enfim, uma identidade sob suspeita. A certeza que o leitor tem é de que se trata de uma personagem protagonista que ao decidir escrever a sua história, também decidirá sobre o que irá revelar e o que irá ocultar. O que parece ser central é uma identidade, um corpo em desconforto, em deslocamento. Ao ocupar o território de uma escrita autobiográfica o faz com ironia e acidez: “Então, saiba: minha história tem falhas, buracos. E pior: vou preenchê-los” (Vigna, 2006, p.10).

Também sinalizamos para o leitor a existência de uma crescente produção literária por parte de escritores e escritoras ativistas transexuais, que têm fundamentalmente escrito sobre suas experiências, suas “escrevivências” por meio de publicações coletivas. Destaca-se neste cenário o papel da militância na criação e divulgação de sua produção literária nas redes socais e saraus, por exemplo, a publicação da Antologia Trans (2017), publicada pelo Cursinho Popular Transformação, editora Invisíveis Produções e a publicação do ebook Nós, Trans-Escrevivência e Resistência (2017). Essas obras trazem a marca de relatos de homens trans, mulheres trans negras, travestis idosas, pessoas não binárias que, numa atitude política, rompem com múltiplos silenciamentos fortalecendo narrativas de vidas.

Portanto, se por um lado, na “cartografia oficial”, há marcadamente uma ausência desses corpos-identidades, será na “cartografia marginal”, fundamentalmente, que nos depararemos com uma ocupação crescente aos moldes agambianos, pois justamente na época em que vivem, se orgulham de produzir narrativas que tentam perceber as trevas que provêm do seu tempo questionando os discursos patologizadores de suas experiências identitárias e denunciando o quanto elas são responsáveis pelas múltiplas opressões do existir na diferença. 

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