22 de abril de 2017

Modos de ver, formas de lembrar: a ditadura no Brasil e na Argentina

Berttoni Licarião


Imagem: Vincent Desiderio


Somos a memória que temos.
̶ José Saramago


O lugar é escuro, mas amplo. As paredes laterais são compostas por folhas de vidro que vão do chão ao teto cobertas por persianas do tipo blackout. Entre uma e outra dessas folhas, molduras de quadro com fundo branco foram colocadas no chão, encostadas às paredes. Não há cadeiras, bancos, nem coisa alguma que sirva de apoio ou descanso. Ao fundo, a parede com mais de seis metros de comprimento dedicada à projeção principal aguarda contando os segundos que restam até o início da próxima sessão.

O começo é arrepiante: uma a uma, as molduras passam a exibir as fotos de oficiais da marinha, do exército e da aeronáutica vestidos com a pompa simbólica de suas indumentárias militares. Ao lado de cada rosto, sobre o blackout das lâminas de vidro, projeta-se o nome completo do oficial, o apelido pelo qual ficou conhecido entre seus pares e seus crimes durante a última ditadura argentina [1976-1983]. Em pouco tempo, as informações são apagadas e surgem novos rostos igualmente paramentados, acompanhados de novos dados. Enquanto isso, na tela principal, o título Juicio y castigo a los culpables abre a exibição das datas de cada uma das audiências de investigação e julgamento dos retratados. Em menos de um minuto, cenas dessas sessões são apresentadas em breves trechos até culminarem na data do terceiro julgamento, ocorrido em 2012. Logo, todas as letras e números somem da tela principal para dar lugar à irrevogável sentença, escrita em caixa alta ocupando toda a parede:

C   O   N   D   E   N   A   D   O   S

Como num efeito dominó, cada um dos oficiais tem sua foto carimbada em vermelho com aquela mesma palavra, acompanhada pelo barulho seco do malhete. Seus rostos, no entanto, não são os mesmos de antes, não carregam quepes, dragonas e insígnias: estão envelhecidos e derrotados, viveram para ver o fim de seus anos de impunidade. Por todos os lados, começam a surgir listas e mais listas de nomes de militares envolvidos em crimes de lesa-humanidade. Ao lado de cada um, o estado atual de seus processos: falecido, julgamento em curso, condenado. Após a rápida exibição dos nomes, as luzes e projeções se apagam. As persianas então se abrem todas ao mesmo tempo, lentamente, deixando a luz da tarde invadir a sala pelas enormes folhas de vidro. Vozes dos julgamentos continuam soando no momento em que a luz alcança cada centímetro do espaço. A sala vazia e completamente iluminada anuncia o fim da exibição. Às vezes sinto que ainda estou lá, absorvendo aquela luz: sem palavras para descrever a emoção ou o arrepio na espinha.  

Excluída, naturalmente, a presença deste protagonista, a cena descrita acima acontece a cada 10 minutos de terça a domingo entre as 10h e as 17h no Casino de Los Oficiales da ESMA (Escuela de Mecanica de la Armada), atual Espacio Memoria y Derechos Humanos localizado em Buenos Aires. O referido Casino é apenas um dos muitos prédios que compõem o complexo da antiga ESMA e foi durante a ditadura argentina um centro clandestino de tortura e encarceramento de desaparecidos políticos. Inaugurado em 24 de março de 2004, o Espacio Memoria abriga exposições, painéis, projetos fotográficos, monumentos, eventos educativos, publicações periódicas e seminários, além da cobertura diária dos julgamentos, e tem como objetivo básico preservar a memória do período que implantou, nas palavras de Rodolfo Walsh[1], “el terror más profundo que há conocido la sociedad argentina”. Manteve intactos, na medida do possível, os espaços onde homens e mulheres foram confinados, os quartos em que presas grávidas tiveram seus bebês, as salas de tortura, as mensagens deixadas nas paredes. Trata-se de um “lugar de memória”, no sentido atribuído por Pierre Nora, que nasce e vive “do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”[2]. Lugares imprescindíveis que, como sabemos, o estado geralmente busca varrer para longe das vistas da história, sobretudo quando não há vigilância da sociedade civil.

Com efeito, quando a ditadura argentina acabou, “lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência do Estado”[3]. Observa-se em lugares como o Espacio Memoria y Derechos Humanos o esforço de manter vivas as histórias de vida e militância das vítimas do terrorismo de Estado sem, contudo, transformar cada caso em catástrofes pessoais. Essas, via de regra, se esgotam ao término de um longo processo jurídico no qual vítimas e famílias são devidamente indenizadas e os perpetradores, encarcerados. Ali, a memória de cada pessoa afetada passa a ser não apenas espólio do indivíduo, mas um dever para com a história do país e um caminho possível de regeneração moral e política. É evidente que a esfera pública argentina, muito a contragosto de setores privados e militares, assumiu para si os anos de ditadura como um trauma coletivo, concernente a todos os argentinos independente de terem vivido ou não durante os anos de exceção.

O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua comissão da verdade – iniciada em 2012 [4] e finalizada em 2014 – tornando-se, portanto, o último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante morosidade em um processo de resgate imprescindível à memória coletiva gera aquele temerário quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. A Argentina, por outro lado, pode ser considerada como um dos países mais eficazes no processo de resgate histórico e julgamento de militares e civis envolvidos em crimes de violação de diretos humanos durante o período da ditadura. Sua comissão da verdade teve início imediatamente após o fim dos regimes militares, ainda em 1983, e foi finalizada em 1985 com a entrega do relatório “Nunca más”. Esse documento serviu de ponto de partida para inúmeras denúncias e testemunhos que contribuíram para o julgamento de vários acusados, promovendo, com o auxílio do poder judiciário, uma medida de reparação junto à sociedade argentina, em especial aos torturados, mortos, desaparecidos e suas famílias.
Crimes contra a humanidade são imprescritíveis, ensina o direito internacional. Mesmo assim (ou exatamente por isso) o Brasil prossegue evitando sentar-se à mesa com seu passado recente. Enquanto isso, “as verdades feias”, como aponta a narradora de Azul corvo (Adriana Lisboa, 2010), “foram ao banheiro e retocaram a maquiagem”. Seguem incólumes de cara nova, sem palavra que lhes perturbe o sono. “O óbvio”, ainda citando o mesmo romance, “pulou para dentro dos arquivos”, virou história antiga, intratável e rançosa. Uma sucessão de datas e nomes mal digeridos que vez ou outra retornam na forma de um mal-estar não identificado, o qual vem à tona no momento em que condenamos os horrores da ditadura minutos antes de cruzar a ponte Rio-Niterói. Aquela mesma que homenageia o Costa e Silva, general responsável pelo AI-5.
Comparada ao modo dos argentinos, a forma brasileira de encarar os anos de chumbo provoca a necessidade de indagarmos, junto a Márcio Seligmann-Silva, “como a memória pode ‘lançar raízes’ em um país como o Brasil que reconhecidamente ‘não tem justiça’, onde não se incriminam os assassinos, onde os crimes são abandonados na ‘lata de lixo da história’?”[5]. Neste ponto, convém lembrar a entrevista com o escritor Bernardo Kucinski no programa Super Libris do canal Sesc TV. Nela, o autor de K. defende a tese de que houve um processo de individualização dos crimes contra a humanidade, na medida em que o país não assumiu a tarefa de superar o golpe de 64 como um trauma coletivo, deixando-o recair em tragédias pessoais. Destarte, nosso processo de recuperação dessa memória foi pervertido e limitou-se, com raras exceções, a medidas paliativas de retratação e indenizações. A Lei da Anistia de 1979 contribuiu sobremaneira para essa normatização do esquecimento, promovendo aquele “apagamento do erro” de que fala Paul Ricouer. Aqui, a anistia engendrou amnésia, e o luto de cada família ficou restrito à esfera do privado, carente de justiça. Torturadores seguem impunes, beneficiados pelo “mal de Alzheimer nacional”[6], à medida que casos continuam a ser enterrados sem corpos ou sepulturas. 

Lugares como o Espacio Memoria y Derechos Humanos em Buenos Aires são tributários da recusa ao silenciamento, da luta contra o apagamento da memória e dos corpos desaparecidos. Para Aleida Assmann, eles são verdadeiros transformadores culturais, capazes de transmitir a aura de experiências traumáticas e ancorá-las “de forma duradoura na memória histórica”[7]. Na falta de instalações e tribunais eficazes como os portenhos, nosso trauma resiste à obliteração e se reelabora por meio da literatura, através de um complexo arquivo de ficções e relatos que promovem, cada um à sua maneira, um acerto de contas com a história. Assim como aquela sala no Casino de los oficiales, a literatura apresenta o retrato dos torturadores, registra seus nomes e codinomes, enumera cada um de seus crimes. Construídas a partir de jornais, depoimentos, diários, cartas, relatórios, documentos e memórias, essas narrativas são o nosso multifacetado monumento em busca de reconhecimento e assimilação no âmbito público, nosso lugar de memória à espera do julgamento dos culpados.

Não obstante, a lição argentina está aí, aberta à visitação gratuita de terça a domingo, das 10h às 17h. Um testemunho de que não somos apenas a memória que temos, como disse certa vez José Saramago. Somos, sobretudo, nossa forma de ver e lembrar, nossos modos de construir o presente a partir dos despojos assombrosos de um trauma que não pode ser individualizado, porque raiz de um mal que afeta a todos.
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[1] Jornalista e escritor argentino, autor de Operação: Massacre. Foi assassinado e desaparecido pela ditadura em 1977.
[2] NORA, Pierre. “Entre a memória e a história: a problemática dos lugares”. Trad. Yara Aun Khoury. In: Projeto História, n° 10, p. 7-28, dez. 1993.      
[3] SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
[4] A comissão foi criada em 2009, mas apenas em 2012 foi sancionada a lei que estabelecia suas diretrizes e funções pela presidenta Dilma Rousseff.
[5] SELIGMANN-SILVA. Márcio. “Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento”. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013. P.84.
[6] KUCINSKI, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p.10.
[7] ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. Campinas: Editora UNICAMP. 2011. p.351.

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