Publicado
em 2007, Direito à memória e à verdade é o primeiro relatório produzido pelo
Estado brasileiro sobre a ditadura militar. Produzido pela Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República do governo Lula, este
relatório antecede em sete anos a publicação do relatório final da Comissão Nacional
da Verdade, instalada no governo Dilma Rousseff. No texto que segue, Rebecca Atencio se debruça sobre as 502 páginas de Direito
à memória e à verdade para refletir sobre como o Estado brasileiro, pela
primeira vez, se coloca de forma oficial frente às ideias de memória coletiva e
justiça de transição.
O
primeiro relatório da verdade do Brasil
Rebecca Atencio
O prefácio de Direito à memória e à verdade tem início
com uma apresentação introduzindo o relatório e também identificando seu
objetivo de fomentar o respeito aos direitos humanos no país e apoiando o
compromisso da nação de se tornar uma potência global, seguido de um resumo do
conteúdo do relatório que, em certo ponto, diz:
Uma
dupla face deste Brasil ... saltará à
vista dos leitores (destaque da autora) ...
Uma
face é a do país que vem fortalecendo suas instituições democráticas há mais de
20 anos. É a face boa, estimulante e promissora de uma nação que parece ter
optado definitivamente pela democracia, entendendo que ela representa um
poderoso escudo contra os impulsos do ódio e da guerra, que sempre se alimentam
da opressão.
A
leitura também mostrará uma outra face. É aquela percebida nos obstáculos que
foram encontrados por quem exige conhecer a verdade, com destaque para quem
reclama o direito milenar e sagrado de sepultar seus entes queridos.
Com essas palavras, os
autores enfatizam a ideia de que o relatório tornará visível o que não está facilmente
aparente, no que diz respeito não apenas às conquistas da transição democrática,
mas também à intransigência histórica do Estado em face das demandas por
memória e justiça.
Eu quero chamar a
atenção para essa ênfase em visibilidade/invisibilidade, pois, se aceitarmos a
definição proposta por Avery Gordon de visibilidade como um ″sistema complexo
de permissão e proibição, intercalado por aparições e cegueira histérica″, então
podemos presumir que a visibilidade defendida no relatório é parcial e problemática
e que o relatório em si é caracterizado por (com as palavras de Gordon) ″uma
constante negociação entre o que pode ser visto e o que permanece nas sombras″.
A retórica do prefácio apresenta o próprio relatório como uma forma de luz e
visibilidade em direção oposta à opacidade que o precedeu: o objetivo de Direito à memória e à verdade, está
dito, é ″jogar luzes sobre um período de escuridão″. Apesar de toda sua ênfase
em tornar visíveis certas realidades que historicamente não estavam à mostra
para o público (as duas faces), o relatório em si produz (ou reproduz) certas
invisibilidades, principalmente no que diz respeito à questão da responsabilidade
criminal de indivíduos. É importante observar criticamente a questão da
visibilidade porque esse relatório é uma narrativa de fundação da nova política
de memória do Estado brasileiro: marca a primeira vez que o Estado sistemática
e oficialmente apresentou sua visão do que significa justiça de transição no
contexto do país.
O próprio título do
relatório ilustra como a visibilidade proposta é parcial. Traz à luz os
direitos à memória e à verdade brasileiras, mas relega a justiça à escuridão.
Não há, no título, um correspondente ″direito à justiça″, nem em nenhuma outra
parte do documento. É de fato extraordinário que a palavra justiça apareça somente uma vez em todo o relatório, e, mesmo assim,
refere-se não à punição criminal, mas sim à memória: ″O trabalho da Comissão
Especial é a possibilidade, com a resposta do Estado, da restauração da justiça
e da paz, para que perseguições, mortes e desaparecimentos forçados nunca mais
voltem a acontecer neste país″. Os autores, portanto, não associam justiça à punição criminal (nem mesmo a
identificação dos criminosos). Além disso, eles redefinem justiça como sinônimo
de restauração de um passado penoso: ″Redemocratizado, o Estado brasileiro
cumpriu também um certo papel de juiz histórico ao fazer o resgate da memória e
da verdade″. Nesse contexto, as indenizações materiais se tornam, nas palavras
do relatório, a ″consequência natural e legal″ do reconhecimento do Estado de
sua responsabilidade sobre as mortes e os desaparecimentos. Uso do termo natural não é fortuito: serve para
naturalizar as indenizações e, por meio disso, desnaturalizar os processos
judiciais que dão conta das violações de direitos humanos, que, junto a
comissões da verdade, são consequências legais muito mais comuns nas transições
democráticas do que programas de reparação financeira.
Um apagamento similar
ocorre na narrativa apresentada no relatório a respeito da luta travada por
familiares dos desaparecidos ao longo dos últimos quarenta anos. Uma leitura
atenta revela que essa narrativa suprime em grande medida a existência de uma
demanda por punição. Por exemplo, ao apresentar o sofrimento dessas famílias no
final da década de 1970, o relatório menciona ″a legítima pressão (...) a favor
da Anistia e do direito à verdade″. Ao omitir o fato de que pelo menos algumas
famílias também pressionaram por punição, o relatório não apenas silencia essas
demandas, mas também deixa implícito que, mesmo que tenham existido, elas não
são legítimas.
Isso não significa
dizer que o relatório ignora completamente a questão da impunidade. Ele
reconhece que a Anistia é polêmica, dá voz às críticas dos familiares sobre a
Lei dos Desaparecidos e conclui com o argumento de que um desaparecimento segue
ininterrupto e constitui um crime em continuidade até que um corpo seja
localizado. Ainda assim, as referências tendem a ser breves, superficiais e
relativamente brandas. As críticas mais severas aparecem em forma de citação,
pulverizadas ao longo do texto, assinadas por personalidades sem vínculo com o
Estado. Por exemplo, os autores do relatório observam que ″a sociedade aparenta
ter aceito o argumento de que a Anistia protegeria os torturadores [de
processos criminais]″, mas rapidamente apresentam uma refutação dessa tese por
parte do jurista Belisário dos Santos Jr., o qual afirma que o argumento ″é
incorreto do ponto de vista jurídico″. Não por acaso, o relatório esquece de
identificar Santos como um antigo membro da comissão, apresentando-o na verdade
como um cidadão qualquer cujas opiniões não representam as da comissão. Uma
crítica tímida sobre a interrupção prevalecente da Lei da Anistia é expressa, mas
apenas quando atribuída a vozes dissidentes ou minoritárias que não refletem a
versão oficial do Estado. O mesmo ocorre com a questão de ″crimes continuados″:
os próprios autores do relatório citam o ponto de vista abalizado por ″juristas
altamente respeitados″ de que a Lei da Anistia não pode abranger os
desaparecimentos forçados porque o processo desses crimes é contínuo até que os
corpos sejam localizados. Os autores do relatório, entretanto, se contêm nesse
ponto para não acabar evidenciando as conclusões desse raciocínio.
Apesar de o relatório
insinuar insatisfação por parte de certos grupos pró-memória, a orientação
geral é tornar as exigências de punição invisíveis. Em nenhum momento, isto é
tão nítido quanto nos últimos parágrafos do prefácio:
Nenhum
espírito de revanchismo ou nostalgia do passado será capaz de seduzir o
espírito nacional...
O
lançamento deste livro na data que marca 28 anos da publicação da Lei de
Anistia, em 1979, sinaliza a busca de concórdia, o sentimento de reconciliação
e os objetivos humanitários que moveram os 11 anos de trabalho da Comissão
Especial.
Ao
exaltar o ″desejo por unidade, o sentimento de reconciliação″, o relatório
adota a retórica da reconciliação pela memória. Apesar do uso acrítico do termo
revanchismo, o relatório reforça – e
implicitamente endossa – a convicção de parte dos militares e da sociedade
brasileira de que justiça se confunde com um tipo de vingança mesquinha quando
se trata de responsabilizar indivíduos criminalmente, o que seria de algum modo
antibrasileiro.
A
ideia de que essa noção de justiça (compreendida como vingança) é
antibrasileira deriva de discursos influentes que celebram a conciliação e a
cordialidade – a preferência por resoluções de conflitos de forma pacífica –
como uma característica definidora da identidade nacional. Sérgio Buarque de
Holanda dissertou sobre essa questão no capítulo ″O homem cordial″, do clássico
Raízes do Brasil. No entanto, talvez
nenhum pensador brasileiro encarne tão bem esse discurso quanto Gilberto
Freyre, cujos escritos exaltam as virtudes do país de lidar com os conflitos de
forma leve. Apesar de Holanda ter sido o primeiro a propor cordialidade como
característica nacional, foi Gilberto Freyre, em seu Sobrados e mucambos e outros trabalhos, que deu à expressão o seu
sentido popular. Por exemplo, em seu tratado Novo mundo nos trópicos, publicado em 1959, apenas cinco anos antes
do golpe militar (que se consumou sem derramamento de sangue), o sociólogo
louva as ″revoluções brancas, ou pacíficas″ que caracterizam a história
brasileira, listando a Independência em relação a Portugal, a passagem de
Império para República e a abolição da escravatura como exemplos. A tradução
para o português de Novo mundo nos
trópicos contém ainda uma frase (que não foi encontrada na versão original
em inglês) a qual compara favoravelmente os brasileiros com ″outros povos,
menos felizes na solução de seus desajustamentos sociais″.
No
contexto brasileiro de pós-ditadura, esse discurso é mantido pela elite política,
em particular por meio da celebração da Lei da Anistia como um triunfo da
reconciliação. Mesmo políticos de esquerda – Dilma Rousseff é o maior exemplo –
se apropriam dessa linguagem para desarmar críticas a suas iniciativas de
justiça de transição (ao apresentar tais iniciativas, há sempre a negação de
que a motivação para tanto não se trata de revanchismo) e de escapar de
discussões sobre seus próprios passados. Aqueles que se posicionam
politicamente à esquerda e que desafiam essa lógica são rotulados de
revanchistas e seus discursos são deslegitimados.
Direito à memória e à verdade garante,
do aspecto político, visibilidade aos desaparecimentos, no entanto, a questão
da responsabilidade criminal aos indivíduos envolvidos – a justiça, em si – ainda
permanece invisível. O relatório incorpora o discurso de reconciliação por meio
da memória, atribuindo essa abordagem culturalmente dominante à hegemonia
política passada. O principal autor de Direito
à memória e à verdade é Paulo Vannuchi, então Ministro dos Direitos
Humanos, um ator-chave na batalha para inserir a memória da ditadura na agenda
nacional. O conservadorismo do relatório reflete a posição de dificuldade do
ministro dos Direitos Humanos, que foi escolhido para falar em nome do governo
Lula, no poder na época, ainda que estivesse ciente da dissidência de outros
setores do governo, especialmente parte dos militares. O fato de que nenhum
relatório foi produzido durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que
pensou e implementou a Lei dos Desaparecidos, reflete essa dificuldade. De
fato, a proposta inicial de Vannuchi de uma comissão nacional da verdade,
apresentada ao presidente em 2010, acendeu uma crise política quando o Ministro
da Defesa Nelson Jobim e os chefes dos três ramos das forças armadas ameaçaram abandonar
o governo com uma demissão em massa, caso mudanças não fossem feitas.
Relatórios da verdade
são apenas um dos modos de Estados – ou, mais precisamente, governos ou
ministros que os compõem – articularem suas políticas e visões sobre o passado.
A realidade é muito mais complexa que as narrativas desenhadas para moldá-la ou
descrevê-la. Além disso, importantes progressos em relação à responsabilidade
criminal de torturadores da ditadura têm ocorrido desde a publicação de Direito à memória e à verdade, em 2007:
o Supremo Tribunal Federal reconsiderou a Lei da Anistia em 2010 (ainda que
tenham votado para mantê-la); a Corte Interamericana de Direitos Humanos
condenou o Brasil em 2010 pelos desaparecimentos ocorridos durante a ditadura e
a impunidade que se seguiu; e o Ministério Público começou a tentar acolher
queixas criminais contra acusados de violar os direitos humanos. Mesmo assim, Direito à memória e à verdade revela a
resiliência da abordagem de reconciliação pela memória e sua apropriação pelo
Estado brasileiro.
Este texto é parte do
livro Memory’s Turn: reckoning with
Dictatorship in Brazil (2014), de Rebecca Atencio.
Tradução do texto: Humberto
Torres.
O relatório Direito à memória e à verdade (2007)
pode ser encontrado na íntegra aqui.
Publicado
em 2007, Direito à memória e à verdade é o primeiro relatório produzido pelo
Estado brasileiro sobre a ditadura militar. Produzido pela Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República do governo Lula, este
relatório antecede em sete anos a publicação do relatório final da Comissão Nacional
da Verdade, instalada no governo Dilma Rousseff. No texto que segue, Rebecca Atencio se debruça sobre as 502 páginas de Direito
à memória e à verdade para refletir sobre como o Estado brasileiro, pela
primeira vez, se coloca de forma oficial frente às ideias de memória coletiva e
justiça de transição.
O
primeiro relatório da verdade do Brasil
Rebecca Atencio
O prefácio de Direito à memória e à verdade tem início
com uma apresentação introduzindo o relatório e também identificando seu
objetivo de fomentar o respeito aos direitos humanos no país e apoiando o
compromisso da nação de se tornar uma potência global, seguido de um resumo do
conteúdo do relatório que, em certo ponto, diz:
Uma
dupla face deste Brasil ... saltará à
vista dos leitores (destaque da autora) ...
Uma
face é a do país que vem fortalecendo suas instituições democráticas há mais de
20 anos. É a face boa, estimulante e promissora de uma nação que parece ter
optado definitivamente pela democracia, entendendo que ela representa um
poderoso escudo contra os impulsos do ódio e da guerra, que sempre se alimentam
da opressão.
A
leitura também mostrará uma outra face. É aquela percebida nos obstáculos que
foram encontrados por quem exige conhecer a verdade, com destaque para quem
reclama o direito milenar e sagrado de sepultar seus entes queridos.
Com essas palavras, os
autores enfatizam a ideia de que o relatório tornará visível o que não está facilmente
aparente, no que diz respeito não apenas às conquistas da transição democrática,
mas também à intransigência histórica do Estado em face das demandas por
memória e justiça.
Eu quero chamar a
atenção para essa ênfase em visibilidade/invisibilidade, pois, se aceitarmos a
definição proposta por Avery Gordon de visibilidade como um ″sistema complexo
de permissão e proibição, intercalado por aparições e cegueira histérica″, então
podemos presumir que a visibilidade defendida no relatório é parcial e problemática
e que o relatório em si é caracterizado por (com as palavras de Gordon) ″uma
constante negociação entre o que pode ser visto e o que permanece nas sombras″.
A retórica do prefácio apresenta o próprio relatório como uma forma de luz e
visibilidade em direção oposta à opacidade que o precedeu: o objetivo de Direito à memória e à verdade, está
dito, é ″jogar luzes sobre um período de escuridão″. Apesar de toda sua ênfase
em tornar visíveis certas realidades que historicamente não estavam à mostra
para o público (as duas faces), o relatório em si produz (ou reproduz) certas
invisibilidades, principalmente no que diz respeito à questão da responsabilidade
criminal de indivíduos. É importante observar criticamente a questão da
visibilidade porque esse relatório é uma narrativa de fundação da nova política
de memória do Estado brasileiro: marca a primeira vez que o Estado sistemática
e oficialmente apresentou sua visão do que significa justiça de transição no
contexto do país.
O próprio título do
relatório ilustra como a visibilidade proposta é parcial. Traz à luz os
direitos à memória e à verdade brasileiras, mas relega a justiça à escuridão.
Não há, no título, um correspondente ″direito à justiça″, nem em nenhuma outra
parte do documento. É de fato extraordinário que a palavra justiça apareça somente uma vez em todo o relatório, e, mesmo assim,
refere-se não à punição criminal, mas sim à memória: ″O trabalho da Comissão
Especial é a possibilidade, com a resposta do Estado, da restauração da justiça
e da paz, para que perseguições, mortes e desaparecimentos forçados nunca mais
voltem a acontecer neste país″. Os autores, portanto, não associam justiça à punição criminal (nem mesmo a
identificação dos criminosos). Além disso, eles redefinem justiça como sinônimo
de restauração de um passado penoso: ″Redemocratizado, o Estado brasileiro
cumpriu também um certo papel de juiz histórico ao fazer o resgate da memória e
da verdade″. Nesse contexto, as indenizações materiais se tornam, nas palavras
do relatório, a ″consequência natural e legal″ do reconhecimento do Estado de
sua responsabilidade sobre as mortes e os desaparecimentos. Uso do termo natural não é fortuito: serve para
naturalizar as indenizações e, por meio disso, desnaturalizar os processos
judiciais que dão conta das violações de direitos humanos, que, junto a
comissões da verdade, são consequências legais muito mais comuns nas transições
democráticas do que programas de reparação financeira.
Um apagamento similar
ocorre na narrativa apresentada no relatório a respeito da luta travada por
familiares dos desaparecidos ao longo dos últimos quarenta anos. Uma leitura
atenta revela que essa narrativa suprime em grande medida a existência de uma
demanda por punição. Por exemplo, ao apresentar o sofrimento dessas famílias no
final da década de 1970, o relatório menciona ″a legítima pressão (...) a favor
da Anistia e do direito à verdade″. Ao omitir o fato de que pelo menos algumas
famílias também pressionaram por punição, o relatório não apenas silencia essas
demandas, mas também deixa implícito que, mesmo que tenham existido, elas não
são legítimas.
Isso não significa
dizer que o relatório ignora completamente a questão da impunidade. Ele
reconhece que a Anistia é polêmica, dá voz às críticas dos familiares sobre a
Lei dos Desaparecidos e conclui com o argumento de que um desaparecimento segue
ininterrupto e constitui um crime em continuidade até que um corpo seja
localizado. Ainda assim, as referências tendem a ser breves, superficiais e
relativamente brandas. As críticas mais severas aparecem em forma de citação,
pulverizadas ao longo do texto, assinadas por personalidades sem vínculo com o
Estado. Por exemplo, os autores do relatório observam que ″a sociedade aparenta
ter aceito o argumento de que a Anistia protegeria os torturadores [de
processos criminais]″, mas rapidamente apresentam uma refutação dessa tese por
parte do jurista Belisário dos Santos Jr., o qual afirma que o argumento ″é
incorreto do ponto de vista jurídico″. Não por acaso, o relatório esquece de
identificar Santos como um antigo membro da comissão, apresentando-o na verdade
como um cidadão qualquer cujas opiniões não representam as da comissão. Uma
crítica tímida sobre a interrupção prevalecente da Lei da Anistia é expressa, mas
apenas quando atribuída a vozes dissidentes ou minoritárias que não refletem a
versão oficial do Estado. O mesmo ocorre com a questão de ″crimes continuados″:
os próprios autores do relatório citam o ponto de vista abalizado por ″juristas
altamente respeitados″ de que a Lei da Anistia não pode abranger os
desaparecimentos forçados porque o processo desses crimes é contínuo até que os
corpos sejam localizados. Os autores do relatório, entretanto, se contêm nesse
ponto para não acabar evidenciando as conclusões desse raciocínio.
Apesar de o relatório
insinuar insatisfação por parte de certos grupos pró-memória, a orientação
geral é tornar as exigências de punição invisíveis. Em nenhum momento, isto é
tão nítido quanto nos últimos parágrafos do prefácio:
Nenhum
espírito de revanchismo ou nostalgia do passado será capaz de seduzir o
espírito nacional...
O
lançamento deste livro na data que marca 28 anos da publicação da Lei de
Anistia, em 1979, sinaliza a busca de concórdia, o sentimento de reconciliação
e os objetivos humanitários que moveram os 11 anos de trabalho da Comissão
Especial.
Ao
exaltar o ″desejo por unidade, o sentimento de reconciliação″, o relatório
adota a retórica da reconciliação pela memória. Apesar do uso acrítico do termo
revanchismo, o relatório reforça – e
implicitamente endossa – a convicção de parte dos militares e da sociedade
brasileira de que justiça se confunde com um tipo de vingança mesquinha quando
se trata de responsabilizar indivíduos criminalmente, o que seria de algum modo
antibrasileiro.
A
ideia de que essa noção de justiça (compreendida como vingança) é
antibrasileira deriva de discursos influentes que celebram a conciliação e a
cordialidade – a preferência por resoluções de conflitos de forma pacífica –
como uma característica definidora da identidade nacional. Sérgio Buarque de
Holanda dissertou sobre essa questão no capítulo ″O homem cordial″, do clássico
Raízes do Brasil. No entanto, talvez
nenhum pensador brasileiro encarne tão bem esse discurso quanto Gilberto
Freyre, cujos escritos exaltam as virtudes do país de lidar com os conflitos de
forma leve. Apesar de Holanda ter sido o primeiro a propor cordialidade como
característica nacional, foi Gilberto Freyre, em seu Sobrados e mucambos e outros trabalhos, que deu à expressão o seu
sentido popular. Por exemplo, em seu tratado Novo mundo nos trópicos, publicado em 1959, apenas cinco anos antes
do golpe militar (que se consumou sem derramamento de sangue), o sociólogo
louva as ″revoluções brancas, ou pacíficas″ que caracterizam a história
brasileira, listando a Independência em relação a Portugal, a passagem de
Império para República e a abolição da escravatura como exemplos. A tradução
para o português de Novo mundo nos
trópicos contém ainda uma frase (que não foi encontrada na versão original
em inglês) a qual compara favoravelmente os brasileiros com ″outros povos,
menos felizes na solução de seus desajustamentos sociais″.
No
contexto brasileiro de pós-ditadura, esse discurso é mantido pela elite política,
em particular por meio da celebração da Lei da Anistia como um triunfo da
reconciliação. Mesmo políticos de esquerda – Dilma Rousseff é o maior exemplo –
se apropriam dessa linguagem para desarmar críticas a suas iniciativas de
justiça de transição (ao apresentar tais iniciativas, há sempre a negação de
que a motivação para tanto não se trata de revanchismo) e de escapar de
discussões sobre seus próprios passados. Aqueles que se posicionam
politicamente à esquerda e que desafiam essa lógica são rotulados de
revanchistas e seus discursos são deslegitimados.
Direito à memória e à verdade garante,
do aspecto político, visibilidade aos desaparecimentos, no entanto, a questão
da responsabilidade criminal aos indivíduos envolvidos – a justiça, em si – ainda
permanece invisível. O relatório incorpora o discurso de reconciliação por meio
da memória, atribuindo essa abordagem culturalmente dominante à hegemonia
política passada. O principal autor de Direito
à memória e à verdade é Paulo Vannuchi, então Ministro dos Direitos
Humanos, um ator-chave na batalha para inserir a memória da ditadura na agenda
nacional. O conservadorismo do relatório reflete a posição de dificuldade do
ministro dos Direitos Humanos, que foi escolhido para falar em nome do governo
Lula, no poder na época, ainda que estivesse ciente da dissidência de outros
setores do governo, especialmente parte dos militares. O fato de que nenhum
relatório foi produzido durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que
pensou e implementou a Lei dos Desaparecidos, reflete essa dificuldade. De
fato, a proposta inicial de Vannuchi de uma comissão nacional da verdade,
apresentada ao presidente em 2010, acendeu uma crise política quando o Ministro
da Defesa Nelson Jobim e os chefes dos três ramos das forças armadas ameaçaram abandonar
o governo com uma demissão em massa, caso mudanças não fossem feitas.
Relatórios da verdade
são apenas um dos modos de Estados – ou, mais precisamente, governos ou
ministros que os compõem – articularem suas políticas e visões sobre o passado.
A realidade é muito mais complexa que as narrativas desenhadas para moldá-la ou
descrevê-la. Além disso, importantes progressos em relação à responsabilidade
criminal de torturadores da ditadura têm ocorrido desde a publicação de Direito à memória e à verdade, em 2007:
o Supremo Tribunal Federal reconsiderou a Lei da Anistia em 2010 (ainda que
tenham votado para mantê-la); a Corte Interamericana de Direitos Humanos
condenou o Brasil em 2010 pelos desaparecimentos ocorridos durante a ditadura e
a impunidade que se seguiu; e o Ministério Público começou a tentar acolher
queixas criminais contra acusados de violar os direitos humanos. Mesmo assim, Direito à memória e à verdade revela a
resiliência da abordagem de reconciliação pela memória e sua apropriação pelo
Estado brasileiro.
Tradução do texto: Humberto Torres.
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