Pedro Ivo Rocha de Macedo
Imagem: Alec Monopoly |
O
Brasil não é um país de leitores, nem de consumidores de literatura. Por aqui, o livro ainda é um objeto associado
à alta cultura e a um saber erudito vedado a grande parte da população, pouco
letrada e com índices preocupantes de analfabetismo funcional. Entretanto, em
2015, nesse mesmo país de poucos leitores, meio milhão de volumes foram
comercializados do livro Morri para viver,
depoimento da ex-modelo Andressa Urach, cujo maior mérito até então tinha sido
o vice-campeonato do concurso Miss Bumbum.
O
caso do texto de Urach é excepcional pelo número de vendas, parcialmente
explicáveis pela grande difusão midiática por sérias complicações de saúde
decorrentes da aplicação de produtos cosméticos não autorizados para o
torneamento das pernas e pela posterior conversão religiosa e chancela da
Igreja Universal do Reino de Deus ao livro. Mas, ainda que compreensível, seu
êxito literário não é menos surpreendente. Sua história pessoal diverge do que
usualmente se associa àqueles cujos nomes se estampam nas capas dos volumes
visíveis pelas livrarias do país, mas que ainda assim garantiu a publicação de
seu livro por uma grande editora, e distribuição nacional. E ela não é a única.
Desde a publicação, em 1994, de Caminho
das borboletas, livro-depoimento de Adriane Galisteu, há uma presença
modesta, mas constante, de narrativas em que o autor/objeto é um indivíduo
dificilmente associável ao que é literário no nosso campo de ilustres. São
relatos que enfocam as chamadas subcelebridades, personalidades afeitas à mídia
de estrato popularesco, um conjunto de meios comunicacionais, seja
jornalísticos ou de entretenimento, caracterizados primariamente não pela
qualidade artística ou valor-notícia do que se veicula, mas pelo alcance que
este conteúdo conseguiria em audiência e/ou vendagens, podendo resultar em
produtos que exigem parca profundidade analítica.
Os
nomes em destaque nos livros são alheios ao discurso literário praticado no
campo. A celebridade é normalmente caracterizada como um indivíduo banal, grosseiro
e sem conteúdo, mais um produto em função do espetáculo, do que fruto de uma
comunicação comprometida com a informação, educação ou socialização. Mas estes
mesmos “produtos” são tema de enunciações frequentes no Brasil, num campo literário
em que é difícil ser publicado, distribuído e lido. Num país em que a
literatura é primazia de poucos, as subcelebridades encontram na narrativa
textual mais uma possibilidade de exposição, de se dar ao conhecimento de um
determinado público consumidor-leitor, sua audiência.
Como
se viabilizam essas narrativas que à primeira vista parecem tão fora de lugar?
Antes de mais nada, há dois sintomas de nossos tempos que elas refletem: o
fascínio social pela subjetividade e a coroação do “eu” no primeiro plano dos
discursos. O desencanto causado pela falência das grandes narrativas sociais e
utópicas do século XX trouxe a atenção para o êxito individual, a
experimentação dos prazeres e a percepção do sucesso pessoal, com a consolidação
de sua enunciação num democratismo plural de narrativas pessoais, com múltiplas
vozes, identidades, sujeitos e subjetividades. Nas prateleiras das livrarias, é
possível perceber a popularidade dos relatos de vida, seja em narrativas
identificadas como ficcionais, ou nos textos tratados como estritamente
verificáveis das biografias e autobiografias.
Esse
gênero se afirma na produção literária ao mesmo tempo em que os meios de comunicação
massificados reconfiguram a absorção cultural. O mundo foi tomado por novas
possibilidades de produção, apresentação e consumo de conteúdo, com aumento
inaudito da oferta de informação. O pacto autobiográfico (em que o autor e
leitor aceitam que o narrador conta uma história verdadeira sobre si) tem de
assumir, portanto, fronteiras mais fluidas para abarcar as narrativas
contemporâneas, seja para incluir as profusas narrativas romanescas de
autoficção, seja para incluir os textos autobiográficos escritos por ghostwriters ou compostos em
colaboração, nos quais o efetivo redator do texto não é a primeira pessoa do
discurso.
No mesmo ambiente, a cultura
de massa propicia a criação de novos ídolos e heróis. Com a repercussão massiva
nos meios comunicacionais a partir do século XX, determinados indivíduos
alcançam um status diferenciado de estrelas por seus méritos artísticos ou
esportivos, em cujas vidas privadas os meios de
comunicação mergulharam para extrair uma substância humana que permitiria a
identificação. Na virada do milênio, entretanto, a fama passa a se tornar algo
valoroso por si só, prescindindo dos talentos que justificassem a admiração por
ela suscitada. Com o advento de novas modalidades comunicacionais, primeiro a
televisão e posteriormente a internet, surge, assim, uma nova categoria para o
culto do indivíduo que não estava baseada nas habilidades excepcionais dos
indivíduos adorados: a celebridade.
A
profissão para a celebridade não é sempre muito clara, surge uma categoria de “atriz-cantora-modelo-apresentadora-dançarina”
em que nenhuma das atividades é necessariamente exercida – ser famoso é a
atividade exercida. Numa era em que a
distância entre as esferas íntima/privada e pública se esgarça, as novas
estrelas são fruto de uma celebração de seu midiatismo instantâneo, possuindo
aquilo que se define como bios midiático,
para quem a representação nos meios de difusão de conteúdo se confunde com a
sua própria existência. Os indivíduos servem a um mercado que os consome,
seja na venda de revistas, na audiência de programas de TV dedicados ao gênero,
filmes encetados a toque de caixa.
A
subcelebridade seria uma personalidade midiática de alcance inferior, seja por
menor acesso aos meios, seja pelo reconhecimento da “seriedade” do seu
trabalho. Ele ou ela estaria disposto a quase tudo para cavar uma nota num
programa vespertino de fofocas ou uma entrada num blog ou site de internet
dedicado aos famosos. É uma categoria
plural e efêmera em que pessoas majoritariamente
egressas das camadas mais pobres e desfavorecidas da população revelam bastante
sobre a cultura de exaltação do sujeito comum, num universo em que a busca pelo
êxito parece fazer sentido por si só.
Para
as celebridades, a literatura aparece, então, como mais um veículo de produção
de uma identidade narrativa dos sujeitos públicos. A adesão dos
leitores/consumidores permite que a exposição da própria celebrização se
propague. A proliferação dos títulos biográficos e autobiográficos de
personalidades públicas de todas as esferas atesta esse interesse e associação
por parte do público leitor, ainda que as
narrativas desse conjunto passem ao largo do “bom gosto” literário, das
premiações e do reconhecimento dos seus autores, seja pelas qualidades
técnicas-estruturais do texto ou por seu apuro estilístico. São narrativas das
quais pouco ou nada se ocupam os estudos literários empreendidos no âmbito da
academia brasileira, uma vez que fogem ao entendimento dominante da crítica
sobre o que merece ser estudado. Entretanto, estudá-los está longe de uma
invectiva afrontosa ou subversiva. Trata-se de narrativas que aparecem
reiteradamente como produtos viáveis em nosso sistema literário. O estudo
dessas obras no jogo de negociações do campo brasileiro envolve não apenas
percebê-las pelo discurso e seus autores, mas também considerar o papel
de leitores, editores, livreiros, críticos e
demais agentes intervenientes na construção de uma obra literária. Esta
investigação possibilita um olhar, por meio de nichos de produção, distribuição
e recepção que são tradicionalmente ignorados pela academia para o panorama da
literatura nacional numa época em que o próprio conceito de literatura é
desafiado e suas fronteiras são redefinidas.
São narrativas contemporâneas
apartadas do horizonte de expectativas do leitor erudito brasileiro, acostumado
à tradição de uma literatura que reproduz continuamente os mesmos sujeitos da
concepção elitizada dos autores em atividade no campo – um
modelo de produção do cânone literário-social.
De
fato, a representação do narrador nesses textos seria uma festa de
pluralidade para o leitor no Brasil, exposto habitualmente a narrativas produzidas e
protagonizadas por intelectualizados homens brancos, de classe média e heterossexuais.
O conjunto de protagonistas das narrativas de maior visibilidade num
levantamento inicial dessa modalidade faz antever inflexões tanto sociais como
de gênero. Nos dezesseis textos identificados, encontramos doze mulheres e quatro
homens. Todos os personagens nestes relatos fogem ao padrão consagrado como
objeto da literatura brasileira contemporânea. Há entre eles a dançarina
calipígia (Gretchen, em Uma biografia
quase não autorizada; Valesca Popozuda em Sou dessas: pronta pro combate), a
estudante expulsa após usar um vestido curto (Geisy Arruda, Vestida para Causar), uma ex-prostituta
declarada (Andressa Urach, em Morri para
viver), “viúvas” de famosos mortos em tragédias de grande comoção (Adriane
Galisteu, em Caminho das borboletas: meus
405 dias ao lado de Ayrton Senna; Mirella Zacanini, em Pitchulinha, minha vida com Dinho até que os Mamonas nos separem);
artistas transexuais (Roberta Close, em Muito
prazer; Nany People, em Ser mulher
não é para qualquer um e Thammy Miranda em Nadando contra a corrente); uma ajudante de palco (Na banheira com Luiza Ambiel); ex-participantes
de reality shows (Marcelo Arantes, A antietiqueta dos novos famosos; Fani
Pacheco, Diário secreto de uma ex-BBB,
Val Marchiori, O livro de ouro da Val),
a socialite empobrecida (Narcisa Tamborindeguy, em Ai, que loucura!), o ator pornô que se torna pastor (Giuliano
Ferreira; Luz, câmera, ação e
transformação) e o antigo ídolo adolescente que se perde no mundo das
drogas (Rafael Ilha, em As pedras do meu
caminho), com algumas dessas categorias se sobrepondo.
O próprio conceito de autoria é colocado em xeque ao contemplar os
textos, pois neles, a primeira pessoa do discurso nem
sempre coincide com o redator efetivo da narrativa, muitas vezes colhidas por
depoimentos não verificáveis concedidos a jornalistas e escritores
profissionais. Mas não se trata de simples
caricatura, as narrativas são representações discursivas de relatos e
experiências que servem à compreensão da identidade narrativa de indivíduos que
merecem ser contemplados como tais, a despeito de sua apropriação comercial e
midiática e dos preconceitos eruditos de quem deles se aproxima (e destes não
me excluo). É preciso ter em conta que a literatura ajuda a construir
representações que extrapolam tanto o texto quanto o próprio campo literário em
que foi produzida. Existe nas narrativas aqui em tela uma efetiva representação
de discursos alheios ao que
pratica a “boa” literatura eleita pelos árbitros da elegância estilística no campo. Contudo, são relatos que
demarcam um novo posicionamento temático e social, trazendo novas vozes e novos
lugares de fala para a reflexão do que se faz literário nas narrativas
praticadas no Brasil.
Se o inventário dos narradores contemporâneos na
literatura nacional aponta que o leitor brasileiro dificilmente é apresentado
às experiências de indivíduos excluídos do espaço elitizado, as narrativas
biográficas das subcelebridades oferecem o relato de um grupo de sujeitos
marginais na sua própria voz (ou na voz daqueles que foram outorgados a falar
por elas) numa investida biográfica de apelo popular. Essas narrativas na
interseção entre as formas canonizadas e os produtos estereotípicos da cultura
de massas, transcendendo ao “gosto” definido por parâmetros sociológicos ou
estéticos e produzindo uma resposta compartilhada neste cruzamento. Haveria
diálogo possível entre esses textos fronteiriços e os romances brasileiros
contemporâneos de prestígio, especialmente os de autoficção?
Ainda, o indivíduo que narra ou é narrado num
texto biográfico produz, mesmo que involuntariamente, uma crônica de seu tempo
e de sua realidade social, pois o “eu”, quando expresso, não pode se separar
completamente das condições sociais em que surgiu. O texto biográfico, ainda que seja
o relato de um único sujeito, é, também, reflexo da expressão de uma época, de
uma geração, de uma classe, de uma narrativa comum de identidade. Essa
qualidade coletiva é que torna essas histórias pessoais relevantes, venham elas
nas formas literárias tradicionais, ou nas modalidades midiatizadas. A extensa
exposição midiática a que se submetem os indivíduos narrados por esses textos
selecionados nesse projeto, e da qual a literatura surge como mais um modo de
divulgação, nos reflete a todos, em maior ou menor grau sujeitos à devassa da
intimidade.
É preciso ter em mente que o intenso interesse popular pela “vida real” destes
indivíduos se localiza no espaço em que imaginário e real se confundem e se
alimentam um do outro. Os textos ajudam a compor a identidade das celebridades
como personagens públicos, e esta identidade representada se confunde com os
próprios sujeitos reais, que dela se retroalimentam, tornando-se parte de quem
são, ou ao menos, de como continuarão a se mostrar. A identificação do público,
da qual a representação engendrada também pelo leitor-receptor dessas
narrativas é uma modalidade, se insere num grande esquema social de trocas
simbólicas que não podem ser reduzidas apenas à parvoíce dos fãs e aos acordos
comerciais transacionados.
Outro dia, quando comecei a me debruçar sobre o tema, eu me peguei
profundamente comovido com trecho de um desses livros. Fiquei quase surpreso,
afinal era a biografia de um indivíduo que, para ser consumido, se planificara,
como assim lá estava eu chorando no primeiro capítulo? Mas a surpresa não durou
muito, pois todos os leitores intuem o poder que tem a literatura. A representação
empreendida pelo leitor, seja ele leigo ou pesquisador, não se dá de forma apenas
interpretativa. A leitura de um texto fornece um espaço privilegiado em que o
discurso é perpassado pelos sentidos e imaginação daquele que se aproxima dele nesse
último estágio, permitindo que a reconstrução de uma imagem, uma história de
vida, seja entremeada de seus afetos. Afetos que, suponho, são cruciais para a
refiguração de qualquer indivíduo, ainda mais para os que se apresentam quase
desumanizados no complicado sistema da cultura de massas. A minha experiência,
de início quase jocosa, com os sujeitos percebidos como subcelebridades me
levou a perceber que pessoas apresentadas voluntariamente como produtos de
consumo midiático, podem reassumir certa dimensão humana na enunciação
literária de suas identidades narrativas, mesmo que inadvertidamente. E isso
talvez possa fazer pensar sobre os limites e capacidades da representação por
meio da literatura e das trocas que ela propicia, às vezes quase sem querer.
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