25 de março de 2017

Literatura como exposição?

Pedro Ivo Rocha de Macedo


Imagem: Alec Monopoly

O Brasil não é um país de leitores, nem de consumidores de literatura.  Por aqui, o livro ainda é um objeto associado à alta cultura e a um saber erudito vedado a grande parte da população, pouco letrada e com índices preocupantes de analfabetismo funcional. Entretanto, em 2015, nesse mesmo país de poucos leitores, meio milhão de volumes foram comercializados do livro Morri para viver, depoimento da ex-modelo Andressa Urach, cujo maior mérito até então tinha sido o vice-campeonato do concurso Miss Bumbum.
O caso do texto de Urach é excepcional pelo número de vendas, parcialmente explicáveis pela grande difusão midiática por sérias complicações de saúde decorrentes da aplicação de produtos cosméticos não autorizados para o torneamento das pernas e pela posterior conversão religiosa e chancela da Igreja Universal do Reino de Deus ao livro. Mas, ainda que compreensível, seu êxito literário não é menos surpreendente. Sua história pessoal diverge do que usualmente se associa àqueles cujos nomes se estampam nas capas dos volumes visíveis pelas livrarias do país, mas que ainda assim garantiu a publicação de seu livro por uma grande editora, e distribuição nacional. E ela não é a única. Desde a publicação, em 1994, de Caminho das borboletas, livro-depoimento de Adriane Galisteu, há uma presença modesta, mas constante, de narrativas em que o autor/objeto é um indivíduo dificilmente associável ao que é literário no nosso campo de ilustres. São relatos que enfocam as chamadas subcelebridades, personalidades afeitas à mídia de estrato popularesco, um conjunto de meios comunicacionais, seja jornalísticos ou de entretenimento, caracterizados primariamente não pela qualidade artística ou valor-notícia do que se veicula, mas pelo alcance que este conteúdo conseguiria em audiência e/ou vendagens, podendo resultar em produtos que exigem parca profundidade analítica. 
Os nomes em destaque nos livros são alheios ao discurso literário praticado no campo. A celebridade é normalmente caracterizada como um indivíduo banal, grosseiro e sem conteúdo, mais um produto em função do espetáculo, do que fruto de uma comunicação comprometida com a informação, educação ou socialização. Mas estes mesmos “produtos” são tema de enunciações frequentes no Brasil, num campo literário em que é difícil ser publicado, distribuído e lido. Num país em que a literatura é primazia de poucos, as subcelebridades encontram na narrativa textual mais uma possibilidade de exposição, de se dar ao conhecimento de um determinado público consumidor-leitor, sua audiência.
Como se viabilizam essas narrativas que à primeira vista parecem tão fora de lugar? Antes de mais nada, há dois sintomas de nossos tempos que elas refletem: o fascínio social pela subjetividade e a coroação do “eu” no primeiro plano dos discursos. O desencanto causado pela falência das grandes narrativas sociais e utópicas do século XX trouxe a atenção para o êxito individual, a experimentação dos prazeres e a percepção do sucesso pessoal, com a consolidação de sua enunciação num democratismo plural de narrativas pessoais, com múltiplas vozes, identidades, sujeitos e subjetividades. Nas prateleiras das livrarias, é possível perceber a popularidade dos relatos de vida, seja em narrativas identificadas como ficcionais, ou nos textos tratados como estritamente verificáveis das biografias e autobiografias.  
Esse gênero se afirma na produção literária ao mesmo tempo em que os meios de comunicação massificados reconfiguram a absorção cultural. O mundo foi tomado por novas possibilidades de produção, apresentação e consumo de conteúdo, com aumento inaudito da oferta de informação. O pacto autobiográfico (em que o autor e leitor aceitam que o narrador conta uma história verdadeira sobre si) tem de assumir, portanto, fronteiras mais fluidas para abarcar as narrativas contemporâneas, seja para incluir as profusas narrativas romanescas de autoficção, seja para incluir os textos autobiográficos escritos por ghostwriters ou compostos em colaboração, nos quais o efetivo redator do texto não é a primeira pessoa do discurso.
No mesmo ambiente, a cultura de massa propicia a criação de novos ídolos e heróis. Com a repercussão massiva nos meios comunicacionais a partir do século XX, determinados indivíduos alcançam um status diferenciado de estrelas por seus méritos artísticos ou esportivos, em cujas vidas privadas os meios de comunicação mergulharam para extrair uma substância humana que permitiria a identificação. Na virada do milênio, entretanto, a fama passa a se tornar algo valoroso por si só, prescindindo dos talentos que justificassem a admiração por ela suscitada. Com o advento de novas modalidades comunicacionais, primeiro a televisão e posteriormente a internet, surge, assim, uma nova categoria para o culto do indivíduo que não estava baseada nas habilidades excepcionais dos indivíduos adorados: a celebridade.
A profissão para a celebridade não é sempre muito clara, surge uma categoria de “atriz-cantora-modelo-apresentadora-dançarina” em que nenhuma das atividades é necessariamente exercida – ser famoso é a atividade exercida. Numa era em que a distância entre as esferas íntima/privada e pública se esgarça, as novas estrelas são fruto de uma celebração de seu midiatismo instantâneo, possuindo aquilo que se define como bios midiático, para quem a representação nos meios de difusão de conteúdo se confunde com a sua própria existência. Os indivíduos servem a um mercado que os consome, seja na venda de revistas, na audiência de programas de TV dedicados ao gênero, filmes encetados a toque de caixa.
A subcelebridade seria uma personalidade midiática de alcance inferior, seja por menor acesso aos meios, seja pelo reconhecimento da “seriedade” do seu trabalho. Ele ou ela estaria disposto a quase tudo para cavar uma nota num programa vespertino de fofocas ou uma entrada num blog ou site de internet dedicado aos famosos.  É uma categoria plural e efêmera em que pessoas majoritariamente egressas das camadas mais pobres e desfavorecidas da população revelam bastante sobre a cultura de exaltação do sujeito comum, num universo em que a busca pelo êxito parece fazer sentido por si só.
Para as celebridades, a literatura aparece, então, como mais um veículo de produção de uma identidade narrativa dos sujeitos públicos. A adesão dos leitores/consumidores permite que a exposição da própria celebrização se propague. A proliferação dos títulos biográficos e autobiográficos de personalidades públicas de todas as esferas atesta esse interesse e associação por parte do público leitor, ainda que as narrativas desse conjunto passem ao largo do “bom gosto” literário, das premiações e do reconhecimento dos seus autores, seja pelas qualidades técnicas-estruturais do texto ou por seu apuro estilístico. São narrativas das quais pouco ou nada se ocupam os estudos literários empreendidos no âmbito da academia brasileira, uma vez que fogem ao entendimento dominante da crítica sobre o que merece ser estudado. Entretanto, estudá-los está longe de uma invectiva afrontosa ou subversiva. Trata-se de narrativas que aparecem reiteradamente como produtos viáveis em nosso sistema literário. O estudo dessas obras no jogo de negociações do campo brasileiro envolve não apenas percebê-las pelo discurso e seus autores, mas também considerar o papel de leitores, editores, livreiros, críticos e demais agentes intervenientes na construção de uma obra literária. Esta investigação possibilita um olhar, por meio de nichos de produção, distribuição e recepção que são tradicionalmente ignorados pela academia para o panorama da literatura nacional numa época em que o próprio conceito de literatura é desafiado e suas fronteiras são redefinidas.
São narrativas contemporâneas apartadas do horizonte de expectativas do leitor erudito brasileiro, acostumado à tradição de uma literatura que reproduz continuamente os mesmos sujeitos da concepção elitizada dos autores em atividade no campo um modelo de produção do none literário-social.  De fato, a representação do narrador nesses textos seria uma festa de pluralidade para o leitor no Brasil, exposto habitualmente a narrativas produzidas e protagonizadas por intelectualizados homens brancos, de classe média e heterossexuais. O conjunto de protagonistas das narrativas de maior visibilidade num levantamento inicial dessa modalidade faz antever inflexões tanto sociais como de gênero. Nos dezesseis textos identificados, encontramos doze mulheres e quatro homens. Todos os personagens nestes relatos fogem ao padrão consagrado como objeto da literatura brasileira contemporânea. Há entre eles a dançarina calipígia (Gretchen, em Uma biografia quase não autorizada; Valesca Popozuda em Sou dessas: pronta pro combate), a estudante expulsa após usar um vestido curto (Geisy Arruda, Vestida para Causar), uma ex-prostituta declarada (Andressa Urach, em Morri para viver), “viúvas” de famosos mortos em tragédias de grande comoção (Adriane Galisteu, em Caminho das borboletas: meus 405 dias ao lado de Ayrton Senna; Mirella Zacanini, em Pitchulinha, minha vida com Dinho até que os Mamonas nos separem); artistas transexuais (Roberta Close, em Muito prazer; Nany People, em Ser mulher não é para qualquer um e Thammy Miranda em Nadando contra a corrente); uma ajudante de palco (Na banheira com Luiza Ambiel); ex-participantes de reality shows (Marcelo Arantes, A antietiqueta dos novos famosos; Fani Pacheco, Diário secreto de uma ex-BBB, Val Marchiori, O livro de ouro da Val), a socialite empobrecida (Narcisa Tamborindeguy, em Ai, que loucura!), o ator pornô que se torna pastor (Giuliano Ferreira; Luz, câmera, ação e transformação) e o antigo ídolo adolescente que se perde no mundo das drogas (Rafael Ilha, em As pedras do meu caminho), com algumas dessas categorias se sobrepondo.
O próprio conceito de autoria é colocado em xeque ao contemplar os textos, pois neles, a primeira pessoa do discurso nem sempre coincide com o redator efetivo da narrativa, muitas vezes colhidas por depoimentos não verificáveis concedidos a jornalistas e escritores profissionais. Mas não se trata de simples caricatura, as narrativas são representações discursivas de relatos e experiências que servem à compreensão da identidade narrativa de indivíduos que merecem ser contemplados como tais, a despeito de sua apropriação comercial e midiática e dos preconceitos eruditos de quem deles se aproxima (e destes não me excluo). É preciso ter em conta que a literatura ajuda a construir representações que extrapolam tanto o texto quanto o próprio campo literário em que foi produzida. Existe nas narrativas aqui em tela uma efetiva representação de discursos alheios ao que pratica a “boa” literatura eleita pelos árbitros da elegância estilística no campo. Contudo, são relatos que demarcam um novo posicionamento temático e social, trazendo novas vozes e novos lugares de fala para a reflexão do que se faz literário nas narrativas praticadas no Brasil.
Se o inventário dos narradores contemporâneos na literatura nacional aponta que o leitor brasileiro dificilmente é apresentado às experiências de indivíduos excluídos do espaço elitizado, as narrativas biográficas das subcelebridades oferecem o relato de um grupo de sujeitos marginais na sua própria voz (ou na voz daqueles que foram outorgados a falar por elas) numa investida biográfica de apelo popular. Essas narrativas na interseção entre as formas canonizadas e os produtos estereotípicos da cultura de massas, transcendendo ao “gosto” definido por parâmetros sociológicos ou estéticos e produzindo uma resposta compartilhada neste cruzamento. Haveria diálogo possível entre esses textos fronteiriços e os romances brasileiros contemporâneos de prestígio, especialmente os de autoficção?
Ainda, o indivíduo que narra ou é narrado num texto biográfico produz, mesmo que involuntariamente, uma crônica de seu tempo e de sua realidade social, pois o “eu”, quando expresso, não pode se separar completamente das condições sociais em que surgiu. O texto biográfico, ainda que seja o relato de um único sujeito, é, também, reflexo da expressão de uma época, de uma geração, de uma classe, de uma narrativa comum de identidade. Essa qualidade coletiva é que torna essas histórias pessoais relevantes, venham elas nas formas literárias tradicionais, ou nas modalidades midiatizadas. A extensa exposição midiática a que se submetem os indivíduos narrados por esses textos selecionados nesse projeto, e da qual a literatura surge como mais um modo de divulgação, nos reflete a todos, em maior ou menor grau sujeitos à devassa da intimidade. 
É preciso ter em mente que o intenso interesse popular pela “vida real” destes indivíduos se localiza no espaço em que imaginário e real se confundem e se alimentam um do outro. Os textos ajudam a compor a identidade das celebridades como personagens públicos, e esta identidade representada se confunde com os próprios sujeitos reais, que dela se retroalimentam, tornando-se parte de quem são, ou ao menos, de como continuarão a se mostrar. A identificação do público, da qual a representação engendrada também pelo leitor-receptor dessas narrativas é uma modalidade, se insere num grande esquema social de trocas simbólicas que não podem ser reduzidas apenas à parvoíce dos fãs e aos acordos comerciais transacionados.
Outro dia, quando comecei a me debruçar sobre o tema, eu me peguei profundamente comovido com trecho de um desses livros. Fiquei quase surpreso, afinal era a biografia de um indivíduo que, para ser consumido, se planificara, como assim lá estava eu chorando no primeiro capítulo? Mas a surpresa não durou muito, pois todos os leitores intuem o poder que tem a literatura. A representação empreendida pelo leitor, seja ele leigo ou pesquisador, não se dá de forma apenas interpretativa. A leitura de um texto fornece um espaço privilegiado em que o discurso é perpassado pelos sentidos e imaginação daquele que se aproxima dele nesse último estágio, permitindo que a reconstrução de uma imagem, uma história de vida, seja entremeada de seus afetos. Afetos que, suponho, são cruciais para a refiguração de qualquer indivíduo, ainda mais para os que se apresentam quase desumanizados no complicado sistema da cultura de massas. A minha experiência, de início quase jocosa, com os sujeitos percebidos como subcelebridades me levou a perceber que pessoas apresentadas voluntariamente como produtos de consumo midiático, podem reassumir certa dimensão humana na enunciação literária de suas identidades narrativas, mesmo que inadvertidamente. E isso talvez possa fazer pensar sobre os limites e capacidades da representação por meio da literatura e das trocas que ela propicia, às vezes quase sem querer.

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