Bruna Paiva de Lucena
Tia
Lene,
de Guilherme Memi (2016)
|
Um dos enormes problemas
sociais do Brasil é o analfabetismo. Estima-se que 27% de nossa população seja
analfabeta, ou seja, por volta de 13 milhões de pessoas em nosso país não
escrevem o próprio nome ou leem a identificação das ruas que ora e vez pisam.
Em suas vidas, as palavras escritas são o desconhecido, o inatingível, sendo,
em diversos contextos, o que os oprime.
Para nós que vivemos
envoltos em palavras escritas, em um mundo polifônico de textos em papel e
telas, o domínio da leitura e da escrita muitas vezes não perpassa nossos
questionamentos, já que o escrito é a substância sobre a qual corriqueiramente
nos debruçamos. A prerrogativa do escrito e o imperativo do escriptocêntrico no
que se entende por literatura não deixam também de denunciar nossa indiferença
para o problema e o seu não enfrentamento. As seguintes indagações podem ser
postas nesse sentido: Mas não estamos tratando da literatura? A literatura não
pressupõe o escrito, a leitura e a escrita? A constituição da literatura já não
implica a exclusão do que não se pode escrever e ler?
A resposta imediata a essas indagações
é SIM. No universo acadêmico de preocupações, o não domínio da letra é
entendido como algo a ser combatido exclusivamente no âmbito das políticas
públicas da educação e cultura, pressupondo o estudo acadêmico da escrita e
leitura de seus agentes e consumidores. Conforme comprova ampla pesquisa
acadêmica realizada no âmbito da poética das vozes, o entendido como literário é
o que se assenta unicamente em bases escriptocêntricas. Os estudos literários
conformam-se, de modo geral, no que Antonio Candido designa de direito à literatura, e sua
reivindicação é a da aquisição da alfabetização para a democratização do acesso
ao texto.
Saber ler e escrever é,
inegavelmente, um bem simbólico, um capital cultural que possibilita o acesso a
um mundo. O domínio da cultura escrita é um índice de distinção social. Em um
país com a imensa desigualdade econômica e social como o nosso, o direito a
esse mundo é muitas vezes usurpado. Contudo, seria possível pensar, em um
exercício de radicalidade discursiva, mas também existencial, na recusa
objetiva a esse bem? Em uma negação à entrada no universo da escrita e no que
ele representa? Em um exercício de questionar o a priori inquestionável?
Esse exercício é feito pelo
escritor pernambucano Marcelino Freire em seu conto “Totonha”, publicado em
2005, no livro Contos Negreiros,
ganhador do prêmio Jabuti de 2006. Este conto é narrado em primeira pessoa pela
personagem que dá nome ao texto, Totonha, que, como em um palco, questiona o
valor em sua vida do escrever e do ler, além de tratar essas ações como sinônimas
de cooptação a um sistema de valores, de modo que se manter alheia a eles é
significado como um ato de resistência. Ao final do conto, Totonha diz: “Não
preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa
saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever”.
O tom do conto é o de
resposta à afirmação-indagação: você não saber ler, você não sabe escrever; por
que não aprende? A personagem está claramente rebatendo a isso: “Capim sabe
ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em
quê? Não quero aprender, dispenso”. É claro o tom de desdém desaforado adotado
pela personagem. O conto consiste justamente nesse espaço de resposta
performática, em que a página funciona como palco para a encenação de uma
possibilidade e não de uma única verdade, já que se suspende a ideia de
totalidade ao se escancarar teatralmente os limites dos significados presentes
na realidade.
Trata-se de um exercício
retórico e teatral que, apesar de sua parcialidade, tem um importante caráter
problematizador da segregação gerada pela diferença cultural – os que leem e
escrevem e os que não. Não se trata da possibilidade de escolha entre desfrutar
ou não do mundo das palavras, mas na defesa do valor de quem não lê, até mesmo
da defesa ressentida da sua existência. Essa poética anuncia performaticamente
uma ambivalência de valores, já que para Totonha aceitar a cultura escrita
parece ser aceitar uma unissonância cultural e existencial, baixar a cabeça a
uma imposta cultura de elite. Ler e escrever servem para quê? Essa personagem
recusa a experiência do aprendizado da língua, da escrita, da literatura,
renuncia as funções da escrita e da leitura.
Assim, instauram-se gestos
de negação ao planejado, ao discurso previsível. Totonha vira a mesa com um
revide performático, como uma recusa perante o mundo da escrita. A incômoda
alternativa escolhida pela personagem ganha corpo no texto, a despeito de na
realidade seu discurso ser amplamente refutável. Daí se percebe o poder que a
performatividade agrega a esse texto, criando-se na articulação da personagem
uma posição de resistência.
A performance é a estética adotada para a ressignificação de uma
ausência, positivada pela personagem como uma outra forma de se viver, como uma
falta para os outros, mas que para ela não existe, como “a geografia do rio
seco”e “o risco da poeira”. Ela negligencia as implicações de não se saber ler
e escrever no mundo prático, desfazendo-se dessa negatividade, e dá a ver a
dispensabilidade das letras em sua vida: “Morrer, já sei. Comer, também. E vez
em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a
coceira é só uma coceira, não é uma doença. Tenha santa paciência!”, diz
Totonha. A narrativa questiona o pressuposto da falta de quem não sabe ler e
escrever e mesmo articula um gesto de extremo desprezo a quem duvida da autossuficiência
e totalidade de quem não domina as letras, ao mesmo tempo em que afirma a
possibilidade de se viver sem sentir-se diminuída pelo não acesso ao universo
da escrita.
A voz de Totonha nos impele
a realizar o movimento que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro denomina de
dupla implicação, uma vez que o posicionamento da personagem carrega a potência
de alterar o discurso de verdade segundo o qual ler e escrever são bens que
todos desejam, havendo a comum alteração dos discursos em jogo. Uma leitura que
não compreenda o discurso de Totonha como uma alteridade possível, vivível e
verossímil desumaniza e mesmo destitui de valor um mundo oral, não escriptocêntrico.
Fazendo também um movimento
de negação combativa – que consiste em uma forma de superar a mera negação constitutiva e colocar-se em
posição de combate, invertendo a ordem de valores estabelecidos historicamente,
ameaçando e desestabilizando – a slammer
brasiliense Meimei Bastos diz em poema publicado em 30 de março de 2016 em uma
rede social:
Eu
num li Beauvoir,
fiz foi presenciar a covarde
“superioridade” masculina
nos roxos de minha mãe.
fiz foi presenciar a covarde
“superioridade” masculina
nos roxos de minha mãe.
Foi
daí que eu me inventei feminista,
sem nem saber,
que toda vez que me punha na frente
pra ele num bater
pra defender
com pouco mais de quatro anos
eu já lutava
contra o que tempos depois
iria conhecer pelo nome machismo.
sem nem saber,
que toda vez que me punha na frente
pra ele num bater
pra defender
com pouco mais de quatro anos
eu já lutava
contra o que tempos depois
iria conhecer pelo nome machismo.
Eu
num li foi nada!
fiz foi viver!
ver,
vejo!
fiz foi viver!
ver,
vejo!
Aqui, reivindica-se a
aprendizagem pela experiência na carne e não mediada por livros. Contrapõem-se
ler a viver, traçando-se uma dicotomia entre essas ações no que se refere às
formas de se acessar ao mundo. As marcas da violência de gênero são apontadas
como a base para a formulação de uma consciência feminista, marcada
essencialmente por determinado espaço de classe, de gênero e de raça. O
feminismo construído sem suas teorias, que são anteriores a sua prática, é
tomado nesse poema como arma que se constitui a partir de uma experiência de
vida, sendo a leitura apontada apenas como outra forma de conhecimento. Aqui a
vivência é a partida para o pensamento.
Contrariamente à atitude de
Totonha, e também à encenada pela narradora do poema de Meimei Bastos, em que
ambas as vozes poéticas se recusam a abaixar a cabeça para ler, no poema “Não
vou mais lavar os pratos”, publicado na obra homônima de 2010 de Cristiane
Sobral, escritora carioca radicada em Brasília, abaixar a cabeça para ler, no
sentido de adentrar e dominar o escrito, é um exercício de libertação, redenção
de um espaço de servidão, e uma forma de acesso a um mundo feito para poucos,
de liberdade e cuidado consigo. Transcrevo um trecho:
Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos
pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Nesse poema, a relação entre
empoderamento e acesso ao mundo escriptocêntrico é clara. A distinção entre
trabalho braçal e intelectual é posta e mesmo exagerada em uma performance do eu-lírico, na tentativa
de ressaltar a tomada deliberada de determinado pensamento perante a vida.
Em contraposição à
personagem Totonha e ao eu-lírico de Meimei Bastos, esse poema festeja a
libertação da vida doméstica, que no poema é destituída de significância, e a
apropriação do bem simbólico que é a leitura significativa. A experiência na vida
doméstica entendida nos outros poemas como fonte de conhecimento sobre a vida
como um todo é rejeitada performaticamente em “Não vou mais lavar os pratos”,
em que o eu lírico faz uma elegia ao mundo escriptocêntrico no qual acaba de
entrar. A divisão entre trabalho prático e intelectual é expressa entre as
ações de lavar os patos – metáfora de servidão e submissão – e de ler –
formulada como uma ação capaz de libertar, comparada ao final do poema com a
abolição da escravidão. Aqui o contato e a apropriação da cultura escrita têm o
poder de livrar a personagem do mundo ordinário e do trabalho não intelectual.
O conjunto de textos
apresentados aqui encena um território de disputas simbólicas que constituem o
mundo da escrita e leitura e nos impele a pensar sobre as diferentes dimensões
envolvidas no dado direito à leitura.
As três personagens, adotando estratégias argumentativas distintas, traçam
formas de desconstrução e resistência às opressões que o mundo lhes apresenta,
recusando-se ao vitimismo que as colocariam em um espaço de despossuídas de
palavras, de culturas. A altivez das personagens apresentadas são sintomas do
empoderamento de mulheres que narram sua própria história.
Ao lermos esses três textos
parece que estamos diante de corpos vivos que falam, que contam sua própria
história, sendo o ato performático o recurso estético empregado para conferir
verossimilhança e mesmo para adensar os textos. O jogo retórico e performático
empregado é o que de alguma forma nos permite pensar o binarismo entre cultura/conhecimento
escriptocêntrico e cultura/conhecimento prático.
Vale ressaltar, contudo, que
consiste em um impasse meramente retórico, encenado em performance, porque a escrita e a leitura não têm sido postas como
possibilidades, das quais poderíamos nos apropriar ou não. Ao contrário,
apresentam-se como privilégios, que são revelados do avesso pelo desdém de
Totonha ou a supervalorização e superpoderes da leitura apontados pelo
eu-lírico de Cris Sobral.
É quase impossível não
avaliarmos o discurso que perpassa essas três narrativas como idealista,
parcial e utópico. Contudo, as armadilhas ideológicas nos apontam para um
exercício de radicalidade analítica que questiona a supremacia escriptocêntrica,
aponta para nossos preconceitos e apresenta existências fora do jogo de
palavras.
Mesmo que em nós paire uma
forte tendência a fazer uma elegia à escrita e leitura, aqui não é esse o
posicionamento. Buscou-se pensar os impasses, mesmo que apenas possíveis em um
nível discursivo, retórico, performático, na tentativa de redimensionar o valor
da cultura letrada e seu papel como criador de discriminações. Talvez o
exercício seja não o de discriminar, mas o de positivar as diferenças e a
coexistência de posições contrastantes, tendo em vista que o papel da educação é
não só ampliar os acessos a outras realidades, mas também redimensionar o que
carregamos em nós mesmos. As hierarquias a que somos sujeitos durante a vida
não devem ser capazes de nos retirar de nós mesmos, mas, ao contrário, podem
ser o ponto de partida para que nós aprendamos a nos colocar no lugar de
outros, neste caso, das pessoas que nunca lerão essas palavras, porém que, de
alguma forma, as vivem.
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