24 de setembro de 2016

A educação sitiada

Luis Felipe Miguel

                                                  Imagem: Richard Peduzzi
Na espiral do retrocesso em que o Brasil mergulhou nos últimos tempos, o ataque à educação é um elemento central. A Medida Provisória baixada no último dia 22, que reestrutura o ensino médio de maneira a esvaziá-lo de conteúdo crítico, foi talvez o maior ato de arbitrariedade do governo golpista até agora. Trata-se de uma mudança de enorme significado introduzida por medida provisória, instrumento que seria reservado para ações de caráter emergencial. A ausência de diálogo com educadores e com estudantes foi a marca do processo.

Mas a educação está sob cerco faz tempo. Um sinal de alerta já se acendeu quando, em abril de 2015, o governador paranaense Beto Richa, do PSDB, colocou a polícia militar para bater nos professores que participavam de manifestações. Alguns meses depois, o governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, começou a fechar escolas públicas. Enfrentou a mobilização dos estudantes, que ocuparam seus colégios, e reagiu também com repressão policial. Depois do golpe que colocou Temer no poder, o secretário de Segurança que comandou a coação contra os estudantes paulistas, Alexandre de Moraes, ganhou o Ministério da Justiça. Mas os jovens estiveram mobilizados também em outros estados brasileiros, muitas vezes com ocupações de escolas. A repressão se mostrou particularmente brutal em Goiás, onde está em curso um inusitado processo de militarização da educação pública, incentivado pelo governador Marconi Perillo, também do PSDB – será que há aqui um padrão? (Para quem quiser conhecer a realidade dos colégios administrados pela PM em Goiás, há um livro com depoimentos e análises de estudantes e professores, intitulado O estado de exceção escolar.)

Enquanto isso, nas manifestações pela derrubada da presidenta Dilma Rousseff começaram a aparecer faixas pedindo “basta de Paulo Freire”. O educador pernambucano era o símbolo da escola emancipadora, que os manifestantes conservadores julgavam – de maneira errônea, infelizmente – que estava difundida pelo país afora. As faixas, que de tão obtusas no começo pareciam ser motivo apenas para riso, eram o sintoma de uma ofensiva contra qualquer traço de pensamento crítico na educação, que se cristalizou com o crescimento de um movimento até então folclórico e irrelevante, o Escola Sem Partido.

O Escola Sem Partido tornou-se porta-voz da oposição dos grupos religiosos conservadores à discussão sobre as desigualdades de gênero nas escolas. Mas, na verdade, nasceu com outra agenda. Quando surgiu, em 2004, seu foco era a pretensa “doutrinação marxista” nas escolas, um tema que reaparece ciclicamente desde o final da ditadura militar.

Foi assim que o ESP ganhou espaço, inicialmente, junto ao Instituto Millenium, uma organização financiada por empresas brasileiras e estrangeiras. (Estou resumindo, aqui, informações que constam de um artigo maior sobre o tema.) As bandeiras prioritárias do Millenium são ligadas ao programa econômico da direita (o Estado mínimo, a desregulamentação, a flexibilização da legislação trabalhista), não à moral sexual ou à família. O criador do MESP publicou, no site do Instituto, em 2009, texto intitulado “Por uma escola que promova os valores do Millenium”, em que seu alinhamento com o ideário ultraliberal ficava patente. Os problemas da educação brasileira, segundo o artigo, seriam a falta de deferência pela propriedade privada, pela meritocracia e pelo princípio da responsabilidade individual. A preocupação com gênero e valores familiares estava inteiramente ausente.

A ameaça da “doutrinação marxista” nas escolas é alimentada por uma leitura fantasiosa da obra de Antonio Gramsci. Sua sofisticada percepção da luta política se torna, nas mãos de seus detratores à direita, uma estratégia simplória, com o objetivo de solapar os consensos que permitem o funcionamento da sociedade, por meio da manipulação das mentes (a noção de “lavagem cerebral” é invocada com frequência). É essa leitura bizarra que é evocada pelo nome de “marxismo cultural”.

A fusão da denúncia da doutrinação marxista de inspiração gramsciana com a oposição à chamada “ideologia de gênero” obedeceu, assim, ao senso de oportunidade do ESP. Deu a ele aliados de peso nas igrejas evangélicas e católica, uma capilaridade com a qual nem poderia sonhar e um discurso com ressonância popular muito mais imediata. A confluência foi facilitada graças ao trabalho de propagandistas da extrema-direita, em particular os alinhados a Olavo de Carvalho, para quem a dissolução da moral sexual convencional é um passo da estratégia comunista. Não por acaso, Olavo de Carvalho é defensor veemente do Escola Sem Partido.

No momento em que a “ideologia de gênero” se sobrepõe à “doutrinação marxista”, o discurso dá outra guinada. A defesa de uma educação “neutra”, que era predominante até então, cede espaço à noção da primazia da família sobre a escola. A reivindicação é impedir que professoras e professores transmitam, em sala de aula, qualquer conteúdo contrário aos valores prezados pelos pais. O foco principal é a “ideologia de gênero”, mas a regra contempla também as posições políticas sobre outras questões e mesmo a evolução das espécies ou o heliocentrismo. Se as escolas privadas poderiam incluir cláusulas contratuais que garantissem a possibilidade de apresentação de determinados temas em sala de aula, as públicas teriam que se curvar aos vetos de tantos pais de alunos quantos quisessem se aproveitar da prerrogativa.

Há projetos em favor do ESP no Congresso Nacional e em muitas assembleias legislativas. Em Alagoas, o projeto virou lei. Mas, a rigor, a aprovação da legislação nem é uma prioridade. Ela serve ao propósito de intimidação de professores e de estudantes, com um número crescente de casos de docentes afastados de sala de aula por pressão de grupos retrógrados. E eles difundiram, a partir de meados de 2015, uma campanha para que os pais encaminhem notificações extrajudiciais às escolas, para impedir que temas ligados a gênero ou política sejam tocados em sala de aula.

A campanha pelas notificações extrajudiciais contra escolas e contra docentes surgiu às margens do Escola Sem Partido, na direita católica, tendo como iniciador o procurador Guilherme Schelb. No vídeo em que ensina a preparar a notificação, reproduzido na página do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (uma das organizações que sucederam a antiga TFP), Schelb não se furta a incluir um incentivo material à defesa da primazia moral da família, citando a possibilidade de obter polpudas indenizações pecuniárias de professores e colégios.

Estabelece-se, assim, uma hierarquia estrita entre família e escola, com o predomínio inconteste da primeira. De um professor português radicado no Paraná, Armindo Moreira, extraiu-se o embasamento “teórico” para a posição. Num livro publicado em edição caseira, Professor não é educador, Moreira desenvolveu a ideia de que a escola que educa está “usurpando uma das tarefas sagradas da família”. O professor é um mero instrutor, isto é, repassador de conteúdos entendidos como neutros e objetivos; a tarefa de educar compete “à família, à sociedade e à igreja”. O livro de Moreira integra a resumida lista de quatro títulos cuja leitura o ESP indica em seu website

O slogan “Meus filhos, minhas regras” passou a ser repetido nas intervenções públicas do grupo. Paródia da histórica bandeira feminista “meu corpo, minhas regras”, o lema subverte seu sentido original, que é a afirmação da autonomia e dos direitos individuais das mulheres, colocando em seu lugar a submissão absoluta das crianças a seus pais, tratadas como se fossem suas propriedades.

Convergem, na percepção que o slogan sintetiza, duas negações. A primeira é a negação do caráter republicano da instituição escolar. Sua função pedagógica incorpora também (e de forma central) a educação para o convívio com as diferentes visões de mundo, próprio de uma sociedade pluralista e democrática. A socialização na escola é importante, entre outros motivos, porque oferece o contato com valores diversos, ou diversamente interpretados, daqueles da família. A segunda é a negação do estatuto da criança como sujeito de direitos – o que inclui, aliás, o direito de conhecer o mundo e de adquirir os instrumentos para pensar com a própria cabeça. A autoridade absoluta dos pais, que subjaz às propostas de intimidação dos educadores, ilustra a caracterização crítica que a teórica feminista Christine Delphy faz da família, na qual impera um “estado de exceção”: nela, os direitos de seus integrantes estão suspensos.

Embora o ministro da Educação do governo golpista, Mendonça Filho, tenha tido que recuar na demonstração pública de sua simpatia pelo Escola Sem Partido (revogou a nomeação de um assessor ligado ao grupo e até se manifestou contra a aprovação dos projetos de lei), a MP do ensino médio deixa claro o rumo que está traçado. Ela retira a obrigatoriedade de disciplinas como Sociologia e Filosofia, leva estudantes de 15 anos a escolher áreas de especialização, faz com que muitos deles possam deixar de estudar até mesmo História e Literatura a partir do segundo ano. O aumento da carga horária e a proibição de matrícula dos mais novos em cursos noturnos afastará da educação os jovens que precisam trabalhar.

O interesse é impedir que se fomente o raciocínio crítico e o questionamento do mundo. Justificam as mudanças com um discurso de qualificação eficiente para o mercado de trabalho ou, de maneira mais ampla, da educação como um investimento cujo resultado líquido seria o desenvolvimento econômico. Claro que a reforma proposta nem isso alcança. O que eles querem mesmo é uma educação que mantenha os pobres no seu lugar, como mão de obra barata a ser explorada.

E a educação pode ser muito mais do que isso. Pode ser um instrumento para reflexão sobre o mundo e o lugar que nele ocupamos, para a produção de uma consciência crítica que emerge do diálogo com os outros e com a realidade. Pode ser uma promessa de liberdade. Tão grande que não apenas promova o desenvolvimento econômico como seja capaz de questionar em que consiste esse desenvolvimento. É isso que os golpistas temem e é por isso que, entre os muitos direitos sob ataque, a educação se destaca.

17 de setembro de 2016

Poetnicidade ou lá na subida da cachoeira os peixes se enfeitam

Devair Antônio Fiorotti


Imagem: Devair Fiorotti
Diz um canto indígena:

imantî pî pona’ ­­­­
maroko watarikuma
[lá na subida da cachoeira
      os peixes se enfeitam[1]]


            Esse canto me foi primeiro mostrado escrito e depois cantado por Terêncio Luiz Silva, Manaaka, índio macuxi, que vive a dois dias a pé da cidade de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, na comunidade Ubaru. A pé, pois não há estradas para lá. Ele foi cantado por seu Terêncio e Dona Zenita, Yauyo, sua esposa, em um registro que deve estar disponível ainda em 2016, pelo Museu do Índio, do Rio de Janeiro.
            O caminho adotado pelos estudos de literatura brasileira tem sido de ignorar tais produções artísticas – qualquer revisão da grade curricular dos cursos universitários de Letras ou de compêndios de historiografia literária brasileira aponta isso com clareza. São exceções trabalhos distantes dos cursos de Letras, como os de Pedro Cesarino, Rosângela de Tugny, Bruna Franchetto, como os da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Independente do descaso, essas artes verbais continuam a ser produzidas por mais de uma centena de etnias indígenas em nosso País.  
            Esse canto é um parixara, um estilo de dança e música comum entre os indígenas do chamado circum-Roraima, que engloba etnias como Macuxi, Taurepang, Ingaricó, Wapixana, em região pertencente a três países: Brasil, Venezuela e República Cooperativista da Guyana Inglesa. Esse canto, pelo menos essa é a conclusão a que tenho chegado, pertence a um elaborado sistema artístico, pois o parixara em sua origem envolve canto, letra, dança, instrumentos como chocalhos diversos, pintura corporal, figurinos específicos.
            Há poeticidade no canto, se comparado com construções imagéticas contemporâneas, como a de Manoel de Barros e, nesse caso, a tradução é bem literal; mas, principalmente, é poética, pois pertence às artes verbais culturais de seu Terêncio, em uma estrutura artística própria. Temos peixes se enfeitando para uma festa, me disse ele. Esse tipo de texto é um produto cultural que, em muitos casos, ultrapassa gerações, ao mesmo tempo em que é contemporâneo nosso, é atualizado, cantado, pertence à memória coletiva e atual de seu Terêncio, de seus povos: os Macuxi e os Taurepang, aos quais seu Terêncio está intimamente ligado por questões de parentesco e vivência.
            Assim como textos escritos são reelaborados e reescritos na cultura nossa de todos os dias, textos indígenas como o poema acima são escritos, lembrados, reelaborados em centenas de comunidades indígenas (por exemplo, para quem pensa que esses textos são somente criações antigas, para não dizer primitivas, em sentido pejorativo, não esqueço quando seu Terêncio disse que modificava algumas letras dos cantos, algumas terminações, pois assim, nas palavras dele, ficava melhor, mais bonito).
            Tenho visto muitos trabalhos pensando a periferia e a contemporaneidade.
            Não tenho dúvidas da necessidade de expandirmos o conceito de periferia para além do texto escrito, publicado, como em geral temos visto. As poéticas ameríndias, como a do poema acima, se estruturam em grande parte ainda sobre outro suporte: a oralidade. Poéticas orais que têm sofrido grandes perdas com a chegada das tecnologias como televisão, internet nas comunidades, bem como das religiões, principalmente as fundamentalistas. As mudanças são imediatas, o rompimento entre narrar à noite histórias e a substituição por se sentar diante de uma televisão, é quase inevitável. Digo perdas, conhecendo conceitos como transculturação, pois o que tenho visto, no caso dos indígenas macuxi, com quem convivo mais, é uma substituição. Cantos como parixaras só são conhecidos efetivamente por gerações mais antigas, salvo raras exceções, sendo que o mesmo tem ocorrido com a própria língua macuxi, hoje falada por poucos jovens na região do Alto São Marcos, Pacaraima, Brasil, por exemplo.
            Pensar a periferia hoje, a meu ver, é também se voltar para as poéticas orais ameríndias. Voltar-se com vigor, pois se faz necessário conhecer e registrar essas poéticas, incluindo-as, ao mesmo tempo, como objeto de estudo além da Antropologia, da Musicologia, mas nos cursos de Letras. Poéticas, como as presentes nas letras dos cantos parixara, pertencem não a uma periferia como concebemos a literatura brasileira em relação à canônica universal, mas ela em si é periferia (brasileira) da periferia (de Roraima) da periferia (oral indígena).
            Algo similar, penso eu, deve acontecer em relação a conceitos como contemporâneo. Tenho dúvidas se esse conceito ajuda a pensarmos as vivências ameríndias, a existência de suas artes verbais, por exemplo. Conceituações como a de Giorgio Agamben me parecem excludentes, apontando para um modelo de indivíduo do qual muitos não fazem parte. Os indivíduos ameríndios são, afinal, contemporâneos?
            Não consigo conceber as artes verbais ameríndias distantes das academias, por mais que, muitas vezes por questões ideológicas, elas estejam. Me nego a isso, pois há nelas uma abertura para se pensar a diversidade cultural brasileira, principalmente uma abertura para se entender o humano além de critérios estritamente ocidentais, como em geral acontece. Entre a literatura brasileira contemporânea escrita, livresca, digital e as artes verbais ameríndias, fico com as duas. Penso que não podemos aceitar menos, como na beleza do poema abaixo, um marapá cantado por seu Terêncio:

                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
         awukuruî ikurumapa
        apaiwarîrî ikurumapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
       awukuruî ikurumapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
        uwai riru itun etapa
              wama-wamari itun etapa
                                        apakakî  wîi wîriwîri
                                        apakakî  wîi wîriwîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
      awukuruî ikurumapa
       apaiwarîrî ikurumapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
        uwai riru itun etapa
            wama-wamari itun etapa
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
         ruwe-ruwerî itun etapa
       apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
                                        apakakî wîi wîri wîri
       awukuruî ikurumapa
      apaiwarîrî ikurumapa


[acorda mulher
            para coar a bebida coar o apaiuá[2]
acorda mulher mulher acorda
            mulher pra coar a bebida

escuta o som do meu instrumento
                          do wana wana[3]

acorda mulher
            para coar a bebida coar o apaiuá
acorda mulher mulher acorda
            mulher pra coar a bebida

escuta o som do meu instrumento
                           do ruwe ruwe[4]

acorda mulher
            para coar a bebida o apaiuá
acorda mulher mulher acorda
            mulher pra coar o apaiuá]


[1] Essa tradução pertence a mim e a ele. Dados do projeto Panton pia', de Devair Antônio Fiorotti.
[2] Bebida fermentada de beiju que diferencia-se do pajuaru, pois é fermentada no alto, sobre um jirau, enquanto o pajuaru seria fermentado sobre a terra. A feitura das bebidas era de exclusividade das mulheres, inclusive meninas púberes eram "tratadas" na boca para fazerem a bebida, já que a saliva contribuía para o processo de fermentação.
[3] Um tipo de flauta, pouco conhecido entre os indígenas.
[4] Flauta pequena feita de taboca.