8 de abril de 2017

Eu escritora, eu lésbica

Natália Borges Polesso


Imagem: Marcos Villalva



Eu escritora, eu lésbica.


Eu, na minha insignificância, na minha ínfima condição de mulher lésbica, resolvi ser escritora. Escolha que não me isenta de pagar as contas, lavar as minhas roupas, tentar comer saudável, ficar puta dia sim e o outro também com comentários e fatos da vida e das internets, etcetera, etcetera. Antes de ser escritora, me tornei professora e, por escolha, pesquisadora (em eterna formação). Minha vida não é tão difícil, no mais tento equilibrar os assédios, tanto da vida acadêmica quanto da vida em geral e as necessidades prosaicas. Escrevo quando dá, não saio muito, bebo em casa (porque gosto e pra aguentar o tranco), não tenho carro, mas também não tenho dívidas, por enquanto. Não sobra dinheiro pra quase nada, mas dá tempo para organizar eventos de literatura na cidade, também insignificante, na qual vivo, longe do grande eixo da literatura brasileira, se é que uma coisa dessas (eixo?) ainda pode existir. Acho que essa metáfora, concreta demais, se desfez nos últimos anos, mas as relações de poder continuam existindo e exercem sua força opressora por outros meios nas mesmíssimas pessoas, como eixos, na tentativa de atravessar (talvez até atassalhar) minorias ou mulheres ou mulheres negras ou mulheres trans ou ainda mulheres lésbicas, onde me encaixo.


Bem, é no pouco tempo que me sobra entre essas atividades que eu penso na minha insignificante condição de escritora: escrevi três livros, três livros que tratam, direta ou indiretamente, de relações lésbicas. Sim. Simplesmente porque minha experiência de (r)existir é uma experiência de mulher e de mulher lésbica, e eu escolhi que escreveria sobre isso, porque eu, dentro de uma reflexão diária, entendi, primeiramente, a importância dessa experiência, e depois, a importância de sua visibilidade, reconhecimento e, sobretudo, respeito. Nos enredos do meu trabalho, esta se constitui uma escolha política e estética. Política por ser modo de ocupar, estética por ser modo de pensar e realizar a minha escrita.




É uma bandeira?, perguntam. Por que não seria? É uma escolha consciente? Sim, definitivamente. “Você quer escancarar o universo lésbico?”, foi a pergunta que recebi do editor de uma revista à época do lançamento do Amora (meu livro mais recente). Escancarar? (por que esta palavra tão violenta?) Até parece que vivemos num universo à parte, que precisa ser escancarado pra ser visto. Respondi, educadamente, porque também é preciso abrir diálogo frente à ignorância, que a pergunta seria descabida se trocássemos “lésbico” por “hétero”. Algumas pessoas me elogiam dizendo que “não é um livro lésbico, é um livro sobre questões maiores e que a todos tocam”. Muito obrigada, mas é justamente aí que reside o problema. Ser lésbica é uma questão maior pra mim. É parte de como eu me relaciono com o mundo, com as pessoas, e eu não quero que esse fator seja apagado. Ele é importante, primordial, até. Por outro lado, isso não quer dizer que o livro seja exclusivo para lésbicas. O livro trata de afetos, de relações de afeto e de experiências de afetividade comuns a todas as pessoas sim, é verdade, mas com uma pequena (grande) escolha estética: as mulheres são sempre protagonistas. É esse protagonismo que parece incitar os problemas quanto à critica – é um livro lésbico ou não é um livro lésbico? Isso é positivo ou redutor? – a questão não é banal e revela um descompasso. Se é um livro lésbico, é por necessidade e escolha política, o que não invalida escolhas estéticas muito menos construções narrativas. As relações não acontecem num ambiente amorfo, num fundo branco infinito, mas num espaço-tempo existente, que é o mundo, o meu, o seu, o nosso mundo, caso tenham dúvidas. E o mundo tá cheio de lésbicas.


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