Rafa Ireno
Imagem: Grafite de Eduardo Kobra |
Entre uma pergunta e outra sobre a Cooperifa,
em algumas entrevistas, como num respiro, Sérgio Vaz sussurra: “É difícil
explicar o que acontece para quem nunca foi…”, depois, retoma, insiste no
raciocínio, fala sobre seu amor pela poesia, sobre o direito à literatura, a
necessidade da formação de um público leitor na periferia, a dessacralização da
arte, o problema do cânone e como, tendo em vista isso tudo, idealizou e
desenvolveu, junto do poeta Marcos Pezão, em 2001, o Sarau da Cooperifa
– um dos pilares da literatura periférica, no extremo sul de São Paulo.
É
verdade que, nos últimos anos, a produção artística das periferias tem sido
reconhecida na cultura brasileira contemporânea (inclusive, pelo mercado
editorial). Também é verdade que este reconhecimento se dá antes no
plano ético ou político do que estético. O que já é um passo, porém, não
suficiente. Este desequilíbrio, a meu ver, relaciona-se muito a um problema
ligado à apreensão, às ferramentas de análise para se abordar formulações
estéticas descentralizadas. Os utensílios críticos não foram imaginados segundo
às necessidades das artes contemporâneas, menos ainda, àqueles feitos nas
margens da sociedade. Por consequência, ao começar essa reflexão, é o hiato do
poeta, as palavras não ditas no tempo d’um copo d’água, que ficam reverberando em
mim. Quero dizer, o princípio da coisa é fácil de explicar: pessoas reunidas
para ler e escutar poemas. Mas, colocado assim, não se compreende a dimensão, a
potência transformadora e o valor estético dos saraus. A simplicidade é
difícil. O gesto despretensioso, de compartilhar versos em grupo, é a
transformação de sentimentos, histórias, desejos, angústias, sonhos, numa forma
específica, a Cooperifa, edificada coletivamente a cada terça-feira, das
20h30 às 22h30, no Bar do Zé Batidão.
II
Trata-se,
entre muitas outras coisas, de um sistema inédito de organização literária no
Brasil, que traz consigo uma dificuldade enorme de pensá-lo, observá-lo, comentá-lo,
seja numa entrevista, seja num ensaio ou numa tese. Em parte, porque ele exige
naturalmente um novo modelo de crítica. Um que não corrompa, em nome da
objetividade da reflexão, a espontaneidade, o frescor e ineditismo do
movimento; ao mesmo tempo em que lide com o desafio de traduzir em discurso uma
experiência baseada nas vivências do lugar e do corpo na periferia. Carece de
ter um olhar consciente da própria contradição. A literatura periférica tenta
fincar os pés no chão, no território e diminuir a distância entre a poesia e a
gente. Ela ambiciona reverter os símbolos em atos, a palavra em ação, a fim de
mudar a realidade imediata. Enfim, talvez, por isso, é uma tarefa perniciosa e
quase sempre frustrante a de falar da Cooperifa estando fora dela.
III
Todas
terças-feiras não importa onde esteja no mundo, é estranho não me arrumar,
pegar o ônibus no terminal Sto. Amaro até a Piraporinha, subir o morro e chegar
no bar do Zé Batidão (R. Bartolomeu dos Santos, 797 – está Jardim Guarujá no
Google, mas, ali, ainda é Chácara Santana), pois, de 2013 até 2019, quase
todas as semanas, eu estava na Cooperifa. Geralmente, sentado na escada,
à direita do microfone. Para falar verdade, ia bem mais cedo, evitava o
trânsito na M’boi Mirim e, como nasci e cresci poucas esquinas para baixo do
sarau, visitava minha família, na rua do colégio Mario Moura. Vó mora lá até
hoje. Jantava com ela, depois subia para o sarau. Foram tempos complicados: nos
últimos anos, o vô adoeceu. Ele faleceria poucos meses depois de minha partida
– em 2019, vim para França completar meu doutorado.
Se
olhar no mapa dá para ver que são poucos metros separando minha casa do Zé
Batidão, ainda assim, na memória, este caminho se desdobrava numa grande
estrada, uma linha longa, estendida entre dois pontos, duas periferias – a
primeira que me repulsava, as violências, dores, silêncios, solidões; e, na
outra beira, a festa, o coletivo, a criatividade, me atraindo, dando vontade de
ficar mais um pouco. Essas duas extremidades, é claro, não estão completamente
isoladas. A divisão tem a ver, eu acho, com a substância separando a ficção da
realidade. Algo como uma fissura entre o que foi e o que deveria ter sido.
IV
A
Cooperifa, então, não é somente um espaço onde circula a literatura, o
sarau é em si mesmo uma forma, por assim dizer, um poema. Uma releitura da
própria periferia. Em outras palavras, é uma representação estética, com suas
regras – uma poética – com suas razões de ser, seus ritos, tensões, que foram
se construindo, adaptando-se, mudando ao longo do tempo e de acordo com o
território.
No
começo, por exemplo, há uma abertura quase sempre feita por Sérgio Vaz. Um
chamado para abrir os trabalhos, que serve tanto como boas-vindas, quanto como
um lembrete do significado da Cooperifa, os princípios do sarau e, por
fim, exige-se o silêncio para ouvir a poesia. Há, também, um encerramento com a
pessoa que está lançando livros ou com música para celebrar o fim de mais uma
reunião e assegurar a volta para casa com segurança. Entre estes dois pontos,
estão certas passagens obrigatórias, invariáveis, instantes reconhecíveis e
sobretudo esperados, que marcam o tempo da noite e mexem com a expectativa do
público: é o caso, sem dúvida, da declamação de Dona Edite, pois, quando sua
voz de setenta e oito anos corporifica os versos de “Navio Negreiro” de
Castro Alves, o registro se eleva ao terreno da épica. Esta senhora conjuga
muitos elementos em sua figura, desde seu destino individual quanto da história
coletiva da zona sul de SP. Tal momento se repete magistralmente todas as
terças-feiras e quando, por algum motivo, não acontece – eu lembro que a
sensação é a de que falta alguma coisa. O mesmo sentimento se repete, por
outras razões, na vez de Sérgio Vaz, de Rose Dorea e de Jairo Periafricania.
Depois,
o arranjo da obra se condiciona pela ordem de chegada dos participantes –
aqueles considerados poetas da comunidade têm preferência na fila, afinal, já
estavam neste espaço há mais tempo. O ritmo está nas mãos de Lu Sousa, uma
escritora proeminente lírica, que anota os nomes na lista e conduz discreta o
sarau. É ela quem lê as noites, que conhece os tons, os gestos, as linhas de
cada um dos presentes e, com isso, tece o enredo do sarau. Avisa: um poema
curto, por favor, está cheio hoje, certo? Às vezes adianta um, às vezes, atrasa
o outro de acordo com a atmosfera. Neste intermeio, como um acréscimo eventual,
frequentemente, artistas de outras paragens, de Estados diversos ou mesmo de
outras regiões da cidade, visitam o espaço e contribuem ao sotaque da
Cooperifa, que se tornou uma confluência da poesia na cidade de São Paulo.
Essa prática, que se ensaia tem dezenove anos, condiciona as formas das obras da
periferia, as tensões e ritmos. Daí, de repente, tem um corte, a festa se
interrompe. Algum dos organizadores vai ao microfone, um papelzinho na mão, e
declama a placa do carro bloqueando o caminho do ônibus na rua, o silêncio, a
procura, o proprietário identificado, o 5318 passa e a poesia retoma.
V
Não sei bem o porquê, num destes dias frios e
tristes em terra estrangeira, peguei-me pensando que existe mais poesia do que
prosa na literatura periférica. Talvez, por causa dos saraus, talvez apenas
seja solidão. Então, eu enviei uma mensagem para o Prof. Fábio, poeta e
pesquisador da Cooperifa, perguntei-lhe sem mais, sem introdução; o meu
anseio era que ele respondesse às minhas urgências: “Por que você acha que na periferia temos, de
maneira geral, menos romances?”. Sua resposta foi a seguinte:
Trata-se de uma
característica histórica, a meu ver, de grupos que menos exercem seu “direito à
literatura” terem suas experiências com textos das esferas literárias iniciadas
ou intensificadas com a poesia. Antonio Candido, em “Sentimento de Identidade”,
por exemplo, fala sobre a popularização da poesia nas camadas menos letradas
durante a consolidação do Romantismo entre nós. Alguns teóricos, ao tratar
sobre literatura negra, como Zilá Bernd, apontam para predominância de uma
(poesia) sobre outra (prosa). Ambos, a meu ver, a despeito de terem enfoques muito
específicos, podem ajudar na reflexão acerca de a poesia permitir a elaboração
de mensagens de forma mais rápida aos objetivos de quem escreve (o que não se
confunde com falta de capacidade) e maior possibilidade de fruição nos
processos de interação social (o que ajuda, ainda em minha modesta opinião, a
valorizar iniciativas como os saraus periféricos, os slams, as batalhas de
rima); como professor, inclusive, é massacrante o placar de estudantes e
ex-estudantes que me procuram para expor suas artes com poemas em relação às
prosas, crônicas e contos, por exemplo.
Não
me parece por acaso que essa manifestação tenha acontecido, em primeiro lugar,
na zona sul de São Paulo. Essa região têm um histórico de engajamento, desde as
demandas por moradias no Jardim São Luiz; passando pelos grupos de mulheres do
Ângela, reunidas para resistir às violências policiais, até os sindicatos
operários da área industrial de Santo Amaro. Existe o registro cultural das
lutas negras, do movimento Black e do Hip-hop, fortes presenças neste canto da
cidade. Outro aspecto a não ser ignorado, quando se pensa nos saraus, diz
respeito a chegada do Partido dos Trabalhadores no poder, a figura de Luiz
Inácio Lula da Silva indica um instante particular também no imaginário
brasileiro.
VI
Dona
Edite quem costuma dizer que cada encontro é como se lêssemos um livro, todos
juntos. Tem-se aqui uma boa chave de interpretação, porque implica pensar numa
nova obra se escrevendo a cada terça. Nenhum sarau é igual ao outro. Ora,
descontando feriados, férias, impedimentos, os dezenove anos representam mais
de novecentas semanas, ou seja, 900 livros escritos e lidos coletivamente.
Interpretem estes dados com o seguinte acréscimo: refiro-me apenas a um grupo.
Se, por exemplo, adicionar o Sarau do Binho, do Grajaú, Suburbano
Convicto, Elo da Corrente, Sobrenome liberdade, entre muitos
outros, uma vez que, em certos momentos, eram mais de cem saraus espalhados nas
periferias de São Paulo e do Brasil inteiro; trata-se da formação de um sistema
literário quase autônomo, gigantesco e completamente paralelo ao cânone
brasileiro. E, como era de se esperar, até pouco tempo, ignorado pela crítica
tradicional. Mas, voltando ao raciocínio anterior, tal compreensão permitiria
pensar que o melhor método de análise, para se olhar com justiça a literatura
periférica, seria um balanço equilibrado entre cada noite e todas as
noites.
VII
A
sabedoria de Dona Edite aponta, inclusive, para uma condição ambígua do
movimento; porquanto esta realização estética não é recolhida num objeto
material. E, eventualmente, quando isso acontece no formato de um livro, na
passagem das noites para o papel, perde-se justamente a substância humana do
corpo, a presença e os gestos[1]. A única
antologia do sarau, de 2006, não representa o que foi a minha experiência a
partir de 2013, assim como hoje, se houvesse outra publicação, não seria o
mesmo de quando eu estava lá. Aliás, às vezes, este descompasso provoca um
efeito prejudicial à literatura periférica (que acredito ser melhor resolvido
em outras artes como na música e no cinema). Muitos poetas, eventualmente
iludidos pelo sucesso de suas performances, publicam prematuramente. Nas
páginas solitárias, entretanto, os versos não funcionam como no sarau, a
leitura do livro mobiliza aspectos diferentes (o que é justamente o assunto
tratado aqui!), de modo que os reveses da linguagem poética se evidenciam,
acontecem equívocos e isso dá um ar de imediatismo à poesia.
Se,
então, por um lado, essa efemeridade configura um traço lírico e, de alguma
maneira, resistente, na medida em que se estabelece numa outra relação
temporal, dispensando a ideologia capitalista de que tudo deva resultar num
produto (para ser consumido…), por outro lado, a dificuldade em gerenciar o
passado, inconscientemente, reproduz o modus operandi da sociedade: o
apagamento violento dos traços materiais e afetivos dos pobres. “Sarau” deveria
ser sinônimo também de “arquivo”. Afinal, a tensão estética não é outra coisa
senão uma contenta com o tempo, isso intensificado na quebrada, obrigando a
desenvolver uma forma resistente à lógica opressiva; a buscar uma criação que
valha um respiro de fabulação aos trabalhadores. Uma literatura capaz de dar
uma esperança mínima, que feito um espelho, faça a gente da periferia se
enxergar, pois é uma versão de suas histórias contadas ali. Porém, a
indissociável proximidade com a matéria (o fato dela se constituir do corpo),
inevitavelmente, como efeito colateral, traz em sua fatura poética a reprodução
do drama trágico da periferia: a desapropriação da memória. Evidentemente, a
sensibilidade periférica está atenta para continuar desenvolvendo estratégias
para subverter essas condições. E, hoje, existem novas possibilidades de
expressão poéticas. A questão é saber se isso acontece na dimensão das
urgências e, infelizmente, à altura de lutar contra o futuro que se vislumbra
no Brasil.
VIII
Antonio
Eleilson Leite, no texto “Literaturas da Periferia: o desafio da estética”, no
site Outras Palavras,
desenvolve uma sincera e corajosa análise, identificando que o argumento social
e político do movimento periférico, poderoso e fundamental, está próximo de seu
esgotamento. Quase não é mais suficiente para sustentar uma construção, que se
diz, literária. Ele propõe, desta maneira, coisa que eu concordo, que a
periferia dispute igualmente os conceitos estéticos, que se aproprie das
reflexões também formais, o que implicaria, então, num trabalho crítico. Nesse
sentido, o autor escreve na conclusão:
Mas para alcançar o reconhecimento artístico, é necessário que esta arte seja submetida à crítica:[…] Não estão em discussão os propósitos políticos do movimento, tão bem expostos nos manifestos da Semana de Arte Moderna da Periferia [texto de Sérgio Vaz]. A questão é analisar que arte está sendo produzida a partir desses propósitos. O bordão de Alessandro Buzo, que diz: “Pensavam que não sabíamos ler e agora estamos escrevendo livros”, já não dá conta da cena atual. É hora de discutir a qualidade literária desses escritos.
IX
Não se pode ignorar o lado
romântico/utópico do movimento, anunciado em poemas como “Literatura das Ruas”
e “Victor Hugo” de Sérgio Vaz. Neste sentido, por sinal, Os Miseráveis
se refere a uma das leituras preferidas do poeta. É curioso o fato de que Hugo,
enquanto escrevia a sua grande obra, tinha consciência que sua forma inovadora
nutriria uma dificuldade de apreensão. Num prefácio deste romance, inclusive,
leio a melhor conclusão para meu ensaio: uma carta de Hugo, dia 7 de fevereiro
de 1862, para Albert Lacroix, na qual previne seu editor: “Você
arriscaria se enganar, tentando compreender definitivamente ‘isso’ ou ‘aquilo’,
e não olhando a perspectiva do TODO, você cometeria erros de perspectiva. Este
livro é uma montanha; ele não pode ser medido, nem mesmo visto com clareza;
unicamente à distância. Quero dizer, só por completo”. Da mesma maneira, “só
por completo” será possível compreender o Sarau da Cooperifa.
[1]No evento “Centralidades
Periféricas: Reflexões Sobre Literatura Periférica e Universidade”, realizado
no Instituto de Estudos Avançados da USP, dia 18 de junho de 2018, Heloisa
Buarque de Hollanda sugere, para vencer esse problema, uma publicação em livro
com códigos QR, conectando as páginas a um registro audiovisual.
*Rafa
Ireno é escritor e crítico da periferia de São Paulo, do Chácara Santana. Neste
momento, faz um doutorado sobre poesia e política nas obras de Rubem Braga e
Jacques Prévert. Recentemente, publicou de maneira independente o segundo fascículo
de poemas em prosa chamado Três por
Quatro. Desde 2019, é colaborador do Letras in.verno e re.verso
(http://www.blogletras.com/) e, não tão amiúde como gostaria, escreve em seu
próprio blog (http://amiudo.blogspot.com/ ). E-mail: irenorafa@gmail.com
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