Nelson Barbosa
Passados 25 anos da morte do escritor Caio
Fernando Abreu (1948-1996), de uma forma não tão usual entre a maioria dos
escritores brasileiros, que infelizmente acabam caindo num incompreensível esquecimento,
a obra e a persona de Caio F. ainda surpreendem por sua vivacidade e possibilitam
um lugar de reflexão e encantamento não só no público jovem que o descobre,
como também nos seus leitores de tempos em que suas obras iam sendo compostas e
publicadas.
Não é aleatória essa relação entre a obra
e a persona do seu autor, tampouco essa percepção está ligada a uma necessidade
“antiga” de se associar autor e obra pelo vínculo do biografismo, que durante
muito tempo pautou esses estudos literários envolvendo o autor e sua obra como
determinantes um do outro, como se os dados factuais fossem então os causadores
dessa obra produzida.
Decididamente, não é esse o caso de Caio e
sua permanência na nossa literatura. Não é o caso, porque a obra de Caio, por
mais que a crítica tradicional tenha tentado lê-la por esse prisma, procurando
inclusive determiná-la como “literatura gay” porque o autor se declarara gay,
rompeu o paradigma da representação literária tradicional para dar lugar à
experiência como matéria literária. Não aleatoriamente, também, essa conjuntura
da experiência veio abrir caminhos para que a literatura deixasse de ser uma
escrita, digamos, de “gabinete” ou de assunto de classes dominantes, para se
tornar efetivamente a expressão de liberdades e vivências antes sufocadas e
desacreditadas até mesmo como passíveis de ficcionalização ou de pertencerem ao
universo da literatura tout court: as escritas femininas/feministas, as
escritas de segmentos segregados e de guetos, negros, gays, marginalizados em
geral... Enfim, a grande abertura da literatura para existências que antes
apenas apareciam, se quando, nos bastidores das obras literárias, jamais
assumindo seu protagonismo como literatura.
E no caso específico de Caio F., reconhecemos
em suas criações o caráter autoficcional, procedimento que coloca autor e leitor
no cerne dessas construções literárias tanto “reais” quanto “ficcionais”, ora
embreando ou desembreando dados documentais, ora embreando e desembreando
criações ficcionais, alternando-os e amalgamando-os, produzindo um aproximar-se
cada vez mais potente do leitor e da obra, e não gratuitamente, também do
autor. É, portanto, nesse entrecruzamento de experiências, reais e ficcionais,
que a obra de Caio se constrói e se apresenta como uma grande novidade no
cenário das nossas letras, “novidade” que vai se perpetuando justamente por
essa característica que a torna sempre à mão, como se diz, sobretudo nos tempos
atuais de domínio das redes sociais e da internet. Claro que, por vezes,
sofrendo o risco do esgotamento ou esvaziamento do excesso que se atribui a
tudo que possa minimamente lembrar uma escrita de Caio, exatamente como
acontece com sua madrinha literária, sua grande inspiração, Clarice Lispector.
Hoje esse assunto ou esse tema da
autoficção nos estudos literários já corre facilmente por inúmeros estudos críticos,
mas não era ainda o que se produzia em termos de crítica na época de Caio, o
que certamente foi objeto de equívocos de leitura dessa obra que já se
construía sobre novas bases de criação literária. É curioso pensar que a obra
de Caio não surgiu, assim, intencionalmente dessas discussões em voga na França
justamente nos anos 1970, quando Caio já tinha produzido um romance (Limite
branco, 1970) e alguns contos nessa “pegada” autoficcional. Ou seja, avesso
aos academicismos literários, o que lhe permitia até mesmo eleger Caetano
Veloso e a Gilberto Gil como seus guias na escrita literária, Caio não
acompanhava essas discussões que, ao fim e ao cabo, acabaram servindo como
privilegiado rumo para depois se estudar a sua produção.
E nessa característica ímpar de sua obra reside,
acreditamos, um dos primeiros elementos identificadores da empatia com gerações
posteriores e, sobretudo, entre os jovens que hoje o encontram e se enredam com
sua escrita, e se emocionam ou o escolhem como leitura privilegiada dentro de
nossa literatura.
Nesse caso, borrando todo limite e
fronteiras entre a escrita ficcional e sua persona, entram também nessa escolha
de leituras suas cartas abundantemente publicadas, compondo com autor e obra
esse amalgama de literatura e vida real e concreta que parece encantar os novos
leitores. Na intersecção entre a ficção dos contos e a realidade das cartas, o
gênero híbrido ao qual Caio passou a se dedicar com mais frequência nos últimos
anos de vida, a crônica, cumpre um papel primordial realizando nelas, ainda
mais sem amarras de gênero ou fronteiras, sua leitura mais completa do mundo
que ainda nos chega como uma manhã a cada leitura.
Sempre angustiado com a vida concreta a ter
que ganhar, como jornalista freelancer, revisor/preparador de livros e
autor de resenhas (as “costuras para entregar”, como gostava de dizer retomando
o universo do trabalhador “braçal”), em meio a despejos de apartamentos e
dificuldades financeiras imensas, Caio se via por vezes descolado de sua
realidade mais funda produzindo literatura em meio a esse caos pessoal,
político e social de seu tempo (que curiosamente parece agora novamente ganhar
força não por acaso por um projeto político de miséria e morte). Levava essas questões
muito íntimas, desgastantes, ao psicanalista que o acompanhava, revelando-se
cansado e insatisfeito com o que escrevia, sempre na busca de uma literatura que,
esperava, pudesse ser cada vez mais concreta e tangível por sua experiência,
que tocasse, pretendia, no que seria exatamente o sentimento das pessoas. Seu
psicanalista, certa vez, ao ouvir essas questões para ele tão doloridas, procurou
tranquilizá-lo quanto a isso dizendo que, na verdade, num tempo futuro, quando
alguém quisesse de fato saber ou sentir o que acontecia em sua época, logo, em
sua obra, não seria nos jornais que iria encontrar essa resposta mais
claramente colocada, mas especificamente em sua obra literária em construção,
em seus textos colhidos na convivência das redações, dos vários “bicos” de trabalho,
dos bares noturnos, da rua, na sua incessante busca de amor, de prazer, em meio
ao trânsito caótico, nos bares escuros, nas boates e nos amores rápidos que
vivia, no centro nervoso das cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de
Janeiro por onde circulava em pleno coração de uma sempre improvável América do
Sul. Foi por isso mesmo que seu psicanalista o definiu como “o biógrafo da
emoção”, aquele que com sua escrita capturava as emoções das experiências então
vividas. Vemos aqui que a “profecia” parece mesmo ter se consumado.
E, de fato, essa característica de sua
obra percebida por seu psicanalista parece definidora na sobrevivência de sua
escrita para muito além de sua época e vida. São esses mesmos ambientes, esses
mesmos espaços, concretos ou psicológicos, escuros ou iluminados, dolorosos ou
de uma alegria incontida, então inusitadamente frequentados na sua literatura,
que hoje se revelam próprios a seus leitores mais jovens: o ambiente da busca,
da escolha, da desesperança, da descoberta, ou mesmo da espera de um encontro
determinante, revelador, na espera de uma “pequena epifania” que revelasse no
positivo aquele sentimento que se construía no negativo de sua alma, num jogo
de troca de sinais entre o positivo e o negativo como dele já falou José
Castelo em Inventário das sombras.
Embora marcada por esses mergulhos em sua
realidade, Caio jamais cedeu às armadilhas de tornar sua obra um grande
panfleto, como, já dissemos, muitas vezes a crítica o viu. Não haveria por que
se ocupar de um panfleto quando a criação literária e linguística o tomava por
inteiro na escrita e audição de sua própria produção ficcional. Nem mesmo
quando sua vida teve a “verossimilhança” atravessada pelo real ao se descobrir
contaminado pelo HIV que já matara quase todos os seus amigos, Caio abriu mão de
tratar também dessa sua experiência eminentemente nas linhas da literatura,
construindo nela o caminho que se lhe abria em direção à morte. Nesse momento,
como grande escritor que foi, até mesmo sua morte veio a ser “vivida” em sua
obra, longe de se tornar um panfleto que o vitimasse por uma sentença tão
extrema.
Há, equivocadamente, até mesmo entre alguns
de seus contemporâneos, quem, embalado pela leitura redutora de sua produção,
declare que Caio não teria tido o tempo necessário para seu amadurecimento como
escritor, a ponto de vir a “superar” sua questão primordial da sexualidade
sempre vista como determinante em sua obra. Isso é um tremendo equívoco de
leitura, como se a pauta fosse sempre a “evolução” para uma sexualidade padrão
determinada pela sexualidade heterossexual que assim o avalia. Esse equívoco
nos levaria prontamente a perguntar se esses contemporâneos que sobreviveram a
seu tempo acaso superaram em suas próprias obras as questões de sua sexualidade
padrão heteronormativa sempre presente em seus contos e romances? Evidentemente
que não se trata disso, e nem isso seria o marcador de um amadurecimento da
produção literária de um autor que, ao que vemos, sempre teve plena consciência
de construção de sua obra a cada novo livro lançado.
Caio se ocupava da literatura em toda a
sua extensão, e por ela se fazia existir por sua experiência, confundindo-se
com ela, livre de bandeiras identitárias ou outras quaisquer, como a da aids, o
que consideramos ter sido o grande trunfo de sua obra.
Quem hoje se encontra com suas narrativas
depara no seu cotidiano com realidades tão violentas quanto as situações
contidas em seus contos “Creme de alface” (Ovelhas negras), “Garopaba
mon amour” (Pedras de Calcutá) e “Terça-feira gorda” (Morangos
mofados); em situações tão delicadas quanto as descobertas contidas em “Aqueles
dois” (Morangos mofados); em reflexões tão profundas e tocantes como no
delicado conto “Corujas” (Inventário do ir-remediável); em dúvida em
relação à realidade política de um país perdido como em “Oásis” (O ovo
apunhalado); em abandono e desorientação como em “Sem Ana Blues” (Os
dragões não conhecem o paraíso)... São muitas e diversas as passagens de
Caio que nos trazem sua experiência atrelada às nossas, de leitores deste
século XXI, século que infeliz e estranhamente ele não conheceu, mas anteviu
tão bem, porque sua literatura fala de nós, fala do humano em nós.
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