3 de maio de 2020

Para Carolina



Arte de Farnese de Andrade



Cara Carolina Maria de Jesus, nossa eterna Bitita,

estou te escrevendo do ano de 2020, quando um vírus letal tem mostrado para a humanidade, há muito doente, que ela tem seus pés de barro. Escrevo-te de uma pequena sala da minha casa, enquanto ouço o barulho de crianças gritando; o movimento dos carros; o chiado da panela de pressão na casa da vizinha; o pronunciamento do atual presidente do país nas redes sociais questionando “e daí?” diante da morte de mais de cinco mil pessoas devido à pandemia causada pelo vírus; os gritos de uma mulher que parecem vir do outro lado da rua; o sono leve de meu filho, de três anos, com febre aqui do meu lado devido a uma garganta inflamada. Vindo das batidas inquietas do meu coração, ouço ainda os sussurros invisíveis de milhares de Carolinas desesperadas por não saberem o que darão aos seus filhos para comer no dia de hoje e nos mais sombrios que ainda virão. Aproximando-se um pouquinho da sua, minha escrita se emaranha aos burburinhos que tecem o cotidiano desses dias e à urgência de dizê-los, ainda que seja só para pedir que o vento encontre uma fenda na vozaria por onde possa levar, à sala de visitas, as palavras de angústia, de indignação, de medo, mas também de amor, empatia e esperança, que movem o meu escrever.

Desculpe por introduzir a nossa conversa com alguns assuntos tão tristes. Queria eu começar esta carta te falando apenas dos sorrisos largos dados, por um breve tempo, pelo nosso Brasil. Dizer a você que um homem, que já passou fome, o governou. Sim, querida Bitita, o Brasil foi dirigido por alguém que teve como professora a fome. É bem verdade que, para conseguir governar, precisou fazer alianças com o mercado e isso lhe/nos custou muito caro. Em um outro momento te conto mais sobre isso. Por enquanto, quero que saiba que, como você previu, as políticas adotadas por esse governo contribuíram para que cada vez mais brasileiros pudessem comer três vezes por dia sem deixar de comprar sapatos para as suas filhas. E não parou por aí. Você, que atravessou cidades de Minas a pé, com as pernas feridas, em busca de um tratamento, certamente ficará feliz em saber que esse governo também investiu em saúde pública, ainda que não o suficiente. E tem mais, talvez seja difícil para você acreditar, mas por um tempo, os pobres puderam viajar de avião, misturando-se aos ricos nos pomposos aeroportos. Foi dessa forma que os pretos, espalhados pelo vento como folhas secas, puderam se juntar, ficar mais perto dos seus. Também muitos de nós puderam abandonar os quartos de despejo e comprar uma casa de alvenaria. Houve investimento na educação e na pesquisa. As nossas universidades foram ficando cada vez mais coloridas por pretos, índios, quilombolas, homossexuais, transexuais. Pessoas que, como você, também compreenderam o poder de transformação que tem a escrita e, com e por meio dela, têm feito coisas extraordinárias. Você precisa lê as literaturas inspiradoras que as filhas e netas de empregadas, de pedreiros e de outras tantas profissões desvalorizadas estão escrevendo!

Queria eu ter começado esta carta te dizendo que o Brasil já foi governado por uma mulher.  Essa é mais difícil de acreditar, não é? Mas foi. Estou te contando isso por acreditar que a menina Bitita, que tantas vezes sonhou atravessar o arco-íris para se tornar homem e assim desfrutar dos privilégios concedidos a esse gênero, ficará feliz em saber que, apesar de a desigualdade de gênero ainda existir e de a nossa primeira presidenta ter sido derrubada em meio a discursos extremamente machistas, um número significativo das mulheres do nosso tempo são, cada vez mais, donas de si e seguem sendo inspiração para tantas outras, como você foi e ainda é para muitas de nós.

Ah, e como eu queria ter começado esta carta te contando que as patroas do seu tempo encontrariam muita resistência ao tentar fazer as meninas pretas do meu tempo trabalhar de graça em troca de produtos que pudessem deixar os seus cabelos escorridos. As amarras de um sistema que te fizeram, e ainda fazem a muitas de nós, olhar os cabelos no espelho e desejar que eles tivessem nascido lisos têm sido denunciadas e contestadas por coletivos e por pessoas inspiradoras. Os nossos crespos e cacheados não querem mais ficar presos. Volumosos, eles têm entrado nos cinemas, na televisão, na internet, nos shoppings, nas propagandas, no concurso de Miss Brasil, em todos os lugares.

Infelizmente, não pude começar nossa conversa por aí. Escolhi que ela se iniciasse em um espaço-tempo despetalado. Porque assim como a escritora favelada foi rosa despetalada quando espinhos alcançaram o seu coração também foram aqueles(as) que, no meu tempo, ousaram não ficar em silêncio ou tentaram mudar a ordem estabelecida das coisas. Igual a um corpo envelhecendo, também nossos sonhos, florescidos nos tempos de alegrias contados acima, foram desiludindo, regredindo, envelhecendo, enrugando, murchando, morrendo. Os espinhos da minha época talvez não tenham os mesmos nomes que os da sua, mas não duvido que possuam os mesmos traços genéticos, as mesmas raízes, os mesmos sobrenomes. Continuam a humilhar a menina faminta que pega uma manga no quintal do vizinho para saciar a fome e a apertar a mão e dar uns tapinhas nas costas dos que roubam o país. A menina “ladra” ouviria, com muito medo, que bandido bom é bandido morto enquanto a amarrariam em um poste ou tatuariam “ladra e vacilona” em sua testa. A mãe trabalhadora que, sozinha, cria e mantém o sustento dos filhos, ouviria do vice-presidente que ela é fábrica de elementos desajustados que afetam o país.

É que os filhos dos Moreiras, Pereiras e Oliveiras do seu e do meu tempo, Carolina, continuam a violentar nossos corpos, nossas forças de trabalho, nossas identidades. Continuam a tratar bem os industriais e a tratar como animais os operários. Continuam a cobrar de nós que sejamos submissos, que abaixemos as vozes, que não façamos o que eles chamam de “mi-mi-mi” ao menosprezarem as nossas vozes. É que eles, Carolina, não suportaram nos ver nos infiltrando, para usar aqui uma palavra sua, em universidades; viajando para o exterior; indo aos mesmos shoppings, teatros, restaurantes e cinemas que eles; produzindo e vendendo cinema, música, literatura e arte de qualidade; fazendo pesquisa, tornando-se mestres(as) e doutores(as); saindo do quintal e ocupando a sala de visitas. Os de agora, como os da sua época, também não pensam nos nossos filhos. Quando bradam, vestidos de verde-amarelo, abraçados na bandeira do país ou dançando ao redor de um pato, em um domingo sangrento qualquer, que o que estão fazendo é pela família, estão falando apenas de suas próprias famílias, não das nossas. Eles estão, de certa forma, zombando de nosso sofrimento enquanto perguntam, covardemente: “E daí” se os seus filhos, avós, netos, pais, mãe, irmãos, irmãs estão morrendo? E daí, Bitita? O que eles têm a ver com isso, não é? Embora nos sepultem todos os dias, eles não são coveiros. Para eles basta que sigamos trabalhando, mantendo a engrenagem da economia funcionado. Quando um é engolido por ela, basta colocar outro no lugar e tudo segue igual, como se nada tivesse acontecido.

Embora tenha escolhido este tempo-espaço despetalado para iniciar a nossa conversa, esta carta não é para dizer que tudo está perdido, Bitita. Recolha a desilusão e a tristeza que as minhas palavras podem ter trazido. Quando eu digo que aqueles(as) muitos que fugiam ao vê-la ainda estão por aqui não é para que você entenda que nada mudou, é para que você compreenda que eles estão tentando nos silenciar porque a mudança aconteceu. É para que você saiba que, embora não plena nem por muito tempo, os pretos deste país já conheceram a felicidade e não vão abdicar dela tão facilmente. É para te dizer que muitas mulheres pretas do meu tempo, as que, como aconteceu contigo, são tolhidas pelo preconceito e o racismo, estão escrevendo, estão ocupando espaços socialmente privilegiados, estão levando outras consigo, não vão voltar atrás. É para que entenda que os pretos do meu tempo viram o sol, sabem de sua força, e que, embora estejam murchando nestes dias de escuridão, não vão se deixar ser sobreterrados. É para falar a você que, usando aqui as palavras de Conceição Evaristo, uma mulher preta que se inspira na sua escrita, “eles escolheram nos matar, mas nós escolhemos não morrer”.

Há um poema seu no qual você diz “quantas coisas eu quis fazer, fui tolhida pelo preconceito. Se eu extinguir, quero renascer num país em que predomina o preto. Adeus! Adeus, eu vou partir! Morrer! E deixo esses versos ao meu país. Se é que temos o direito de renascer, quero um lugar onde o preto é feliz”. É partindo dele que te pergunto, Bitita: e daí que eles dizem que não podemos renascer? E daí que eles não querem que os pretos sejam felizes? E daí que eles nos vejam como estatísticas e não seres humanos? E daí que eles pensam que nos mataram? E daí que eles foram assim antes, durante e depois do tempo de sua escrita? E daí? Apesar de tudo isso, a sua escrita alcançou o meu tempo, significou e ressignificou-se, floresceu em outras escritas e vidas. Nós somos sementes, Carolina. Os versos e as palavras que você deixou continuam germinando em outras vozes e escritas pretas. Nós florescemos umas nas outras, alimentadas por uma raiz que atravessou oceanos. As suas palavras, sua escrita, o poder dos teus versos, ecoados por vozes de outras mulheres no meu tempo, seguem a juntar as folhas espalhadas pelo vento, pela escravidão. Então, sigamos, Bitita! Enquanto eles menosprezam as nossas vidas ao gritarem “e daí?”, nós, resistentes como sempre, florescemos e seguimos rompendo os burburinhos lá fora com a nossa escrita, com a nossa voz.


Com carinho,


Rosângela Lopes da Silva.


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