1 de maio de 2020

A grande insônia de Macondo

Renata Queiroz Dutra


Arte de Dragan Bibin

Estar em quarentena não apenas nos impõe restrições, mas também pequenos alentos: o meu foi reler Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Sempre costumo achar muitas repostas e analogias na narrativa fantástica de Márquez. Dessa vez, me chamou atenção que Macondo também foi acometida por uma epidemia altamente contagiosa, cujo principal sintoma era colocar os seus habitantes permanentemente despertos.

Diferente das insônias comuns, a insônia de Macondo não deixava esgotados seus habitantes; pelo contrário, ficavam cada vez mais dispostos e produtivos. Entretanto, não dormir os fazia, aos poucos, esquecer. Das palavras, dos sentidos. Então começaram a usar a astuta estratégia de etiquetar as coisas, para que não esquecessem seus nomes. Mas em pouco tempo já não bastava etiquetar os objetos com os nomes, porque logo em seguida se esqueciam de sua utilidade, daí as etiquetas precisavam crescer, para indicar o nome e a função de cada coisa. Por sorte, a insônia dava a eles o tempo necessário para produzir tais defesas contra a perda da memória.

No Brasil hoje padecemos de duas doenças igualmente contagiosas: a pandemia do Covid-19, que assola o mundo e aqui caminha aceleradamente em razão do nosso desgoverno, e uma outra epidemia, cujo nome desconheço, mas que também é marcada pelo esquecimento. Assim como em Macondo, esse esquecimento envolve objetos e suas funções. Por exemplo, temos a sorte de ter nas nossas constituições impressas um título estampado na capa, o que não nos assegura que lembremos para que serve uma constituição ou então que soe inadmissível que o presidente se considere a constituição.

Também temos tido dificuldades com palavras com sentidos e possibilidades de uso múltiplos, que demandam não apenas o esforço de lê-las, mas também de interpretá-las (às vezes por mais que 20 páginas): decoro, impeachment, crime de responsabilidade, impessoalidade, estado de direito, dignidade, democracia.
Outros esquecimentos podem alcançar comportamentos, formas de agir diante da dor, da morte, da tragédia, por exemplo. Formas de agir diante de um crime televisionado em rede nacional igualmente. As regras de conduta parecem mais difíceis de serem lembradas: diante do desconcerto da reação indevida por aquele que esqueceu, às vezes sobrevêm risos, mais inadequados ainda: tipo, um sujeito faz piada com a morte e o outro gargalha, constrangedoramente. É muito esquecimento de uma única vez.

O esquecimento alcança até atitudes supostamente inatas ou instintivas, de autopreservação, como evitar a morte, não se aglomerar em meio a uma pandemia quando se pertence ao grupo de risco e o vírus é transmissível pelo ar. O sujeito esquece que é mortal, esquece a advertência sanitária, esquece porque a advertência sanitária advinda de cientistas deve ser creditada, esquece a diferença entre a ciência e a opinião de um imbecil.

O esquecimento atinge significados profundos em uma dimensão coletiva: leva a esquecer a história e suas infinitas possibilidades de repetição. É tanto esquecimento, como sintoma e como norma, que até foi vetada integralmente a lei que reconhecia a profissão de historiador. Justo quando vivemos um momento histórico de grandes proporções, somos convidados, patologicamente, a esquecer.
Em Macondo a epidemia acabou quando o velho cigano Melquíades chegou ao povoado com uma poção que curou a todos da insônia. Na sutileza da narrativa de García Márquez, ao voltar a dormir (e a sonhar) os habitantes de Macondo também voltam a lembrar.

Se tivesse a sorte de ser uma Buendía e, assim, poder ver o velho Melquíades, pediria umas 30 milhões de doses dessa poção. E pediria – sem querer abusar, mas aproveitando a oportunidade – um elixir que trouxesse aos doentes daqui um pouco de vergonha por terem participado da gênese dessa epidemia, por ação ou omissão, ou por continuarem participando. Pediria também algum antídoto contra a ganância dos que persistem vendo queda dos lucros enquanto empilhamos corpos e que, fingindo esquecer das vidas dos outros, assumem o risco de perdê-las para que o comércio reabra. Pediria, sobretudo, uma pílula contra indiferença, que não permitisse nem ao pior dos brasileiros, diante da confirmação devastadora de 5.000 mortes, responder, em rede nacional: “e daí?”


*Renata Dutra é professora de Direito do Trabalho na UnB.

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