Renata Queiroz Dutra
Arte de Dragan Bibin |
Estar em quarentena não
apenas nos impõe restrições, mas também pequenos alentos: o meu foi reler Cem
anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Sempre costumo achar muitas
repostas e analogias na narrativa fantástica de Márquez. Dessa vez, me chamou
atenção que Macondo também foi acometida por uma epidemia altamente contagiosa,
cujo principal sintoma era colocar os seus habitantes permanentemente
despertos.
Diferente das insônias
comuns, a insônia de Macondo não deixava esgotados seus habitantes; pelo
contrário, ficavam cada vez mais dispostos e produtivos. Entretanto, não dormir
os fazia, aos poucos, esquecer. Das palavras, dos sentidos. Então começaram a
usar a astuta estratégia de etiquetar as coisas, para que não esquecessem seus
nomes. Mas em pouco tempo já não bastava etiquetar os objetos com os nomes,
porque logo em seguida se esqueciam de sua utilidade, daí as etiquetas precisavam
crescer, para indicar o nome e a função de cada coisa. Por sorte, a insônia
dava a eles o tempo necessário para produzir tais defesas contra a perda da
memória.
No Brasil hoje
padecemos de duas doenças igualmente contagiosas: a pandemia do Covid-19, que
assola o mundo e aqui caminha aceleradamente em razão do nosso desgoverno, e
uma outra epidemia, cujo nome desconheço, mas que também é marcada pelo
esquecimento. Assim como em Macondo, esse esquecimento envolve objetos e suas
funções. Por exemplo, temos a sorte de ter nas nossas constituições impressas
um título estampado na capa, o que não nos assegura que lembremos para que
serve uma constituição ou então que soe inadmissível que o presidente se
considere a constituição.
Também temos tido
dificuldades com palavras com sentidos e possibilidades de uso múltiplos, que
demandam não apenas o esforço de lê-las, mas também de interpretá-las (às vezes
por mais que 20 páginas): decoro, impeachment, crime de responsabilidade,
impessoalidade, estado de direito, dignidade, democracia.
Outros esquecimentos
podem alcançar comportamentos, formas de agir diante da dor, da morte, da
tragédia, por exemplo. Formas de agir diante de um crime televisionado em rede
nacional igualmente. As regras de conduta parecem mais difíceis de serem
lembradas: diante do desconcerto da reação indevida por aquele que esqueceu, às
vezes sobrevêm risos, mais inadequados ainda: tipo, um sujeito faz piada com a
morte e o outro gargalha, constrangedoramente. É muito esquecimento de uma
única vez.
O esquecimento alcança
até atitudes supostamente inatas ou instintivas, de autopreservação, como
evitar a morte, não se aglomerar em meio a uma pandemia quando se pertence ao
grupo de risco e o vírus é transmissível pelo ar. O sujeito esquece que é
mortal, esquece a advertência sanitária, esquece porque a advertência sanitária
advinda de cientistas deve ser creditada, esquece a diferença entre a ciência e
a opinião de um imbecil.
O esquecimento atinge
significados profundos em uma dimensão coletiva: leva a esquecer a história e
suas infinitas possibilidades de repetição. É tanto esquecimento, como sintoma
e como norma, que até foi vetada integralmente a lei que reconhecia a profissão
de historiador. Justo quando vivemos um momento histórico de grandes proporções,
somos convidados, patologicamente, a esquecer.
Em Macondo a epidemia
acabou quando o velho cigano Melquíades chegou ao povoado com uma poção que curou
a todos da insônia. Na sutileza da narrativa de García Márquez, ao voltar a
dormir (e a sonhar) os habitantes de Macondo também voltam a lembrar.
Se tivesse a sorte de
ser uma Buendía e, assim, poder ver o velho Melquíades, pediria umas 30 milhões
de doses dessa poção. E pediria – sem querer abusar, mas aproveitando a
oportunidade – um elixir que trouxesse aos doentes daqui um pouco de vergonha por
terem participado da gênese dessa epidemia, por ação ou omissão, ou por
continuarem participando. Pediria também algum antídoto contra a ganância dos
que persistem vendo queda dos lucros enquanto empilhamos corpos e que, fingindo
esquecer das vidas dos outros, assumem o risco de perdê-las para que o comércio
reabra. Pediria, sobretudo, uma pílula contra indiferença, que não permitisse nem
ao pior dos brasileiros, diante da confirmação devastadora de 5.000 mortes,
responder, em rede nacional: “e daí?”
*Renata Dutra é professora de Direito do Trabalho na UnB.
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