Virgínia Maria Vasconcelos Leal
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the Wave off Kanagawa (Kanagawa oki nami ura), de Katsushika Hokusai |
A
história da literatura com temática lésbica no Brasil é também a história da
lesbofobia. Se pensarmos que a lesbofobia adiciona dois preconceitos — às mulheres
e aos homossexuais em geral —, a representação desse grupo social é bem minorizada.
É fato que a presença de personagens e escritoras lésbicas no Brasil está
crescendo, haja vista os próprios movimentos pelos direitos das pessoas lésbicas,
gays, bissexuais, transexuais e transgêneros. Não à toa há tanta reação na onda
conservadora que assola o Brasil. Se a escritora Cassandra Rios, que produziu
romances bastante populares desde os anos 40 até os anos 90 do século passado,
era figura isolada no cenário brasileiro, agora, mais e mais estudos sobre ela
começam a aparecer, assim como outras vozes de temática e/ou autoria lésbica
também se consolidam.
É claro que a definição do que seria
uma “lésbica” perpassa, inevitavelmente, pela complexidade da identidade
feminina ou de gênero. As discussões nos estudos feministas e do gênero levaram
a tendências várias que podem ser resumidas, em um primeiro momento, e para
efeitos explanatórios, entre noções essencialistas e não essencialistas da
“identidade” ou da “mulher”, ou entre feminismos da “diferença” e da
“igualdade”. Lembremos que as mulheres lésbicas e negras foram as primeiras a
questionar a ideia de um feminismo monolítico, abrindo mais ainda o leque de
questionamentos. Uma das possibilidades para se distanciar do essencialismo
identitário seria pensar mais em localizações e relações entre grupos.
Poder-se-ia dizer que as “lésbicas” não constituem um grupo uniforme, em
princípio, não tem uma “natureza” em comum, mas formam um grupo relacional e
flexível, como defende Iris Young, em outro trabalho, denominado “Gênero como
serialidade” (YOUNG, 2000). Para ela, são as relações — seja entre grupos, seja
entre indivíduos — que constituem os grupos sociais. Pensar, então, uma
construção comum de uma representação de gênero para, por exemplo, um grupo de
escritoras e/ou leitoras lésbicas seria pensá-las como um grupo, considerando suas
trajetórias como indivíduos que, por conseguinte, geram obras também
individualizadas. Para Young, as estruturas de gênero não definem atributos
específicos para as mulheres, mas os fatos sociais e materiais com os quais
cada indivíduo deve lidar. Cada pessoa, subjetiva e empiricamente, relaciona-se
com as estruturas de gênero de forma variável (YOUNG, 1997, p. 30). Assim, “nenhuma identidade de uma mulher individual, então,
irá escapar das marcas de gênero, mas como o gênero caracteriza a sua vida é
próprio dela” (YOUNG, 1997, p. 33).
Experiências literárias brasileiras
e contemporâneas de autoria feminina têm questionado, de forma distinta, a
matriz de inteligibilidade de gênero, nos termos de Judith Butler, que
trabalha, tradicionalmente, com ordens binárias, sendo uma das suas marcas o
desejo heterossexual. Pode-se citar as obras de Elvira Vigna, Deixei ele lá e vim (2006) e Coisas que os homens não entendem
(2002), autora que se destacou com suas personagens em constantes movimentos
entre máscaras, identidades e corpos. Ou mesmo Cíntia Moscovich que, em
romances como Duas Iguais (1998) e em
contos como “Mi Buenos Aires Querido” (2002) e “À memória das coisas afastadas”
(2002), tem revisto preconceitos em relações aos papéis tradicionais das
identidades de gênero. Escritoras publicadas por editoras centrais e com obras
consolidadas também trabalharam a temática lésbica, como Lygia Fagundes Telles,
Myriam Campello, Fernanda Young, Stella Florence, Cecília Costa e Heloísa
Seixas, em narrativas que mostram, por vezes, a impossibilidade de uma
satisfação amorosa. Ou mesmo experiências mais militantes, como todas as obras
das Editora Malagueta (já extinta) e da Vira Letra, com propostas de publicar livros
de lésbicas. Outra produção relevante vem das escritoras publicadas pela
editora GLS, como Ana Paula El-Jaick, Fátima Mesquita e Lúcia Facco. Também no
campo da autoria literária feminina negra, Conceição Evaristo traz o conto
“Isaltina Campo Belo”, que está em seu livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), no qual são discutidas
questões de raça, identidade de gênero, sexual, violência, maternidade e amor. Também
é importante citar experiências mais recentes e relevantes como o coletivo
editorial Padê e o portal literatura.lgbt.com. Enfim,
quaisquer listas de nomes e projetos nunca seriam definitivos, haja vista
tantos trabalhos novos que aparecem a cada dia.
Para essa discussão, gostaria de
destacar Carol Bensimon, com seu romance Todos
nós que adorávamos caubóis (2013). Nele, a narradora Cora, em ambientações
sucessivas durante uma jornada de carro, discorre sobre sua própria identidade
de gênero e sexual. A obra permite analisar diversos posicionamentos
identitários de suas personagens principais. Tanto a narradora Cora, quanto a
sua amiga/namorada Julia, deslocam-se espacialmente em uma viagem no interior
do Brasil, mas não só. Para quem não conhece a narrativa, é importante
assinalar que, no romance, as duas jovens empreendem uma viagem de carro pelo
interior do Rio Grande do Sul. Nessa viagem, são várias situações de conflitos
e asperezas entre elas, entre os padrões heterossexistas e até de autoaceitação
das próprias identidades. Se o final, no âmbito cronologicamente linear,
acontece com Julia chegando em Paris para visitar Cora, não há certezas que
ficarão “seguras” em um final feliz previsível de um filme clichê romântico. Os
momentos e as palavras finais do romance não ocorrem em Paris, e sim nas
lembranças felizes do namoro juvenil quando Julia ficara assistindo televisão
no quarto de Cora:
A TV
tinha ficado ligada no mudo, era um filme de bangue-bangue cheios de moscas e
barbas por fazer, mas Julia só havia visto os quinze minutos finais. Ela disse
que adorava caubóis. Agora Julia estava esticada na minha cama, de maneira que
parecia não ter sobrado muito espaço para mim. Tirei a roupa, coloquei uma
camiseta velha e tentei me acomodar como
pude (grifo meu). O filme ainda estava bem longe de terminar. Fiquei
assistindo. Um duelo. Um romance. Um deserto. Aquela menina que dormia ao meu
lado. Todos nós adorávamos caubóis. (Bensimon, 2013, p.190)
Assim como o filme “longe de
terminar”, as últimas palavras revelam seu título e a circularidade do processo
infinito de aprendizagem e de deslocamentos identitários de duas personagens
contemporâneas em viagens e duelos contínuos, mas que, talvez, só estejam
simplesmente querendo alguém ao lado, a ocupar o espaço que as deixe
minimamente confortáveis, mesmo que em ambientes hostis às suas identidades
negociadas.
Pensemos, então, em subjetividades
encarnadas e sexuadas no feminino — uso aqui um termo e discussão de Rosi
Braidotti (2018) — que nunca ocuparam historicamente uma posição privilegiada e
confortável — e que podem trazer uma “positividade que não significa aceitação
cega ou passividade acrítica. Empenhar-se na frente da positividade quer dizer
catalisar a construção de contextos nos quais seja possível transformar as
paixões e os impulsos negativos no ‘aqui e agora’ das relações concretas”.
Subjetividades também encarnadas literariamente, negociando seus desconfortos,
ao expressar seus afetos, por exemplo, na “família” (assim no singular), como o
fez Natália Borges Polesso que, com seu livro Amora, recebeu o
Prêmio Jabuti de 2016. Seus contos são protagonizados por mulheres, com
temática homoerótica, em uma diversidade inclusive geracional. Nas narrativas
de Amora, esses afetos, femininos
desde seu título, são perpassados por diversos olhares. Nelas, as protagonistas
vivem seus amores por outras mulheres, não só no âmbito da parceria erótica
e/ou amorosa mas também por outras relações tão importantes, como as de
amizade, de coleguismo, de família, de vizinhança ou mesmo de fé e religião
compartilhadas. Seu livro ganha força quando aparecem representações pouco
frequentes na literatura brasileira contemporânea de temática lésbica. Mulheres
mais velhas e acostumadas a “não incomodar”, como é o caso do conto “As tias”.
A história delas, Tia Alvina e Tia Leci, é contada pela sobrinha que acompanha,
de forma solidária, amorosa e curiosa, a relação de sessenta anos dessas
mulheres que se conheceram em um convento e resolveram compartilhar a vida. A
família de uma delas, que nunca fala abertamente sobre as duas, que torce a
“cara” com perguntas diretas, convive com certa tolerância. Esse olhar que
acompanha as relações entre mulheres maduras dentro da família também está no
conto, cujo título é também a oração de abertura da narrativa: “Vó, a senhora é
lésbica?” A pergunta direta do primo, em sua espontaneidade de criança,
desencadeia lembranças em Joana, da relação da avó com a sua companheira
Carolina, chamada de “tia” pelas crianças da família. Joana, adolescente que se
relaciona com Taís, narra: “Pensei na
minha insegurança de contar isso à minha família, pensei em todos os colegas e
professores que já sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da
tia Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis saber mais,
eu quis saber tudo, mas não consegui perguntar”. Sim, esse foi o conto cujo trecho foi objeto
de questão no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2018 e que “causou”
tanta discussão, ataques e apoios à escritora. Só esse trecho não traz toda a
sua construção baseada nas rememorações da narradora, nas cenas familiares com
a avó contadora de histórias. Ao final, a avó responde sim aos netos. E, de
certa forma, fortalece Joana que sabe que tem mais facilidades para viver sua
história amorosa que sua avó, por conta das conquistas políticas pela
visibilidade das identidades sexuais minoritárias.
Sara
Ahmed, em sua obra La politica cultural de
las emociones (2015), afirma que “as emoções podem nos ligar às próprias condições
da nossa subordinação, uma vez que elas nos mostram como o poder molda a
própria superfície dos corpos e dos mundos”. Sara Ahmed discorre que a
orientação sexual, seja ela qual for, está associada, é claro, a muitas emoções
e articula também a maneira pela qual podemos entrar em diferentes espaços
sociais. Há afetos positivos e negativos, custos, prazeres e satisfações
associados a esse estar no mundo, vinculados a certas direções que nossa forma
de amor e de viver pode assumir. Para ela, “a heteronormatividade funciona como
uma forma de conforto público ao permitir que os corpos se estendam a espaços
que já adotaram sua forma” (AHMED, 2015, p. 228, tradução minha). Se os
sujeitos não normativos ficam sem direção, incomodados, ao enfrentar os
“confortos” da heterossexualidade, esses mesmos sujeitos “incomodam” quando,
por exemplo, demonstram seus afetos em espaços sociais não permitidos. Logo
lhes é pedido que não incomodem. Sara Ahmed chama isso de “fetichismo de
sentimento”. Assim como o capitalismo tende a esconder o trabalho de quem nos
proporciona conforto, como trabalhadores/as da limpeza, por exemplo, no campo
dos sentimentos e laços de intimidade também: para alguém se sentir cômodo,
outro deve trabalhar muito, por exemplo, para não mostrar seu afeto, ou, em
certos casos, ser o transgressor/a full
time. Algo que toma tempo e, muito vezes, é social, psíquica e
materialmente impossível para muitas pessoas e grupos, que não têm capital
econômico e cultural suficiente para sustentar tal posição, como explica Ahmed.
Para ela, a idealização da família faz-se também por meio de narrativas de
ameaça e insegurança, ou seja, de modos de vida que vão “incomodar” (incrível
como essa questão está atualíssima em relação ao Brasil, a exemplo do recém-criado
Ministério da Mulher e da Família (assim no singular) e dos Direitos Humanos).
Daí, talvez, se explique tanto desconforto causado por essa e outras narrativas
que trazem, simplesmente, uma forma de amar.
Parece
que representar relações lésbicas sempre traz, na maioria das vezes, uma sombra
de lesbofobia. Então para que continuar a incomodar? Parece adequado trazer as
provocações e respostas de Rosi Braidotti (2015). Para que tentar positivar,
nesses tempos de intolerância, nosso “fracasso” conjuntural em abrigar identidades
diversas? O que isso mesmo significa para nossos futuros sustentáveis, a serem
construídos coletivamente e com a esperança ainda, apesar de tantos números e
notícias aterradoras de retrocessos? Para
que? Mais uma vez, recorro às palavras de Rosi Braidotti, ao enfatizar que
devemos manter as esperanças de mudança e de práticas políticas de resistência,
tendo em vista, sempre, nossos interlocutores e interlocutoras mais
importantes: os que virão depois de nós.
Sigamos, então, com as palavras dela a respeito de seu projeto de ética
afirmadora de futuros sustentáveis: “Por que continuar com este projeto? Por
nenhuma razão em particular. Aqui a razão não tem nada a ver. Trata-se de atuar
pelo gosto de fazê-lo, para ser dignos de nosso tempo resistindo ao presente,
por amor ao mundo” (Braidotti, 2018, p.146).
Referências bibliográficas
AHMED, Sara. La
politica cultural de las emociones. Trad. Cecilia Olivares Mansuy. México:
Unam/Programa Universitário de Estudios de Género, 2015.
BAIDROTTI, Rosi. Por
uma política afirmativa: Itinerarios éticos. Trad. de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa,
2018.
BENSIMON, Carol. Todos nós adorávamos caubóis. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013.
POLESSO, Natália Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015.
YOUNG, Iris Marion. “O gênero como serialidade: pensar as
mulheres como um coletivo social.” Trad. de Laura Fonseca e Marinela Freitas. EX AEQUO (Revista da Associação
Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres) nº 8, janeiro de 2004. pp.113-139.
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