Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva
Mônica Horta Azeredo
Uma fachada para Mondrian, de Devair Antônio Fiorotti |
Em seus textos autobiográficos, as
escritoras Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado buscavam, ao falar de
si, alcançar a comunicação com o Outro. Suas escritas situam-se, assim, como
espaço de interação entre interlocutores, o que é, segundo postula o filósofo
Mikhail Bakhtin (1997), o princípio fundador da linguagem.
Um diálogo entre as produções dessas
duas autoras justifica-se pelos aspectos éticos e estéticos em comum de suas
obras e contextos de vida. Suas palavras circulam em dispositivos de poder e
fazem falar uma parcela da sociedade, de uma classe social, de um grupo de
indivíduos que, de outro modo, não teriam reconhecida sua existência teimosa e
lírica frente aos cânones literários, por vezes tão impermeáveis e surdos.
A escrita de si nas duas autoras, a
despeito das acusações de egocêntricas e egoístas, contempla um universo mais
amplo que apenas seus mundos particulares. Como escritoras, criam uma fala de
si que se volta para o outro e também para a escritura, dialogando com a
sociedade e com a tradição literária brasileira.
Da favela, Carolina Maria de Jesus fala de si
Negra, pobre, favelada, catadora de
papel e outros materiais recicláveis, mãe de três filhos, criando-os sozinha, a
escritora Carolina Maria de Jesus viveu em condições que poderiam tê-la levado
a sucumbir às forças opressoras que faziam dela e de outros na mesma condição, não
pessoas, não cidadãos, indivíduos desimportantes para a sociedade brasileira de
meados do século passado. Em 1958, seu destino começa a mudar, com o impacto da
publicação de reportagens sobre seus escritos, seguidas, em 1960, da publicação
de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Escritora por vocação, ela buscou representar sua vida e trabalho na
hoje extinta favela paulista do Canindé por meio da palavra escrita. Escrevia
ininterruptamente e até mesmo quando a fome, o cansaço, a miséria teimavam em
impedi-la. De discurso individualizado, restrito, os escritos passaram a ter status
de diálogo com o social.
O livro Quarto de despejo, um diário, é um entre a numerosa produção de
Carolina Maria de Jesus; e hoje, traduzido em pelo menos 13 idiomas e vendido
em mais de 40 países, serve como referencial do identitário nacional. Quando
foi “descoberta” por Audálio Dantas, a escritora contava com mais de 20
cadernos manuscritos e cuidadosamente armazenados, à espera de um golpe de
sorte que pudesse tirá-la, e seus filhos, da miséria e obscuridade, mas
principalmente libertar a fala de si que recheava aquelas páginas encardidas.
Carolina usa o diário como espaço de
confissão e na condição de objeto da esperança. Ela acredita que escreve para
alguém especial, um interlocutor ideal. A esse leitor imaginário, ela reserva a
tarefa de ser também o seu redentor. Alguém com poderes especiais para alçá-la
da miséria e da dor em situação de silêncio absoluto. O diário é para ela o
objeto que lhe garante continuar seu percurso sem desistir da luta, como relata
ter sido tentada a fazer em diversas ocasiões. Assim como seus filhos, por quem
vive e trabalha sem se entregar ao desespero, seus escritos têm a função de
ancorá-la à dolorosa realidade e de lhe garantir a coragem para permanecer na
lida, no diálogo constante com a adversidade.
A escrita de si é elemento emancipador
para as angústias pessoais, ao mesmo tempo em que se traduz em texto de
denúncia das mazelas que a atingem e aos que estão em semelhantes condições.
Seu discurso contextualiza sua fala e pereniza sua condição, sua história, sua
luta, por meio de um recorte peculiar do que pode ser entendido como parte da
sociedade brasileira onde esteve inserida. Seu discurso nega, portanto, a noção
de que a fala de si acaba por negligenciar as “forças sociais impessoais”,
ideia difundida pelo crítico russo Dmitry Pisarev (apud HOLQUIST, 2010,
p. 40).
Ao falar de si, Carolina Maria de Jesus
debruça-se sobre o sofrimento do outro, ao lado de quem ela opta por ficar do
ponto de vista político, como escreve em diversas passagens. No relato em 22 de
maio de 1958, olha para fora de si e encontra o outro, em situação de miséria
que, assim como ela, sofre por causa dos descaminhos da política social
instituída no Brasil:
(...) Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São
Paulo que sofre mais do que eu. (...) Para não ver os meus filhos passar fome
fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas
deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se
desenrola. A ironia com que são tratados os pobres (...). (JESUS, 2004, p. 37)[1].
Carolina não se priva da autocrítica e
da crítica ao social que a circunda. Lúcida e curiosamente analisa, no dia 21
de maio de 1958, o Brasil do seu tempo e conclui que
(...) Quem deve dirigir é quem tem a capacidade.
Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso pais é quem tem dinheiro,
quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria
revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o
braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores (JESUS,
2004, p. 35).
A escrita de si é a fala da denúncia,
do grito de indignação, do pedido de socorro, buscando se libertar do universo
da dor, da miséria e do sofrimento, mas principalmente do silêncio.
Carolina descreve-se como leitora voraz
e refere-se à leitura como forma de enobrecimento, como caminho para o
desenvolvimento intelectual, ou como entretenimento. A literatura é
referenciada em cerca de catorze passagens, incluindo o registro de poemas
escritos por Carolina e a citação de escritores, como Casemiro de Abreu. A
própria descrição de sua rotina é feita, em várias passagens, de forma poética,
como no dia 13 de maio de 1958: “A noite está tépida. O céu já está salpicado
de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para
fazer um vestido (...)” (JESUS, 2004, p. 28).
Registros como “passei a tarde
escrevendo” (JESUS, 2004, p. 22); “nunca vi uma preta gostar tanto de
livros quanto você” (id., p. 23); “eu estava inspirada e os versos eram
bonitos” (id., p. 26), mostram que de um lado está o gosto
pela escrita e a leitura de vários gêneros literários, de outro a necessidade
de sobreviver à fome. Em tempos fáceis e difíceis, ela relata que o mais
importante é escrever.
E tamanha importância tem a escrita
também para Maura Lopes Cançado.
Do hospício, a escrita de si em Maura Lopes Cançado
Branca, rica, jornalista, herdeira de
terras e filha predileta do pai fazendeiro, Maura Lopes Cançado é autora de Hospício é Deus, publicado em 1965. Escrito
em forma de diário, a obra cobre o período de 25 de outubro de 1959 a 7 de
março de 1960. A narradora-personagem encontra-se na condição de interna no
Gustavo Riedel, hospital psiquiátrico situado no bairro do Engenho de Dentro,
no Rio de Janeiro. Até o momento da narração, é a terceira vez que ela se
interna nesse tipo de instituição, agora a seu pedido e com conivência do
médico.
Ainda que o diário seja autobiográfico,
isso não contraria a afirmação de que o eu do discurso constitui uma
ficcionalização do eu da escritora, isto é, a autora cria a personagem Maura
Lopes Cançado. Além da radiografia do sistema psiquiátrico que é possível fazer
a partir da visão da narradora-internada, o diário reconstitui a trajetória de
uma carreira de doente mental, nos termos do antropólogo social Erving Goffman
(2018), registrando a dor da solidão, da culpa, da vergonha, do abandono e do
medo, presentes na experiência solitária e singular da loucura.
Uma vez adaptada ao cotidiano do
hospício, a autora ergue-se firme em seu propósito de denunciar a realidade
miserável de uma categoria excluída de todos os processos e dinâmicas sociais,
e o faz tanto na descrição subjetiva de suas angústias inerentes ao dia a dia
no espaço asilar quanto na história de vida e na fala de tantas personagens ali
esquecidas. Ao expor seu desconforto no mundo trágico da reclusão, a narradora
infere que a condição de louco e o fantasma da loucura prometem o grau máximo
de marginalização social. Isso porque a loucura pode atingir o ser humano
naquilo em que, a princípio, todos são de fato iguais – o juízo, o pensamento,
a razão – e arrastá-los à perda de si mesmos.
Em toda a narrativa persiste o diálogo
entre sua condição de escritora, o contexto em que se formou e viveu, e a
realidade do sistema psiquiátrico. Conforme registra, o hospício, até mesmo
pelo seu aspecto físico, é um espaço que segrega a miséria e pobreza da maior
parte da população brasileira acometida de transtornos psíquicos, mas funciona
também como um espelho da sociedade, no qual se podem mirar representantes das
distintas classes sociais, igualados pela insanidade:
Dificilmente alguma família está em condições de
manter, por muitos anos, um doente internado em sanatórios dêsse tipo. Daí
encontrarmos pessoas de alto nível social, cultural, até artístico, em meio a
indigentes para os quais o hospital oferece confôrto nunca antes experimentado
(CANÇADO, 1965, p. 71).
A escrita tem papel crucial nessa
jornada de autoconhecimento, traduzindo-se como uma bem-sucedida experiência
literária de enfrentamento da angústia e depressão. Posicionando-se no espaço
do hospício e como interna, mas sobretudo como alguém que deseja explorar o tema
e suas diferentes implicações, converte as páginas do diário em um espaço de
discussão sobre o fenômeno da loucura, problematizando os vários sentidos do
conceito, seus aspectos filosóficos e culturais e a hierarquização segundo o
estado de arruinamento psíquico.
Assim como Carolina, Maura se reafirma
como escritora que precisa cuidar de sua literatura e que conhece a força
literária de sua escrita. Formula conceitos sobre estética, moral, ética, e
registra suas reflexões acerca da criação e da crítica literária, de obras e
autores consagrados. Invoca fatos literários e artísticos da época. Nomes da
literatura brasileira, como Assis Brasil, Ferreira Gullar, Maria Alice Barroso
e outros participantes do movimento literário concretista, tornam-se personagens
de sua narrativa, registrando seu convívio intenso com o mundo literário. E o
diário é o espaço sagrado de que precisa cuidar: “meu diário é o que há de mais
importante para mim. Levanto-me da cama para escrever a qualquer hora, escrevo
páginas e páginas – depois rasgo mais da metade (...)” (CANÇADO, 1965, p. 260).
O trabalho com a palavra impõe-se como
uma exigência interior, de modo que sua maior luta consiste em equilibrar esse
movimento ao mesmo tempo de entrega – “Meu conto ‘O Sofredor do Ver’ está me
custando. (...) É o conto que mais tem exigido de mim. Considero-o muito
cerebral. Talvez seja minha obra prima” (CANÇADO, 1965, p. 86-87) –
e de resistência –“Até quando seria escritora em potencial? Até quando, se não
escrevo? Apenas um futuro me acenando brilhante? (...) Esta consciência me
mata. Não quero nada, não desejo nada” (id., p. 260).
Maura admite sua contumácia em falar de
si própria; e sua escrita se volta obsessivamente para o eu. Mas mesmo que se
afirme como egocêntrica, megalomaníaca e doente do eu, ela se trai ao
verbalizar o desejo de homenagear cada interna com um conto, desde que isso
pudesse melhorar um pouco a condição de cada uma, como o fez com Alda, no seu Introdução a Alda, o qual despertou a
atenção de todos para o drama da colega. Sua consciência da condição de
escritora emerge nessa autodeterminação de escrever por aqueles que não
escrevem, falar pelos que não falam, enfim, tentar reconstituir um pouco
daquela realidade que, pensa ela, “só o cinema será capaz de mostrar” (CANÇADO,
1965, p. 275).
A importância das obras de Carolina
Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado não se restringe ao seu valor estético e
literário. Revestem-se de sentido político, pois extrapolaram o espaço da
subjetividade e atingiram o campo da cultura, auxiliando o leitor na
compreensão de si mesmo e de sua sociedade. No diálogo com a tradição literária
brasileira, essas obras vieram causar um estranhamento que acabaram por abrir
espaço não só para as suas falas, mas para outras vozes que, da mesma forma,
estavam e permaneceriam silentes.
Carolina e Maura falam na condição de
personagens de si mesmas, vivendo e construindo suas narrativas-limites, mas
sobretudo sabem da força de sua escrita e arriscam-se a afirmar o valor da
narrativa e seu poder transformador, buscando sua emancipação dos sistemas
coercitivos que as mantinham prisioneiras da miséria e da loucura,
respectivamente. No entanto, ao falarem de si, impulsionadas pelo desejo de
gritar suas dores ao mundo, elas se debruçam sobre o sofrimento do outro.
Conscientes de seu papel, de sua opção e responsabilidade como escritoras,
reconhecem que essa sua condição exige que deem conta, em um âmbito mais amplo,
do sofrimento humano, dos meandros e dinâmicas de funcionamento da vida nos
limites, dos arredores da favela e dos muros do hospício.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética
da criação verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
CANÇADO, Maura
Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.
GOFFMAN, Erving. Manicômios,
prisões e conventos. 9. ed. Trad. de Dante Moreira Leite. São Paulo:
Perspectiva, 2018.
HOLQUIST, Michael.
Dialogismo e estética. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor
(Orgs.). Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.
JESUS, Carolina
Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed. São Paulo:
Ática, 2004.
[1]
Assim como o jornalista e editor do livro
QD, Audálio Dantas, optamos por manter o texto fiel à sua escrita original,
embora essa seja ainda uma questão que suscita posicionamentos contrários
dentro e fora da academia.
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