24 de agosto de 2019

A produção literária brasileira sobre a ditadura: uma breve lista



Berttoni Licarião

Anomalie 03, de Eric Lacombe

Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.
José Saramago.


Vez ou outra, preciso me apresentar em uma roda de conversa e dizer que sou um pesquisador de literatura ocupado com a memória da ditadura na ficção contemporânea brasileira. As reações que recebo são as mais variadas e renderiam, elas mesmas, uma longa tese. No amplo espectro das respostas mais comuns, há, naturalmente, num primeiro extremo, aqueles que reconhecem a importância do tema e me parabenizam pela escolha. Em seguida, bem no meio dessa régua imaginária, encontra-se o grande conglomerado dos “incrédulos desinformados”, que ora perguntam se tem mesmo alguma coisa para se estudar, ora preferem encarar um silêncio constrangedor, levemente arrependidos da pergunta. Por fim, localizadas num ponto diametralmente oposto ao primeiro grupo concentram-se as pessoas que mais me preocupam: são as que sugerem, quase entre dentes, meu “desperdício de tempo” com “um tema superado”, isso quando não deixam escapar um alarmante riso negacionista.

A ditadura não é “uma página virada da nossa história”!

Essa percepção da ditadura civil-militar brasileira como página virada de nossa história não é uma onda recente e se alimenta, principalmente, da ausência de políticas da memória efetivadas a nível institucional. Frente a normatização do esquecimento, as esferas culturais reagem como podem. Para ficarmos apenas no campo da literatura, textos literários sobre a ditadura brasileira não apenas existem como são abundantes, enchem bibliotecas, recebem prêmios, são discutidos e estudados nas universidades. No entanto, por falhas estruturais em nossa transição para a democracia, eles carecem de capilaridade e rapidamente caem no ostracismo dos livros que não ocupam as listas de mais vendidos. As exceções existem, ainda que raras, como foi o caso de O irmão alemão (2014), de Chico Buarque, autor que sabemos ser capaz de transformar em best-seller até mesmo um livro de receitas com 150 maneiras de preparar chuchu.  
O silêncio que muitas vezes sufoca ficções e relatos sobre a ditadura é um projeto de longa data. Após assumir o controle do país em 1979, o ditador João Batista Figueiredo enviou ao congresso, sob enorme pressão de vários setores da sociedade civil, o projeto de lei que concedia anistia aos crimes cometidos durante os anos de exceção. Na época, o militar declarou: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento [...]. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco.”[1] Com efeito, o desejo do ditador fez-se lei, e o trauma da ditadura foi varrido para debaixo do tapete, ao invés de ser encarado coletivamente.
A falta de elaboração coletiva de um período em que crimes contra a humanidade foram cometidos por um Estado autoritário gera incompreensão e mal-estar social, e suas consequências podem ser sentidas ainda hoje. Quem aí tentar enxergar as filigranas de nosso tecido democrático, conseguirá perceber o quanto a Constituição Cidadã de 1988 guarda trechos inteiros da Constituição autoritária de 1967 (e sua emenda de 1969). Como nossa lei da Anistia, de 1979, apesar de não prever o perdão para torturadores (porque crimes de tortura não são anistiáveis) foi considerada como valendo para todos e prossegue garantindo impunidade a quem torturou, matou e desapareceu aqueles que se opuseram ao regime. Que o nosso direito à verdade e à justiça — condição para o funcionamento de uma democracia — tem sido constantemente negado pelas Forças Armadas que mantém escondidos da sociedade os arquivos da ditadura. E que pesquisas da última década[2] comprovam que o uso da tortura e da violência pela polícia brasileira aumentou após a redemocratização, não mais direcionado aos “comunistas subversivos”, mas à juventude negra e aos moradores das periferias.

A literatura e o resgate da memória coletiva

O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua Comissão da Verdade — iniciada em 2012 e finalizada em 2014. Tornando-se, portanto, o último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante atraso em um processo de resgate fundamental à memória coletiva gera aquele temerário quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. Afinal, a literatura sempre foi, e continuará a ser, “a maldição das ditaduras”, nas palavras do crítico e escritor argentino Alberto Manguel. Foi assim que, resistindo à censura das décadas de 1960 e 1970, ela nos presenteou com obras-primas como Quarup (Antonio Callado, 1967), Incidente em Antares (Erico Verissimo, 1971), Sombras de reis barbudos (José J. Veiga, 1972), As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1973) e Os que bebem como cães (Assis Brasil, 1975), entre tantos outros grandes romances.
Nas décadas seguintes, a literatura sobre a ditadura civil-militar brasileira se sustentou com força no testemunho de exilados, ex-guerrilheiros e sobreviventes das torturas. Como exemplo, temos os relatos imprescindíveis de Renato Tapajós (Em câmara lenta, 1977), Frei Betto (Batismo de sangue, 1982), Luiz Roberto Salinas (Retrato calado, 1988), Salim Miguel (Primeiro de abril, 1994), Flávio Tavares (Memórias do esquecimento, 1999) e, mais recentemente, aquele curto e belíssimo livro da Maria Pilla chamado Volto semana que vem (2015). Além, claro, das narrativas conciliatórias e, por isso mesmo, bastante problemáticas, de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?, 1979) e Alfredo Sirkis (Os carbonários, 1980).
Na falta de monumentos, tribunais e lugares de memória, nosso trauma resiste ao esquecimento e se reelabora por meio da literatura, através de um complexo inventário que recria tudo aquilo que a historiografia é incapaz de dizer: a dor e as feridas, as lágrimas e o sangue, a tensão e o horror. O arquivo é duro, de pouco acesso, lugar para historiadores com suas luvas e máscaras de proteção; a literatura, ao contrário, consegue ser um pouco mais democrática, cabe na mão e atinge um público mais amplo, ávido por conhecer seu passado.
Durante os anos 1990 e início do século XXI, mais ficções apareceram para dar conta dessa memória áspera e ainda dolorida. Para exemplos, temos Amores exilados (Godofredo de Oliveira Neto,  1997), Romance sem palavras (Carlos Heitor Cony, 1999), Cinzas do norte (Milton Hatoum, 2003), Não falei (Beatriz Bracher, 2004), A chave de casa (Tatiana Salem Levy, 2007), Nem tudo é silêncio (Sonia Regina Bischain, 2010) e o surpreendente Azul corvo (Adriana Lisboa, 2010), uma das poucas narrativas que tratam da Guerrilha do Araguaia, massacre de opositores ao regime promovido pelas Forças Armadas e que foi negado durante muitos anos pelos militares.

K. Relato de uma busca: divisor de águas

Em 2011, às vésperas da criação da Comissão Nacional da Verdade, a novela K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, se torna um verdadeiro divisor de águas da literatura nacional. De forma pioneira, misturando dados biográficos e históricos à invenção literária, Kucinski denuncia a precarização da memória brasileira sobre os anos de repressão através da história de um pai à procura da filha e do genro, desaparecidos políticos da ditadura. Esse ponto nuclear da narrativa parte da vivência do autor, que perdeu a irmã e o cunhado — Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva — quando ambos foram sequestrados em 1974 pelas forças de segurança do estado de São Paulo. A partir de K. um novo ciclo cultural tem início, no qual as obras literárias não apenas visitam o passado recente, mas apontam para a relação indissociável entre a violência do presente e o “mal de Alzheimer nacional”. Ainda sobre a ditadura, Kucinski publicou outros três livros, Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), Os visitantes (2016) e A nova ordem (2019).
Com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), a literatura brasileira sobre a ditadura ganhou novo fôlego e se transformou num palco para o acerto de contas entre história nacional e memória coletiva. Fomentados pelo rebuliço nos arquivos, os livros se tornam, neste momento, “obstáculos levantados contra o convite ao esquecimento”, na expressão de Beatriz Sarlo.[3] Em 2012 foram lançados Mar azul (Paloma Vidal), Estive lá fora (Ronaldo Correia de Brito) e Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (Liniane Haag Brum), e em 2013, Vidas provisórias, do Edney Silvestre. Já em 2014 foram publicados a coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato, Nos idos de março, e os romances Damas da noite (Edgard Telles Ribeiro) e Qualquer maneira de amar (Marcus Veras). O ano de 2015 nos trouxe Ainda estou aqui (Marcelo Rubens Paiva), Cova 312 (Daniela Arbex), Mulheres que mordem (Beatriz Leal Craveiro), O amor dos homens avulsos (Victor Heringer), Palavras cruzadas (Guiomar de Grammond) e o vencedor dos prêmios Jabuti e José Saramago, A resistência, de Julián Fuks.

A literatura continuará a falar da ditadura

Nas palavras de Beatriz Sarlo, “as palavras são, de fato, testemunhas informantes”,[4] especialmente contra a atrofia da memória. Muito a contragosto de grupos conservadores ou negacionistas, o último triênio não apresentou qualquer queda na produção de textos literários sobre os anos de exceção. Preocupados em demonstrar como a violência da ditadura ocupa os mais diversos espaços da contemporaneidade, uma nova leva de livros continua a surgir sem descanso: é o caso de Cabo de guerra (Ivone Benedetti, 2016), Felizes poucos (Maria José Silveira, 2016), Outros cantos (Maria Valéria Rezende, 2016), O indizível sentido do amor (Rosângela Vieira Rocha, 2017), A noite da espera (Milton Hatoum, 2017), Silêncio na cidade (Roberto Seabra, 2017), Paris – Rio – Paris (Luciana Hidalgo, 2017), o infanto-juvenil Clarice (Roger Mello, 2018), Uma mulher transparente (Edgard Telles Ribeiro, 2018), Sob os pés, meu corpo inteiro (Marcia Tiburi, 2018), Correio do fim do mundo (Tomás Chiaverini, 2018) e Setenta (Henrique Schneider, 2018). Merece destaque, neste período, a Trilogia infernal da pernambucana Micheliny Verunschk composta pelos romances Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018).
Esta lista poderia ser muito mais longa, mas nunca foi seu propósito exaurir o assunto. Pelo contrário, deve ser encarada como um convite para leitoras e leitores que, seguindo o conselho de José Saramago que ficou lá em cima, reconhecem que somos, de fato, a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Se o que está em jogo é a capacidade ou não de reconhecermos nossa responsabilidade pela memória de um autoritarismo que continua a assombrar o presente, é preciso estar atento e forte para que, seguindo o exemplo da personagem kafkiana, a vergonha também não seja a única coisa que nos sobreviva.


[1] Monteiro, Tânia. Venturini: “O grande mentor da anistia foi Figueiredo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 ago. 2009. Disponível em: . Último acesso: 16 ago. 2019.
[2] Penna, João Camillo.  “Estado de exceção: um novo paradigma da política?”. In: Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, jan./jun. 2007.
[3] SARLO, Beatriz. Os militares e a história. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EdUSP, 2005. p. 25-34.
[4] Idem.

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