Berttoni Licarião
Anomalie 03, de Eric Lacombe |
Somos
a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não
existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.
José Saramago.
Vez ou outra, preciso me apresentar em uma roda
de conversa e dizer que sou um pesquisador de literatura ocupado com a memória
da ditadura na ficção contemporânea brasileira. As reações que recebo são as
mais variadas e renderiam, elas mesmas, uma longa tese. No amplo espectro das
respostas mais comuns, há, naturalmente, num primeiro extremo, aqueles que
reconhecem a importância do tema e me parabenizam pela escolha. Em seguida, bem
no meio dessa régua imaginária, encontra-se o grande conglomerado dos “incrédulos
desinformados”, que ora perguntam se tem mesmo alguma coisa para se estudar, ora
preferem encarar um silêncio constrangedor, levemente arrependidos da pergunta.
Por fim, localizadas num ponto diametralmente oposto ao primeiro grupo
concentram-se as pessoas que mais me preocupam: são as que sugerem, quase entre
dentes, meu “desperdício de tempo” com “um tema superado”, isso quando não
deixam escapar um alarmante riso negacionista.
A
ditadura não é “uma página virada da nossa história”!
Essa percepção da ditadura civil-militar
brasileira como página virada de nossa história não é uma onda recente e se
alimenta, principalmente, da ausência de políticas da memória efetivadas a
nível institucional. Frente a normatização do esquecimento, as esferas
culturais reagem como podem. Para ficarmos apenas no campo da literatura, textos
literários sobre a ditadura brasileira não apenas existem como são abundantes, enchem
bibliotecas, recebem prêmios, são discutidos e estudados nas universidades. No
entanto, por falhas estruturais em nossa transição para a democracia, eles
carecem de capilaridade e rapidamente caem no ostracismo dos livros que não
ocupam as listas de mais vendidos. As exceções existem, ainda que raras, como
foi o caso de O irmão alemão (2014),
de Chico Buarque, autor que sabemos ser capaz de transformar em best-seller até mesmo um livro de
receitas com 150 maneiras de preparar chuchu.
O silêncio que muitas vezes sufoca ficções e
relatos sobre a ditadura é um projeto de longa data. Após assumir o controle do
país em 1979, o ditador João Batista Figueiredo enviou ao congresso, sob enorme
pressão de vários setores da sociedade civil, o projeto de lei que concedia
anistia aos crimes cometidos durante os anos de exceção. Na época, o militar
declarou: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento [...]. Eu
apenas quero que haja esquecimento recíproco.”[1] Com
efeito, o desejo do ditador fez-se lei, e o trauma da ditadura foi varrido para
debaixo do tapete, ao invés de ser encarado coletivamente.
A falta de elaboração coletiva de um período em
que crimes contra a humanidade foram cometidos por um Estado autoritário gera
incompreensão e mal-estar social, e suas consequências podem ser sentidas ainda
hoje. Quem aí tentar enxergar as filigranas de nosso tecido democrático, conseguirá
perceber o quanto a Constituição Cidadã de 1988 guarda trechos inteiros da
Constituição autoritária de 1967 (e sua emenda de 1969). Como nossa lei da
Anistia, de 1979, apesar de não prever o perdão para torturadores (porque
crimes de tortura não são anistiáveis) foi considerada como valendo para todos
e prossegue garantindo impunidade a quem torturou, matou e desapareceu aqueles
que se opuseram ao regime. Que o nosso direito à verdade e à justiça — condição
para o funcionamento de uma democracia — tem sido constantemente negado pelas Forças
Armadas que mantém escondidos da sociedade os arquivos da ditadura. E que
pesquisas da última década[2] comprovam
que o uso da tortura e da violência pela polícia brasileira aumentou após a
redemocratização, não mais direcionado aos “comunistas subversivos”, mas à
juventude negra e aos moradores das periferias.
A literatura e o resgate
da memória coletiva
O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua Comissão
da Verdade — iniciada em 2012 e finalizada em 2014. Tornando-se, portanto, o
último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e
irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante atraso
em um processo de resgate fundamental à memória coletiva gera aquele temerário
quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. Afinal, a literatura sempre foi, e continuará a ser, “a
maldição das ditaduras”, nas palavras do crítico e escritor argentino Alberto
Manguel. Foi assim que, resistindo à censura das décadas de 1960 e 1970, ela nos
presenteou com obras-primas como Quarup (Antonio
Callado, 1967), Incidente em Antares (Erico
Verissimo, 1971), Sombras de reis
barbudos (José J. Veiga, 1972), As
meninas (Lygia Fagundes Telles, 1973) e Os
que bebem como cães (Assis Brasil, 1975), entre tantos outros grandes
romances.
Nas décadas seguintes, a literatura sobre a
ditadura civil-militar brasileira se sustentou com força no testemunho de
exilados, ex-guerrilheiros e sobreviventes das torturas. Como exemplo, temos os
relatos imprescindíveis de Renato Tapajós (Em
câmara lenta, 1977), Frei Betto (Batismo
de sangue, 1982), Luiz Roberto Salinas (Retrato
calado, 1988), Salim Miguel (Primeiro
de abril, 1994), Flávio Tavares (Memórias
do esquecimento, 1999) e, mais recentemente, aquele curto e belíssimo livro
da Maria Pilla chamado Volto semana que
vem (2015). Além, claro, das narrativas conciliatórias e, por isso mesmo,
bastante problemáticas, de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?, 1979) e Alfredo Sirkis (Os carbonários, 1980).
Na falta de monumentos, tribunais e lugares de
memória, nosso trauma resiste ao esquecimento e se reelabora por meio da
literatura, através de um complexo inventário que recria tudo aquilo que a
historiografia é incapaz de dizer: a dor e as feridas, as lágrimas e o sangue,
a tensão e o horror. O arquivo é duro, de pouco acesso, lugar para
historiadores com suas luvas e máscaras de proteção; a literatura, ao
contrário, consegue ser um pouco mais democrática, cabe na mão e atinge um
público mais amplo, ávido por conhecer seu passado.
Durante os anos 1990 e início do século XXI,
mais ficções apareceram para dar conta dessa memória áspera e ainda dolorida.
Para exemplos, temos Amores exilados
(Godofredo de Oliveira Neto, 1997), Romance sem palavras (Carlos Heitor
Cony, 1999), Cinzas do norte (Milton
Hatoum, 2003), Não falei (Beatriz
Bracher, 2004), A chave de casa (Tatiana
Salem Levy, 2007), Nem tudo é silêncio (Sonia
Regina Bischain, 2010) e o surpreendente Azul
corvo (Adriana Lisboa, 2010), uma das poucas narrativas que tratam da
Guerrilha do Araguaia, massacre de opositores ao regime promovido pelas Forças
Armadas e que foi negado durante muitos anos pelos militares.
K. Relato de uma busca: divisor de águas
Em 2011, às vésperas da criação da Comissão
Nacional da Verdade, a novela K. Relato
de uma busca, de Bernardo Kucinski, se torna um verdadeiro divisor de águas
da literatura nacional. De forma pioneira, misturando dados biográficos e
históricos à invenção literária, Kucinski
denuncia a precarização da memória
brasileira sobre os anos de repressão através da história de um pai à procura da filha e do genro,
desaparecidos políticos da ditadura. Esse ponto nuclear da narrativa
parte da vivência do autor, que perdeu a irmã e o cunhado — Ana Rosa Kucinski e
Wilson Silva — quando ambos foram sequestrados em 1974 pelas forças de
segurança do estado de São Paulo. A partir de K. um novo ciclo cultural tem início, no qual as obras literárias
não apenas visitam o passado recente, mas apontam para a relação indissociável
entre a violência do presente e o “mal de Alzheimer nacional”. Ainda
sobre a ditadura, Kucinski publicou outros três livros, Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), Os visitantes (2016) e A nova ordem (2019).
Com os trabalhos da Comissão
Nacional da Verdade (2012-2014), a literatura brasileira sobre a ditadura
ganhou novo fôlego e se transformou num palco para o acerto de contas entre história nacional e memória coletiva. Fomentados pelo rebuliço nos
arquivos, os livros se tornam, neste momento, “obstáculos levantados contra o
convite ao esquecimento”, na expressão de Beatriz Sarlo.[3]
Em 2012 foram lançados Mar azul (Paloma
Vidal), Estive lá fora (Ronaldo
Correia de Brito) e Antes do passado: o
silêncio que vem do Araguaia (Liniane Haag Brum), e em 2013, Vidas provisórias, do Edney Silvestre.
Já em 2014 foram publicados a coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato, Nos idos de março, e os romances Damas da noite (Edgard Telles Ribeiro) e
Qualquer maneira de amar (Marcus
Veras). O ano de 2015 nos trouxe Ainda
estou aqui (Marcelo Rubens Paiva), Cova
312 (Daniela Arbex), Mulheres que
mordem (Beatriz Leal Craveiro), O
amor dos homens avulsos (Victor Heringer), Palavras cruzadas (Guiomar de Grammond) e o vencedor dos prêmios
Jabuti e José Saramago, A resistência,
de Julián Fuks.
A
literatura continuará a falar da ditadura
Nas palavras de Beatriz Sarlo, “as
palavras são, de fato, testemunhas informantes”,[4]
especialmente contra a atrofia da memória. Muito a contragosto de grupos
conservadores ou negacionistas, o último triênio não apresentou qualquer queda na
produção de textos literários sobre os anos de exceção. Preocupados em demonstrar
como a violência da ditadura ocupa os mais diversos espaços da
contemporaneidade, uma nova leva de livros continua a surgir sem descanso: é o
caso de Cabo de guerra (Ivone
Benedetti, 2016), Felizes poucos (Maria
José Silveira, 2016), Outros cantos (Maria
Valéria Rezende, 2016), O indizível
sentido do amor (Rosângela Vieira Rocha, 2017), A noite da espera (Milton Hatoum, 2017), Silêncio na cidade (Roberto Seabra, 2017), Paris – Rio – Paris (Luciana Hidalgo, 2017), o infanto-juvenil Clarice (Roger Mello, 2018), Uma mulher transparente (Edgard Telles
Ribeiro, 2018), Sob os pés, meu corpo
inteiro (Marcia Tiburi, 2018), Correio
do fim do mundo (Tomás Chiaverini, 2018) e Setenta (Henrique Schneider, 2018). Merece destaque, neste período,
a Trilogia infernal da pernambucana
Micheliny Verunschk composta pelos romances Aqui,
no coração do inferno (2016), O peso
do coração de um homem (2017) e O
amor, esse obstáculo (2018).
Esta lista poderia ser muito mais longa, mas nunca
foi seu propósito exaurir o assunto. Pelo contrário, deve ser encarada como um
convite para leitoras e leitores que, seguindo o conselho de José Saramago que
ficou lá em cima, reconhecem que somos, de fato, a memória que temos e a
responsabilidade que assumimos. Se o que está em jogo é a capacidade ou não de reconhecermos
nossa responsabilidade pela memória de um autoritarismo que continua a
assombrar o presente, é preciso estar atento e forte para que, seguindo o
exemplo da personagem kafkiana, a vergonha também não seja a única coisa que
nos sobreviva.
[1]
Monteiro, Tânia. Venturini: “O grande mentor da anistia foi Figueiredo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22
ago. 2009. Disponível em: . Último acesso: 16 ago.
2019.
[2] Penna,
João Camillo. “Estado de exceção: um
novo paradigma da política?”. In: Revista
Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea. Brasília, jan./jun. 2007.
[3] SARLO,
Beatriz. Os militares e a história. In: SARLO, Beatriz. Paisagens
imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EdUSP,
2005. p. 25-34.
[4]
Idem.
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