10 de agosto de 2019

As representações do ódio e da violência pela literatura contemporânea

Carlos Wender Sousa Silva


"Cenas de Violência: Silêncio", da Marie-Ange Giaquinto.  




“Havia um homem antes da farda:
depois,
caos, um nada,
anterior talvez à farda
à espera que, de ordem, uma palavra
o preencha,
havia um homem”

Adriano Scandolara

Nossa sociedade é exposta diariamente a diferentes práticas humanas de intolerância e violência. Muitas delas são inexplicáveis de um ponto de vista racional, na medida em que se distanciam de parâmetros éticos, morais e filosóficos essenciais à vida coletiva. Essa violência decorre em alguma medida do inconformismo diante da irrealização de interesses humanos imediatos criadas dentro das relações de poder. As práticas humanas violentas perpassam pelos âmbitos institucional e privado, indo desde uma relação entre um casal ou entre vizinhos, até as relações profissionais previamente hierarquizadas. Esses conflitos provocados e ressignificados pela sociedade contemporânea exigem novas formas de se pensar nossas relações sociais a todo momento.
É nesse sentido que o romance Gog Magog, de Patrícia Melo, busca ressignificar alguns dos usos que atribuímos à violência. Patrícia Melo, escritora, dramaturga e roteirista, aproxima a literatura de vários dos elementos da barbárie nesse romance, em uma tentativa de colocar alguns questionamentos com relação às nossas próprias atitudes e interesses, tendo em vista que esses aspectos se desenvolvem diante de todo um processo de construção social e psicológica. Além de Gog Magog, a autora tem obras que já foram traduzidas em diversos idiomas. Ela recebeu prêmios por produções como Elogio da mentira, Inferno e Ladrão de cadáveres. O romance O matador foi indicado ao prêmio Femina na França e tornou-se filme em 2003, intitulado O homem do ano, com roteiro de Rubem Fonseca e direção de José Henrique Fonseca. Atualmente, a autora vive na Suíça. Gog Magog é o décimo romance da escritora.
A proposta nesse romance advém da necessidade contínua de dar uma resposta ao imediatismo a à dissolução das relações humanas na sociedade contemporânea. A narrativa aborda muitos aspectos presentes na realidade brasileira. São apresentadas algumas das diversas dificuldades de comunicação do nosso tempo. O barulho da vida moderna aparece como uma metáfora dessa incomunicabilidade nas relações pessoais e coletivas. Além de deixar em aberto as delimitações entre a violência estrutural – institucionalizada – e todas aquelas praticadas no âmbito privado.
As relações sociais neste início do século XXI têm sido delimitadas por um aglomerado de informações que se acumulam nos diversos âmbitos da vida. Há, muitas vezes, uma acumulação de informações, interesses e vontades que se sobrepõem constantemente. Logo, as relações privadas e públicas são reconstruídas sem as mesmas proporções de reflexão ou de entendimento com relação à organização mais complexa da sociedade e das relações humanas. Consequentemente, notamos uma contínua ressignificação dessas relações. O imediatismo e a pouca profundidade desses vínculos levam a experiências de frustração e inconformidade. Essa sociedade inconformada, diluída na insatisfação consigo mesma e na negação da alteridade do outro, forma indivíduos que menosprezam e assumem o ódio como resposta aos diferentes conflitos que essa organização social constrói.
O ápice desse processo é o não reconhecimento do outro e a própria banalização da vida humana, que levam a práticas de violência, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de extermínio, de opressão e de silenciamento das diferentes vozes. É nesse sentido que Gog Magog busca captar na realidade alguns desses elementos e experiências da sociedade contemporânea, na tentativa de ressignificar esses abusos estruturais através do texto literário. O barulho, o ruído que incomoda o personagem central é o mesmo que constrói as relações sociais hoje. O romance é uma tentativa de compreensão e percepção de algumas das práticas humanas irracionais.
O romance tem como protagonista um professor de biologia, que mora em uma metrópole – São Paulo. A narrativa de Patrícia Melo é tecida dentro de uma relação espaço-temporal que rapidamente identificamos como brasileira, expondo aspectos da violência e das desigualdades próprias do nosso país. O professor, cidadão honesto e pacato, não tem nome, ao contrário do seu vizinho, Ygor, que se muda para o apartamento de cima. Ygor, ou Senhor Ípsilon, apelido atribuído pelo professor a ele, é a peça fundamental que levará o personagem central a ter sua vida completamente transformada e orientada de acordo com os hábitos e atitudes do seu novo vizinho.
Os ruídos provocados pelo Senhor Ípsilon vão ocupando a cabeça do professor de biologia, que vai se perder na sua própria irracionalidade. Esse movimento demonstra a incapacidade do sujeito de racionalizar diante de situações que dizem respeito a vida urbana contemporânea. O professor que já tinha um casamento fracassado, que não encontrava muita razão na sua própria existência, nem qualquer sentido na realidade na qual se confrontava, revela sua incapacidade em compreender a organização da vida humana. Sua vivência insignificante e sua visão de mundo limitada o levou a adotar atitudes violentas e criminosas.
Na medida em que recusa a relação social presente no romance, a qual deveria ser construída mutuamente, o professor, imbuído pela sua frustração, constrói concepções equivocadas do seu direito com relação ao de outro cidadão com quem precisa compartilhar um código social. É exatamente a perda desse código social como instrumento que orienta as relações pessoais e coletivas do indivíduo, que acaba levando o professor a tomar atitudes contrárias não somente ao código, como também opostas a vários princípios éticos, morais e filosóficos.
Além da sobreposição inadequada de um direito individual sobre o de outro indivíduo, quando na verdade deveria haver a conformação entre ambos, a narrativa revela ainda a dificuldade que o personagem tem diante dos diferentes conflitos que a vida apresenta no dia a dia. Ou seja, a atitude do professor de biologia é um reflexo do próprio movimento de interrupção do diálogo diante de uma situação na qual tem-se interesses divergentes. O barulho metafórico presente no romance representa os ruídos provocados nas tentativas infrutíferas de comunicação entre os indivíduos na atualidade.
Nessa zona de incomunicabilidade não há lugar para o diálogo nem para o consenso. A dificuldade do personagem em lidar com o barulho reflete a impossibilidade da contemporaneidade de convivência entre ideias diferentes em um espaço em comum. O senhor Ípsilon, integrado à organização da vida urbana moderna, tirava o sossego e interrompia o silêncio do professor. Esse silêncio, que a princípio poderia ser entendido como um direito de cada indivíduo, nos levando a interpretar as atitudes do personagem a partir de parâmetros racionais, era, na verdade, a revelação da incompreensão e da irracionalidade do personagem diante das situações dinâmicas da vida moderna.
Da irracionalidade vai-se ao ódio e à violência. O ato de violência é o ápice da relação entre o professor e o seu vizinho. É o encontro entre as seguintes estruturas do romance: personagem, desejo e conflito. As atitudes desse personagem autoritário que se perde em si mesmo, nas suas irrealizações e nas suas limitações, expõem algo muito mais estrutural presente na organização social. A indiferença e a falta de empatia diante das confrontações pessoais e coletivas, muitas vezes, colocam o indivíduo em uma posição ilusória de superioridade. Daí advém o menosprezo e as diferentes formas de preconceitos como dito anteriormente. Todo esse movimento leva em muitos casos a uma histeria coletiva. Essa histeria é resultado de comportamentos e percepções que levam os cidadãos a fazer escolhas injustificadas e inumanas.
No romance, a chave girando na trinca da porta do senhor Ípsilon, os seus passos ecoados embaixo, os objetos que caem no chão, tudo é motivo para desestabilizar o conforto do professor. A reprodução dos sons produzidos pelo senhor Ípsilon dentro da estrutura narrativa vai apontando pouco a pouco a maneira como o personagem central se perde na pequenez da sua própria existência.
Na vida real, basta uma fechada no trânsito, a recusa da sexualidade e da subjetividade do outro, um olhar atravessado, um negro carregando um guarda-chuva ou condenado por portar um desinfetante em um ato político, um homem que ameaça e agride a companheira ou um terceiro diante da fragilidade da sua própria masculinidade, para revelar estruturas sociais desiguais e excludentes. Todas essas práticas denunciam as diferentes formas de violência estruturais e suas desigualdades. A pluralidade cria alguns ruídos em determinadas camadas da sociedade, levando-as a agir em interesse próprio por motivo ideológico, econômico, político ou filosófico.
O senhor Ípsilon, assim como nessas situações corriqueiras do dia a dia, noticiadas ou não, o indivíduo (a vítima) não é mais visto como ser humano, mas como um objeto. O seu direito é reduzido diante do direito do agressor, do indivíduo autoritário e violento. Ocorre um processo de animalização daquele que é posto em uma posição de inferioridade por aquele outro que se sobrepõe arbitrariamente.
Eu – o professor: (...) E eu não pensava no senhor Ípsilon como um ser humano.
E o médico perguntaria: Não? Como você pensava então no seu vizinho?
E eu responderia: Como um objeto. Um emissor de ruídos variados e desnecessários. Sem conteúdo (MELO, 2017, p. 111). 
Não é estabelecida uma relação mútua, orientada pela conformação dos interesses divergentes, mas um movimento de silenciamento e de apagamento do outro. O outro provoca ruídos desnecessários; para o agressor é alguém vazio, sem conteúdo. Para ele, a única forma de experienciar a vida é a sua, não a reconhecendo como limitada e como apenas mais um movimento dentro de toda uma estrutura social. É essa mesma incompreensão da complexidade da realidade que leva o sujeito agressor, homem honesto e pacato – como podemos ler no romance, a violentar uma mulher, a agredir uma pessoa da comunidade LGBT, a perseguir ou prender alguém por posicionamento político ou ideológico diferente do seu, a torturar, a defender torturadores, a aprisionar ideias, a apagar vivências do outro.
Em todos esses casos o outro é objetificado. Há esse ruído entre a minha experiência e a alteridade do outro. No romance, o silêncio é o produto de luxo do personagem central, pelo qual está disposto a pagar qualquer preço, inclusive com a vida de outras pessoas. Na nossa realidade, esse produto (barulho) pode ser uma ideia, um preconceito, uma crença religiosa, etc. Nesse sentido, a obra literária se coloca como possibilidade de compreensão de uma realidade formada por inúmeros ruídos.
A incomunicabilidade das relações humanas na contemporaneidade é ressignificada no texto literário, de forma com que busquemos compreender essas relações, criando possibilidades de intermediação no encontro com outro. Por essa perspectiva, a literatura é uma possibilidade de construção crítica, uma ferramenta de conhecimento da relação mútua do eu face a alteridade do outro. A obra literária procura demonstrar que o eu não se apaga diante da experiência de vida do outro, demonstra, ao contrário, a possibilidade de interação entre ambas vivências por meio de processos de aprendizagem, reflexão e troca de experiências. A literatura surge como espaço de mediação dos diferentes conflitos.      

Referência bibliográfica:

MELO, Patrícia. GOG MAGOG. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

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