Andressa Fonseca da Silva
O leitor, de Marko Keppler |
“O objeto literário
autêntico é a própria interação do texto com o leitor”.
(COMPAGNON)
Se parar para analisar, com
tranquilidade, posso dizer que sou uma pessoa apaixonada pelo mundo e por suas
particularidades. Há quem diga "deslumbrada", mas diariamente sou
visitada por pequenas paixões e por uma pluralidade muito grande de sensações e
pensamentos. Os realistas do século XIX costumavam dizer que a leitura dos
romances era um mal na vida das mulheres, porque as deixava apaixonadas –
possibilitava para elas devaneios e outras visões de mundo que não cabiam em
seu dia a dia. Hoje, apaixonada que sou, não poderia discordar mais de que isso
seja um mal. Acredito fielmente que muito da paixão que tenho pela vida, assim
como muito do ser humano que sou, se despertou com a leitura. Antes mesmo
que eu pudesse ler para mim mesma, já mergulhava em narrativas de contos de
fadas – bastante clichê. Não me lembro do momento exato em que algo se moveu em
mim... mas lembro bem que minha mãe, pedagoga, desde sempre estava me
envolvendo em historinhas das mais emocionantes, enquanto meu pai me ganhava
com gibis da Turma da Mônica. Até mesmo os filmes – principalmente musicais –,
todos eles me captaram desde sempre para as possibilidades que abarcam uma
história a ser contada... e eu gostava de imaginá-las.
Ao começar devorando os livros
infantis e as revistinhas, na maioria das vezes, fui capaz de me encontrar naquelas
narrativas – nas mais simples e nas mais imaginativas – das quais eu sonhava
efetivamente em fazer parte.
Ao passo em que fui crescendo, fui
caminhando para a leitura dos primeiros grandes volumes (mais de 100 páginas,
uau!) e chegando no maior divisor de águas da minha vida de leitora: a saga
Crepúsculo. Uma menina apaixonada pelos clássicos da Disney, com certeza se
apaixonaria pelo romântico Edward... Mais um clichê. O primeiro livro que li da
saga foi o Amanhecer (livro que a
encerra) – por pura ansiedade em saber como acabava a história, até então,
conhecida somente pela ótica cinematográfica. De 100 páginas, pulei logo para
as 600, que foram consumidas num piscar de olhos. Com as 600 páginas de Stephenie
Meyer lidas, me senti muito poderosa sobre minhas habilidades de leitura...
Agora eu poderia ler qualquer coisa!
Entretanto, foi aí que me deparei com
uma realidade diferente da que eu havia pensado: quando os romances da escola
começaram a chegar. Pouco me lembro das obras que era obrigada a ler... Mas
muito me lembro de cada best seller que li nesse caminho:
Depois de Crepúsculo, mergulhei em Jogos Vorazes, A culpa é das estrelas,
Querido John e muitos outros (muitos mesmo). Pouco sucesso teve a
escola em influenciar no meu hábito de leitura durante o Ensino Fundamental:
lia o necessário para fins necessários.
No Ensino Médio, ao me deparar com as
obras do PAS, me vi obrigada a, no mínimo, me esforçar para apreciar os
chamados "clássicos" literários. Estranhamente, eu me interessava
pelos conteúdos das aulas de literatura e era boa neles, mas apesar disso, a
leitura das obras era sempre dolorida... Como era possível? Gostar tanto de ler
tantos livros, e alguns – muitas vezes, bem menores em relação aos que eu lia –
s erem nada mais do que um sacrifício... Para gostar, para entender, para
apreciar. Pouco a pouco, algumas autoras me conquistaram timidamente: Clarice
Lispector, Lygia Fagundes Telles e Cecília Meireles, por exemplo, ganharam meu
coração e me fizeram acreditar que o mundo da literatura brasileira poderia ser
tão prazeroso quanto o da literatura estrangeira que eu estava
acostumada.
Por acaso, as Letras acabaram por me
conquistar e, ao entrar na graduação, já tinha a certeza de que, a partir de
agora, eu teria que abandonar os best sellers e me tornar
amante apaixonada dos (até então) ainda temidos cânones. Em uma das primeiras
aulas de Introdução à teoria da literatura, a professora Patrícia Nakagome –
hoje, minha professora orientadora – nos entregou um questionário, do qual me
recordo vagamente, mas tenho certeza de que perguntava sobre nossas leituras
favoritas. Só pude pensar "meu Deus!", como dizer para a professora
de literatura da universidade que as minhas leituras favoritas – frequentes e
espontâneas – iam de Crepúsculo a Jogos Vorazes, com visitas para John
Green e Nicholas Sparks? Entretanto, que surpresa – eque incrível –, ela, prevendo
nosso incômodo e o nosso esforço em trazermos as respostas “certas”, nos
incentivou a escrevermos ali as obras que realmente falavam aos nossos
corações.
Nesse momento, comecei a entender que
nem tudo era – ou deveria ser – como eu pensava. Ao falarmos sobre um
projeto de pesquisa, foi árdua a escolha de um objeto. Que tipo de obras
poderiam ocupar esse espaço acadêmico? Que tipo de obras merecem ser discutidas
ou não? Por quê? Todas essas angústias, até então, ainda me limitavam na crença
de que, por mais que eu os defendesse com unhas e dentes, meus best
sellers não eram parte desse mundo – algo que eu lutava para não
aceitar. E, exatamente daí, surgiu meu objeto. Se eu era uma leitora assídua,
com experiências reais de leitura que com certeza se manifestaram ativamente na
minha concepção de mundo, por que essa leitura não seria válida? Vi,
então, minha angústia se materializar em uma pesquisa.
Estudar
sobre a leitura me fez entender que muitos dos problemas com os quais me
deparei nas leituras propostas pela escola e pela universidade não estavam em
mim ou nos meus colegas. O ato de ler mostra-se muito mais complexo do que uma
decodificação racional das palavras. Vincent Jouve – em A leitura (2004)
– trata a leitura como multifacetada, e dentro disso, a destaca enquanto um
processo afetivo, que envolve (sim!) certa paixão. Sabendo que a atividade de
leitura envolve um leitor real cheio das sua concepções de mundo e significados
para somar ao texto, é preciso aceitar que cada leitor se relaciona com cada
obra de uma maneira bastante íntima e particular.
Com
a supervalorização dos cânones literários, as disciplinas escolares acabam por
incorporá-los nos conteúdos de literatura como obras clássicas que merecem ser
lidas e estudadas de geração em geração. O que os moldes escolares, assim como
a crítica literária, não observam é o desinteresse do leitor jovem por esses
cânones. Ou, na verdade, até observam, mas consideram como uma defasagem
intelectual ao passo em que desvalorizam por completo as leituras que de fato
conquistam os jovens.
Nas
escolas muito se fala sobre a importância de ler. Todavia, as práticas de incentivo
à leitura muito mais distanciam o leitor do apresso por ela quando restringem o
estudo de literatura à obras de linguagem complexa, arcaica e com histórias que
pouco dialogam com ele. Em contrapartida, não é difícil constatar que o tempo todo esse leitor
está em contato com best sellers, leituras atuais que dialogam com
ele, e despertam a imaginação de maneira cativante. Até mesmo pela facilidade
da difusão dos enredos nas redes sociais e filmes.
O
fato de a leitura dos best sellers não possuir espaço diante
da crítica literária e sequer diante das instituições de ensino, enquanto os
cânones são levados para a sala de aula constantemente, provoca nesses jovens
leitores em formação, muitas vezes, uma impressão errônea e negativa das atividades
de leitura.
Mas, se muitos deles possuem um
repertório próprio de leituras, como jogar fora as experiências desses
leitores? Como dizer que a leitura de um livro com o qual eles possuem
pouquíssima afinidade tem mais valor do que a de um livro que levanta questões
cheias de sentido para eles? Desses questionamentos – me baseando na afirmação
de Antoine Compagnon de que a obra literária só se concretiza a partir da
leitura (1999) – surgiu minha principal aposta: escutar leitor. Não o leitor
inscrito na obra, não o leitor que corresponde às expectativas da crítica, não
o leitor que sabe dar as “respostas certas” nas aulas de literatura, mas o
leitor real, empírico. O leitor que lê o que gosta, porque gosta e porque
enxerga algo especial naquela leitura. Seja algo que o representa, que se
afasta dele por completo, ou que desperte nele novas paixões e olhares.
A
lacuna da necessidade de ouvir o leitor que se abriu no meio do meu plano de
trabalho vinha não só do que eu estava estudando. Vinha de mim. Descobri um
espaço que é meu, que é a minha aposta. É a minha experiência mostrando que
quem começa lendo Crepúsculo, é
possível que logo esteja lendo Morro dos
Ventos Uivantes. Que alguém que lê A
culpa é das estrelas, pode ser conquistada por As meninas. Mas não só isso, – e aqui justifico minha escolha de
obras para trabalhar na pesquisa em uma atividade com alunos do Ensino Médio –
a minha paixão particular pela leitura mostra que quem lê Jogos Vorazes reflete acerca de questões sociais profundas tanto
quanto – e, em alguns caso, talvez mais – que alguém que lê O cortiço.
O leitor com o livro em mãos é muito
mais que um ser passivo diante das ideias de um autor: ele é ativo e atribui, a
cada leitura, um novo significado para aquelas palavras por meio de suas
vivências, seus conhecimentos e sentimentos. E se esse leitor real atribui
valor a uma determinada obra, – mesmo um clichê – é porque, de alguma forma, a
obra é capaz de estabelecer diálogo com ele e se concretiza diante dessa
leitura. Logo, para que o processo se torne efetivo, é preciso que ele se
enxergue como protagonista e agente do próprio processo de formação. É preciso que
ele se apaixone pelas palavras, pelas narrativas, ou que seja capaz de
recusá-las firmemente. É preciso dar voz e ação a esse leitor.
Referências:
JOUVE, V. A leitura. São Paulo: Unesp, 2004.
COMPAGNON,
Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte. Ed. UFMG, 1999.
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