Pedro Ivo Rocha de Macedo
Não
sabemos exatamente o que é fantasia e o que é realidade neste livro – tudo o
que sei é que tudo isso eu vivi.
Amélie Nothomb
Milko Mattiacci |
As movimentações
literárias do novo milênio entrelaçam o autor à sua produção literária em
níveis até então inéditos. Se antes o desprestígio criou um campo em que os
escritores não estavam inclinados a se colocar abertamente como o sujeito de uma
produção literária dita confessional, os produtores do novo milênio se lançam
sobre suas vidas em imersão completa para a produção de seus textos ficcionais.
Esgarçando as fronteiras entre o ficcional e o real.
Estas narrativas
antes à margem do cânone se tornaram a própria tônica da produção no campo
literário atual e são comumente agrupadas sob o termo autoficção.
Mas o que exatamente
é autoficção?
Na virada do milênio,
há uma emergência do interesse social pela subjetividade. O individual se torna
prevalente em toda uma gama de discursos e tematizações em que pode ser
identificada a coroação do “eu” no primeiro plano. Por todo lado surgem
produtos culturais que dão enfoque às experiências subjetivas das pessoas
retratadas. Na TV, há uma quantidade imensa de reality shows acompanhando
confinamentos, dia a dia de famílias ricas ou comuns, e indivíduos que se
submetem a toda uma sorte de experimentos visuais para ter suas vidas
publicamente comunicadas. Na internet, com a ampliação das bandas e o fácil acesso
a câmeras em telefones celulares, o número de canais pessoais no youtube, vlogs
e exposição pessoal dos cotidianos em stories
de aplicativos de redes sociais, estampa as vidas de milhões para a absorção
alheia. Nas prateleiras das livrarias, em posição de destaque, é possível
perceber a popularidade das narrativas de vida, seja em narrativas
identificadas como ficcionais, ou nos textos tratados como estritamente
verificáveis das biografias e autobiografias.
Entretanto o registro
de vidas e experiências humanas individuais para interesse e consumo dos outros
não é original dos nossos tempos. Desde que o discurso passou a ser registrado,
as narrativas referenciais e biográficas são praticadas, mas é no século XVIII,
quando surge um grande interesse pelas narrativas pessoais pré-românticas e
românticas, que estes discursos pessoais se consolidam como um gênero que
engloba confissões, crônicas, memórias, diários, cartas e autorretratos. Nestes registros textuais, assim como na
produção historiográfica e jornalística, existe um esteio na realidade – há
algo no mundo real a que eles se reportam: no caso, o algo é o próprio autor.
Por estar ancorado na
realidade, o conjunto de narrativas emoldurando indivíduos reais foi colocado
na condição de um gênero menor. Se a literatura é material do gênio e
imaginação de um artista, o escritor, a narrativa escrita de uma vida real,
sabida, experimentada e limitada pela verdade histórica, só podia ser
considerada como um produto de menor estro e inventividade. Gasparini (2004)
culpa a tradição aristotélica por conceber que a arte não deveria se referir a
um caso em particular do mundo real, o que torna o texto referencial uma
instância inferior de narrativa.
Essa carência de prestígio e
reconhecimento artístico se dá a despeito do grande interesse dos leitores, ou
mesmo justamente por conta desse grande interesse. As vanguardas europeias da
virada do século XIX para o XX, eram bastante vocais em seu desprezo pelo texto
jornalístico e pelos leitores de jornais que consumiam avidamente histórias
reais e eram o mercado para os produtos literários referenciais. Diante de um
número tão grande de leitores que não leriam sua produção, os intelectuais da belle époque e dos movimentos de
vanguarda modernista se afastam de uma possibilidade de literatura individual
ou confessional.
Da mesma maneira, a crítica e os
estudos acadêmicos não consideraram que essa modalidade então ultrapassada e
ambivalente fosse um objeto de estudo válido para as cátedras que se fundavam.
A literatura de essência artística ficcional e imaginativa, a “boa literatura”,
prescindia da interferência da realidade nos gêneros poéticos e romanescos, e
não haveria motivo para considerar livros cujo texto era biográfico e
referencial como matéria literária.
As correntes da
crítica literária predominantes do século XX – seja o formalismo russo, o neo-criticismo
norte-americano ou o estruturalismo francês – todas proclamavam que o texto
literário deveria se bastar por si e, portanto, não haveria necessidade de
considerar os produtores da narrativa ficcional ou seus aspectos biográficos e
referenciais.
Biografias e
autobiografias não eram, ou não deveriam ser, produzidas por autores de
prestígio. Autores que, então, não seriam importantes para a apreensão do
trabalho artístico. No influente ensaio A
morte do autor, Roland Barthes postula “o escritor moderno nasce ao mesmo
tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia
ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro
seria o predicado”. O autor não poderia existir fora do estudo do enunciado, e,
portanto, à academia não interessava a tematização ampla dos gêneros
biográficos.
Mas o autor era uma
figura renitente, e insistiu em ressuscitar, amparado pelo interesse nunca
abandonado dos leitores por sua figura. Como assinala Beatriz Sarlo, “não fomos
convencidos, nem pela teoria nem por nossa experiência, de que a ficção seja,
sempre e antes de tudo, um apagamento completo da vida”. O cenário de rejeição
a esta modalidade narrativa começa a
mudar entre os anos 1970 e 1980, quando as correntes acadêmicas de estudos
literários retiram a mirada exclusiva na narrativa, para render de volta um
papel ativo ao leitor e ao entorno da obra literária, incluindo seu produtor e
objeto temático no mundo real.
O teórico fenomenologista
Philippe Lejeune tem obra instrumental para que a narrativa referencial seja
recolocada como objeto da crítica literária. Em O pacto autobiográfico, faz-se um apanhado sistematizado das
narrativas autorreferenciais, definindo a autobiografia, reconhecendo sua
importância como gênero e separando sua modalidade de ficcionalização no
romance autobiográfico.
Na proposição
clássica de Philippe Lejeune, as narrativas autobiográficas são, em essência,
contratuais. O escritor e o leitor firmam um acordo, que não precisa ser
expresso de que um está dizendo a verdade sobre uma vida; verdade que o outro,
ao recebê-la, tomará como um reflexo da realidade. Esta compreensão contratual
bem serve aos textos que podem ser classificados a partir de sua proposição:
autobiografia, romance autobiográfico e, em seguida, autoficção.
Autobiografia
A biografia é o relato da vida de um ser
humano. Originalmente tematizando apenas os indivíduos célebres, as primeiras
biografias tinham o objetivo de ser um material informativo, servindo para
propagar os feitos e marcas de homens que marcaram o seu tempo. A biografia
tradicional é o produto de um autor que, ancorado por registros históricos e
documentos, reconstrói o percurso da vida de um ser humano cuja história
pessoal seria relevante para o seu país e o mundo, deixando marcas suficientes
para que sua história merecesse ser contada.
A autobiografia é uma
variação da primeira, com a distinção crucial de ser escrita pelo próprio
autor. A definição proposta em 1970 por Jean Starobinski é bastante sucinta: “a
biografia de uma pessoa escrita por ela mesma”, em que o “narrador” é idêntico
ao “herói da narração”. Mas é a definição estabelecida cinco anos depois por
Lejeune que viria a se consagrar como a referência principal nos estudos sobre
a modalidade. Ele expressa que a autobiografia é uma “narrativa em prosa que
uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
individual, em particular a história de sua personalidade”. O autor considera
que só é possível autobiografia e uma leitura íntima desta quando há unicidade
entre o narrador, o personagem e o autor, e se estabelece, então, um “pacto
autobiográfico” com o leitor.
Romance autobiográfico
No contexto de
desprestígio do século XX, autobiografias não eram bem vistas por intelectuais
e crítica. A fronteira entre ficção e biografia foi desafiada, com cautelas e
ressalvas, com o surgimento do romance autobiográfico ou roman personnel, que misturava os dois códigos incompatíveis do
ficcional e do autorreferencial. Nesta nova modalidade híbrida, a vida do
próprio autor aparece em um texto como ficção: sua vida real servia de matéria e
base para o labor artístico e estilístico – literário – desenvolvido a partir
dos fatos reais. Entretanto, mesmo quando produzido por escritores de renome, o
romance autobiográfico foi mantido à margem dos principais debates acadêmicos
em literatura, muitas vezes se desconsiderando seu caráter referencial em
detrimento do trabalho ficcional.
No romance
autobiográfico, o autor não necessariamente anunciava suas intenções pessoais
(possivelmente para evitar a depreciação), mas pode haver nele elementos
distintos para que o leitor acredite que o texto seja a representação verdadeira
do passado do autor (narrativa autodiegética, identificação subjetiva do
narrador com o autor e personagem, verificabilidade dos fatos relatados). Para
Lejeune, o pacto entre o escritor e o leitor, diferentemente do que se fazia
nos relatos autobiográficos conhecidos até então, é um pacto romanesco ou
fantasmático, em que o leitor consideraria o elemento ficcional e fantasioso
adicionado à vida real tornada literatura: “o leitor é assim convidado a ler os romances
não somente como ficções abordando uma verdade da ‘natureza humana’, mas também
como fantasias reveladoras de um indivíduo”.
Para melhor
categorizar a posição distinta de romances e autobiografias nessas obras,
Lejeune, na edição original de sua obra, oferece um quadro esquemático que
tabula os vários tipos de narrativas autobiográficas que poderiam ser
encontradas. A utilização do nome próprio ao longo do discurso era, crucial
para a identificação do autor como narrador e personagem. Essa unicidade
onomástica é o que caracteriza para ele a autobiografia tradicional. Já no
romance autobiográfico o personagem ou não estaria nomeado ou deveria ter um
nome diferente do autor, restando ao leitor identificá-lo pela percepção de
elementos que coincidissem com informações de que ele dispusesse sobre a
biografia do autor.
Não obstante, o
quadro proposto por Lejeune não estava completo. Havia ali dois pontos cegos
para a qualificação das narrativas. Uma das categorias em branco se daria
quando o nome do autor é diferente do nome do personagem autobiografado (com a
ressalva dos pseudônimos, noms de plume)
e mesmo assim o texto se apresenta como um relato referencial baseado em sua vida
real. Outro ponto vazio, e esse é o que melhor nos interessa, aconteceria
quando o autor se identificasse pelo nome próprio em uma obra, mas ainda assim
os eventos narrados e a intriga produzida fossem matéria estrita de sua
imaginação – fatos que não aconteceram. Sobre este segundo ponto cego, afirma
Lejeune: “nada impediria que a coisa existisse, e seria talvez uma contradição
interna da qual se poderia extrair efeitos interessantes. Mas, na prática,
nenhum exemplo me vem à mente”. Naquele momento, parecia uma possibilidade
ainda não explorada, e, de fato, não se apresentavam exemplos à época da
publicação de O pacto autobiográfico.
Autoficção
Não demora muito,
entretanto, para o aparecimento de um exemplo da “contradição interna” de
“efeitos interessantes”. O ponto cego de Lejeune ganha nome quando o escritor e
professor universitário francês Serge Doubrovsky, inspirado pela obra do
primeiro, publica o romance Fils em
1977. No texto, Doubrovsky se
apresenta ao mesmo tempo como narrador e personagem, mas, no pequeno ensaio
paralelo ao seu livro, ele afirma que os eventos narrados são fictícios. O
narrador é ele, mas a história não é real. Estava ali preenchida a lacuna, e, ao
mesmo tempo, criada uma nova modalidade de narrativa que desafia os limites
entre ficção e realidade. O próprio Doubrovsky propõe um novo termo para
designar o texto que escreveu, ressaltando a dimensão psicanalítica que um
autor assume ao fazer-se personagem. Mal
sabia ele como esta proposição seria influente para a produção das quatro
décadas que se seguiram. O livro foi identificado como autoficção.
Autoficção designa em
sua concepção, portanto, o texto narrativo em que o autor é o personagem
principal, mas é também um texto estritamente ficcional, em que os eventos
narrados são produtos da imaginação do seu criador. Para Gerard Genette,
autoficção se dá quando “um narrador identificado ao autor produz uma narrativa
de ficção homodiegética”, mas vai além: ele propõe que o autor da autoficção,
de forma deliberadamente contraditória, sugere ao leitor: “eu, o autor, vou
lhes contar uma história da qual eu sou o herói, mas que nunca me aconteceu”.
De posse de uma
definição clara poderíamos tentar classificar a produção literária
autorreferencial contemporânea. Autoficção seria basicamente isso: um texto
literário em que o autor se coloca como o personagem principal de eventos que
ele nunca viveu, mas de cuja ação é o sujeito.
Mas não é tão
simples.
O termo autoficção
vem sendo empregado livremente, tanto pela crítica acadêmica quanto pela
imprensa, para abrigar de modo indiscriminado qualquer narrativa ficcionalizada
de aspectos autobiográficos e não apenas aquelas cobertas pela definição do seu
criador.
No Brasil, o manto da
autoficção cobre textos com estratégias diferentes de ficcionalização da vida
de seu produtor. Obras distintas de escritores como João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, Lorde), Cristóvão
Tezza (O filho eterno), Julian Fuks (A resistência), Luiz Ruffato (De mim já nem se lembra), Ricardo
Lísias (O divórcio, Delegado Tobias)
entre tantas outras positivamente recepcionadas em premiações e nos novos
estudos acadêmicos.
Não caberia aqui uma
análise de como cada uma dessas obras caminha na interseção de biografia e ficção.
Mas é certo que em grande parte dos casos, trata-se como autoficção (narrativas
de episódios inexistentes na vida de um escritor real) aquilo que se usava
chamar de romance autobiográfico (ficcionalização dos eventos reais de uma
vida).
Antes de condenar o
uso “errôneo” dos termos, é preciso lembrar que texto escrito nunca será o espelho perfeito
da vida real de uma pessoa. Isso é uma impossibilidade, seja o texto autodiegético
ou não. A narrativa escrita é uma construção discursiva: não é possível
transpor a vida tal como ela é para a matéria narrativa. A sua relação com o
referencial no mundo real é especular, mas não é de transposição idêntica, e
sim antes uma miragem narrativa do real. Por outro lado, o poder da narrativa
ficcional em dizer a “verdade” sobre um autor pode ser ainda maior que no
empreendimento estritamente referencial baseado nos “fatos reais”.
Há sempre interferência da
imaginação na identidade narrativa construída em um texto biográfico, por mais
“real” e verificável que ele queira ser. Da mesma maneira que o autor sempre
revelará “verdades” sobre si em sua produção ficcional, por mais fantasiosa que
ela seja.
Para a literatura
contemporânea, termos como autobiografia, romance autobiográfico e autoficção,
apesar de claramente definidos teoricamente, se tornam conceitos quase inócuos.
A distinção entre as modalidades de escrita autorreferenciais aparece cada vez
mais borrada, fluida e difícil de se fazer. Em uma era em que os escritores
fazem primazia das “narrativas de si”, autores e personagens se confundem e se
constroem nos livros e na imaginação dos leitores, misturando entranhas e
fantasia na verdade possível dos romances.
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