25 de maio de 2019

O que cargas d´água é autoficção?

Pedro Ivo Rocha de Macedo


Não sabemos exatamente o que é fantasia e o que é realidade neste livro – tudo o que sei é que tudo isso eu vivi.
Amélie Nothomb

Milko Mattiacci



As movimentações literárias do novo milênio entrelaçam o autor à sua produção literária em níveis até então inéditos. Se antes o desprestígio criou um campo em que os escritores não estavam inclinados a se colocar abertamente como o sujeito de uma produção literária dita confessional, os produtores do novo milênio se lançam sobre suas vidas em imersão completa para a produção de seus textos ficcionais. Esgarçando as fronteiras entre o ficcional e o real.
Estas narrativas antes à margem do cânone se tornaram a própria tônica da produção no campo literário atual e são comumente agrupadas sob o termo autoficção.
Mas o que exatamente é autoficção?

Na virada do milênio, há uma emergência do interesse social pela subjetividade. O individual se torna prevalente em toda uma gama de discursos e tematizações em que pode ser identificada a coroação do “eu” no primeiro plano. Por todo lado surgem produtos culturais que dão enfoque às experiências subjetivas das pessoas retratadas. Na TV, há uma quantidade imensa de reality shows acompanhando confinamentos, dia a dia de famílias ricas ou comuns, e indivíduos que se submetem a toda uma sorte de experimentos visuais para ter suas vidas publicamente comunicadas. Na internet, com a ampliação das bandas e o fácil acesso a câmeras em telefones celulares, o número de canais pessoais no youtube, vlogs e exposição pessoal dos cotidianos em stories de aplicativos de redes sociais, estampa as vidas de milhões para a absorção alheia. Nas prateleiras das livrarias, em posição de destaque, é possível perceber a popularidade das narrativas de vida, seja em narrativas identificadas como ficcionais, ou nos textos tratados como estritamente verificáveis das biografias e autobiografias.
Entretanto o registro de vidas e experiências humanas individuais para interesse e consumo dos outros não é original dos nossos tempos. Desde que o discurso passou a ser registrado, as narrativas referenciais e biográficas são praticadas, mas é no século XVIII, quando surge um grande interesse pelas narrativas pessoais pré-românticas e românticas, que estes discursos pessoais se consolidam como um gênero que engloba confissões, crônicas, memórias, diários, cartas e autorretratos. Nestes registros textuais, assim como na produção historiográfica e jornalística, existe um esteio na realidade – há algo no mundo real a que eles se reportam: no caso, o algo é o próprio autor.
Por estar ancorado na realidade, o conjunto de narrativas emoldurando indivíduos reais foi colocado na condição de um gênero menor. Se a literatura é material do gênio e imaginação de um artista, o escritor, a narrativa escrita de uma vida real, sabida, experimentada e limitada pela verdade histórica, só podia ser considerada como um produto de menor estro e inventividade. Gasparini (2004) culpa a tradição aristotélica por conceber que a arte não deveria se referir a um caso em particular do mundo real, o que torna o texto referencial uma instância inferior de narrativa.
            Essa carência de prestígio e reconhecimento artístico se dá a despeito do grande interesse dos leitores, ou mesmo justamente por conta desse grande interesse. As vanguardas europeias da virada do século XIX para o XX, eram bastante vocais em seu desprezo pelo texto jornalístico e pelos leitores de jornais que consumiam avidamente histórias reais e eram o mercado para os produtos literários referenciais. Diante de um número tão grande de leitores que não leriam sua produção, os intelectuais da belle époque e dos movimentos de vanguarda modernista se afastam de uma possibilidade de literatura individual ou confessional.
            Da mesma maneira, a crítica e os estudos acadêmicos não consideraram que essa modalidade então ultrapassada e ambivalente fosse um objeto de estudo válido para as cátedras que se fundavam. A literatura de essência artística ficcional e imaginativa, a “boa literatura”, prescindia da interferência da realidade nos gêneros poéticos e romanescos, e não haveria motivo para considerar livros cujo texto era biográfico e referencial como matéria literária.
As correntes da crítica literária predominantes do século XX –  seja o formalismo russo, o neo-criticismo norte-americano ou o estruturalismo francês – todas proclamavam que o texto literário deveria se bastar por si e, portanto, não haveria necessidade de considerar os produtores da narrativa ficcional ou seus aspectos biográficos e referenciais.
Biografias e autobiografias não eram, ou não deveriam ser, produzidas por autores de prestígio. Autores que, então, não seriam importantes para a apreensão do trabalho artístico. No influente ensaio A morte do autor, Roland Barthes postula “o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado”. O autor não poderia existir fora do estudo do enunciado, e, portanto, à academia não interessava a tematização ampla dos gêneros biográficos.
Mas o autor era uma figura renitente, e insistiu em ressuscitar, amparado pelo interesse nunca abandonado dos leitores por sua figura. Como assinala Beatriz Sarlo, “não fomos convencidos, nem pela teoria nem por nossa experiência, de que a ficção seja, sempre e antes de tudo, um apagamento completo da vida”. O cenário de rejeição a esta modalidade narrativa  começa a mudar entre os anos 1970 e 1980, quando as correntes acadêmicas de estudos literários retiram a mirada exclusiva na narrativa, para render de volta um papel ativo ao leitor e ao entorno da obra literária, incluindo seu produtor e objeto temático no mundo real.
O teórico fenomenologista Philippe Lejeune tem obra instrumental para que a narrativa referencial seja recolocada como objeto da crítica literária. Em O pacto autobiográfico, faz-se um apanhado sistematizado das narrativas autorreferenciais, definindo a autobiografia, reconhecendo sua importância como gênero e separando sua modalidade de ficcionalização no romance autobiográfico.
Na proposição clássica de Philippe Lejeune, as narrativas autobiográficas são, em essência, contratuais. O escritor e o leitor firmam um acordo, que não precisa ser expresso de que um está dizendo a verdade sobre uma vida; verdade que o outro, ao recebê-la, tomará como um reflexo da realidade. Esta compreensão contratual bem serve aos textos que podem ser classificados a partir de sua proposição: autobiografia, romance autobiográfico e, em seguida, autoficção.

Autobiografia

A biografia é o relato da vida de um ser humano. Originalmente tematizando apenas os indivíduos célebres, as primeiras biografias tinham o objetivo de ser um material informativo, servindo para propagar os feitos e marcas de homens que marcaram o seu tempo. A biografia tradicional é o produto de um autor que, ancorado por registros históricos e documentos, reconstrói o percurso da vida de um ser humano cuja história pessoal seria relevante para o seu país e o mundo, deixando marcas suficientes para que sua história merecesse ser contada.
A autobiografia é uma variação da primeira, com a distinção crucial de ser escrita pelo próprio autor. A definição proposta em 1970 por Jean Starobinski é bastante sucinta: “a biografia de uma pessoa escrita por ela mesma”, em que o “narrador” é idêntico ao “herói da narração”. Mas é a definição estabelecida cinco anos depois por Lejeune que viria a se consagrar como a referência principal nos estudos sobre a modalidade. Ele expressa que a autobiografia é uma “narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. O autor considera que só é possível autobiografia e uma leitura íntima desta quando há unicidade entre o narrador, o personagem e o autor, e se estabelece, então, um “pacto autobiográfico” com o leitor.  


Romance autobiográfico

No contexto de desprestígio do século XX, autobiografias não eram bem vistas por intelectuais e crítica. A fronteira entre ficção e biografia foi desafiada, com cautelas e ressalvas, com o surgimento do romance autobiográfico ou roman personnel, que misturava os dois códigos incompatíveis do ficcional e do autorreferencial. Nesta nova modalidade híbrida, a vida do próprio autor aparece em um texto como ficção: sua vida real servia de matéria e base para o labor artístico e estilístico – literário – desenvolvido a partir dos fatos reais. Entretanto, mesmo quando produzido por escritores de renome, o romance autobiográfico foi mantido à margem dos principais debates acadêmicos em literatura, muitas vezes se desconsiderando seu caráter referencial em detrimento do trabalho ficcional.
No romance autobiográfico, o autor não necessariamente anunciava suas intenções pessoais (possivelmente para evitar a depreciação), mas pode haver nele elementos distintos para que o leitor acredite que o texto seja a representação verdadeira do passado do autor (narrativa autodiegética, identificação subjetiva do narrador com o autor e personagem, verificabilidade dos fatos relatados). Para Lejeune, o pacto entre o escritor e o leitor, diferentemente do que se fazia nos relatos autobiográficos conhecidos até então, é um pacto romanesco ou fantasmático, em que o leitor consideraria o elemento ficcional e fantasioso adicionado à vida real tornada literatura: “o leitor é assim convidado a ler os romances não somente como ficções abordando uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasias reveladoras de um indivíduo”.
Para melhor categorizar a posição distinta de romances e autobiografias nessas obras, Lejeune, na edição original de sua obra, oferece um quadro esquemático que tabula os vários tipos de narrativas autobiográficas que poderiam ser encontradas. A utilização do nome próprio ao longo do discurso era, crucial para a identificação do autor como narrador e personagem. Essa unicidade onomástica é o que caracteriza para ele a autobiografia tradicional. Já no romance autobiográfico o personagem ou não estaria nomeado ou deveria ter um nome diferente do autor, restando ao leitor identificá-lo pela percepção de elementos que coincidissem com informações de que ele dispusesse sobre a biografia do autor.
Não obstante, o quadro proposto por Lejeune não estava completo. Havia ali dois pontos cegos para a qualificação das narrativas. Uma das categorias em branco se daria quando o nome do autor é diferente do nome do personagem autobiografado (com a ressalva dos pseudônimos, noms de plume) e mesmo assim o texto se apresenta como um relato referencial baseado em sua vida real. Outro ponto vazio, e esse é o que melhor nos interessa, aconteceria quando o autor se identificasse pelo nome próprio em uma obra, mas ainda assim os eventos narrados e a intriga produzida fossem matéria estrita de sua imaginação – fatos que não aconteceram. Sobre este segundo ponto cego, afirma Lejeune: “nada impediria que a coisa existisse, e seria talvez uma contradição interna da qual se poderia extrair efeitos interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo me vem à mente”. Naquele momento, parecia uma possibilidade ainda não explorada, e, de fato, não se apresentavam exemplos à época da publicação de O pacto autobiográfico.

Autoficção

Não demora muito, entretanto, para o aparecimento de um exemplo da “contradição interna” de “efeitos interessantes”. O ponto cego de Lejeune ganha nome quando o escritor e professor universitário francês Serge Doubrovsky, inspirado pela obra do primeiro, publica o romance Fils em 1977. No texto, Doubrovsky se apresenta ao mesmo tempo como narrador e personagem, mas, no pequeno ensaio paralelo ao seu livro, ele afirma que os eventos narrados são fictícios. O narrador é ele, mas a história não é real. Estava ali preenchida a lacuna, e, ao mesmo tempo, criada uma nova modalidade de narrativa que desafia os limites entre ficção e realidade. O próprio Doubrovsky propõe um novo termo para designar o texto que escreveu, ressaltando a dimensão psicanalítica que um autor assume ao fazer-se personagem. Mal sabia ele como esta proposição seria influente para a produção das quatro décadas que se seguiram. O livro foi identificado como autoficção.
Autoficção designa em sua concepção, portanto, o texto narrativo em que o autor é o personagem principal, mas é também um texto estritamente ficcional, em que os eventos narrados são produtos da imaginação do seu criador. Para Gerard Genette, autoficção se dá quando “um narrador identificado ao autor produz uma narrativa de ficção homodiegética”, mas vai além: ele propõe que o autor da autoficção, de forma deliberadamente contraditória, sugere ao leitor: “eu, o autor, vou lhes contar uma história da qual eu sou o herói, mas que nunca me aconteceu”.
De posse de uma definição clara poderíamos tentar classificar a produção literária autorreferencial contemporânea. Autoficção seria basicamente isso: um texto literário em que o autor se coloca como o personagem principal de eventos que ele nunca viveu, mas de cuja ação é o sujeito.
Mas não é tão simples.
O termo autoficção vem sendo empregado livremente, tanto pela crítica acadêmica quanto pela imprensa, para abrigar de modo indiscriminado qualquer narrativa ficcionalizada de aspectos autobiográficos e não apenas aquelas cobertas pela definição do seu criador.
No Brasil, o manto da autoficção cobre textos com estratégias diferentes de ficcionalização da vida de seu produtor. Obras distintas de escritores como João Gilberto Noll (Berkeley em Bellagio, Lorde), Cristóvão Tezza (O filho eterno), Julian Fuks (A resistência), Luiz Ruffato (De mim já nem se lembra), Ricardo Lísias (O divórcio, Delegado Tobias) entre tantas outras positivamente recepcionadas em premiações e nos novos estudos acadêmicos.
Não caberia aqui uma análise de como cada uma dessas obras caminha na interseção de biografia e ficção. Mas é certo que em grande parte dos casos, trata-se como autoficção (narrativas de episódios inexistentes na vida de um escritor real) aquilo que se usava chamar de romance autobiográfico (ficcionalização dos eventos reais de uma vida).
Antes de condenar o uso “errôneo” dos termos, é preciso lembrar que texto escrito nunca será o espelho perfeito da vida real de uma pessoa. Isso é uma impossibilidade, seja o texto autodiegético ou não. A narrativa escrita é uma construção discursiva: não é possível transpor a vida tal como ela é para a matéria narrativa. A sua relação com o referencial no mundo real é especular, mas não é de transposição idêntica, e sim antes uma miragem narrativa do real. Por outro lado, o poder da narrativa ficcional em dizer a “verdade” sobre um autor pode ser ainda maior que no empreendimento estritamente referencial baseado nos “fatos reais”.
Há sempre interferência da imaginação na identidade narrativa construída em um texto biográfico, por mais “real” e verificável que ele queira ser. Da mesma maneira que o autor sempre revelará “verdades” sobre si em sua produção ficcional, por mais fantasiosa que ela seja.
Para a literatura contemporânea, termos como autobiografia, romance autobiográfico e autoficção, apesar de claramente definidos teoricamente, se tornam conceitos quase inócuos. A distinção entre as modalidades de escrita autorreferenciais aparece cada vez mais borrada, fluida e difícil de se fazer. Em uma era em que os escritores fazem primazia das “narrativas de si”, autores e personagens se confundem e se constroem nos livros e na imaginação dos leitores, misturando entranhas e fantasia na verdade possível dos romances.  

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