Aline Teixeira da Silva Lima
Série models V, de Rosana Paulino |
Em
2016, cursei, na UnB, uma disciplina, ministrada pela professora Lucía Tennina,
sobre literatura marginal das periferias de São Paulo e sobre campo literário.
Na construção do meu conhecimento, ao longo do curso, fui compreendendo que o termo
“marginal” está relacionado à “margem”, isto é, beirada, borda, o que, em nível
social, significa aquele que não está inserido no centro, trata-se, portanto,
de uma posição geográfica, conceito o qual faz referência direta à exclusão,
pois remete aos sujeitos os quais, por alguma razão (geralmente pela classe),
são deslocados para fora da zona central. Esses indivíduos marginalizados, uma
vez que não habitam os centros urbanos, localizam-se na periferia.
À
vista disso, ao associar literatura com o adjetivo “marginal”, estamos
classificando “as obras literárias produzidas e vinculadas à margem do corredor
editorial, que não pertencem ou que se opõe aos cânones estabelecidos, que são
de autoria de escritores originários de grupos sociais marginalizados, ou
ainda, que tematizam o que é peculiar aos sujeitos e espaços tidos como
marginais” (NASCIMENTO, 2009, pp. 20-21). Nessa estética literária, é
perceptível, dentre outras características próprias, um nível afetivo, bem como
um cunho social e político, haja vista que esses escritores, por meio da
literatura, se posicionam, denunciam os problemas do meio onde estão inseridos
e firmam suas identidades, porquanto suas obras permitem “resgatar memórias individuais
ou coletivas” (FREITAS in CARVALHO, 2008, p. 233). Contudo, à época, não
relacionei a literatura marginal da periferia com os estudos de gênero, mesmo
já possuindo um interesse em estudar a representação da mulher na literatura.
Porém,
ano passado, me deparei com o livro mais recente, até então, da professora
Lucía Tennina: Cuidado com os poetas!
Literatura e periferia na cidade de São Paulo. A obra como um todo (incrível
e necessária) é um estudo aprofundado sobre essa literatura, problematizando as
questões em torno do campo literário a partir das produções da literatura
marginal da periferia paulista. E, no maravilhoso capítulo 3, “As poetas da
periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”, a pesquisadora faz
justamente a associação da literatura marginal da periferia com os estudos de
gênero, ao dedicar esse capítulo à análise literária de autoria feminina,
principalmente a de autoria negra feminina, como as poetas Dina Di, considerada
a primeira mulher a alcançar o protagonismo na cena do rap brasileiro, Raquel Almeida, Dinha e Elizandra Souza, cujo poema
“Em legítima defesa” me foi apresentado nesta ocasião.
Em Legítima Defesa
Só estou avisando, vai mudar o placar....
Já estou vendo nos varais os testículos dos homens,
Já estou vendo nos varais os testículos dos homens,
que não sabem se comportar
Lembra da Cabeleireira que mataram, outro dia,
... E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade...
Só estou avisando, vai mudar o placar....
Lembra da Cabeleireira que mataram, outro dia,
... E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade...
Só estou avisando, vai mudar o placar....
A manchete de amanhã terá uma mulher,
de cabeça erguida dizendo:
- Matei! E não me arrependo!
Quando o apresentador questioná-la,
- Matei! E não me arrependo!
Quando o apresentador questioná-la,
ela simplesmente retocará a maquiagem.
Não quer estar feia quando a câmera retornar
Não quer estar feia quando a câmera retornar
e focar em seus olhos, em seus lábios...
Só estou avisando, vai mudar o placar....
Se a justiça é cega, o rasgo na retina pode ser acidental
Afinal, jogar um carro na represa deve ser normal...
Jogar a carne para os cachorros procedimento casual...
Só estou avisando, vai mudar o placar...
Dizem que mulher sabe vingar
Talvez ela não mate com as mãos, mas mande matar...
Talvez ela não atire, mas sabe como envenenar...
Talvez ela não arranque os olhos, mas sabe como cegar...
Só estou avisando, vai mudar o placar... (SOUZA, 2012, p. 48).
Sabe-se que na literatura, de maneira geral, a
voz das mulheres é, muitas vezes, silenciada e/ou sobreposta por vozes que
falam por elas. Na literatura marginal da periferia não é diferente, pois
Tennina assegura que essa dominação masculina e submissão feminina “pode ser
percebida em grande parte dos escritores da literatura marginal” (TENNINA,
2017, p. 179), porém, a teórica reconhece que existem falas plurais na
periferia, ou seja, a mulher está presente neste espaço, e não mais de maneira
condescendente com a posição a elas relegada, a de segundo plano, em relação ao
homem, já que vem reivindicando seu espaço literário. Essa proposição é muito
bem exemplificada no poema aqui transcrito, de Elizandra Souza[1].
A
poeta, em uma entrevista concedida a Érica Peçanha, declara que a “periferia
tem, assim como o mundo tem, uma infinidade de temas para tratar, não é porque
sou uma escritora da periferia que vou ter que ficar o tempo todo falando de
periferia (...). O meu olhar vai ser de mulher da periferia, mulher negra, mas
nem sempre isso vai estar explícito no meu texto” (TENNINA et al, 2015, p.
163). No poema “Em legítima defesa”, suas palavras se concretizam, visto que a
história narrada não se restringe à periferia, uma vez que a violência de
gênero não escolhe classe social, etnia, ou qualquer outra condição, porque
para sofrer tal violência basta ser mulher. E toda mulher, de acordo com
Schraiber, compartilha com as demais um estatuto de menor valor social (SCHRAIBER
et al., 2005, p. 35), validando, desse modo, de alguma forma, a violência de
gênero.
Ao
analisar o poema, é perceptível que se trata de um eu lírico feminino, apesar
de não haver marcas de gênero no decorrer do texto, mesmo este estando em
primeira pessoa. Essa voz feminina visa alertar os homens sobre o que lhes é
passível de acontecer, caso continuem a agredir suas companheiras. Ainda sobre
o eu poético, não é possível afirmar que ele tenha sofrido algum tipo de
violência doméstica, tendo em vista que este, mesmo em primeira pessoa, como
relatado anteriormente, não discorre especificamente de si, ele expressa, de
forma abrangente, que está cansado dos abusos que as mulheres vêm sofrendo por
seus companheiros. Dessa forma, a partir de uma indignação coletiva, um eu
lírico representante de um eu plural (TENNINA, 2017, p. 214) transmite este
alerta de que se a violência não cessar, a situação irá mudar pela própria
atitude das mulheres, as quais irão revidar, “em legítima defesa”. Essa expressão
aparece apenas no título do poema, salientando que os atos violentos,
retratados no texto, que as mulheres podem vir a cometer, não são gratuitos, são,
na verdade, uma maneira de defesa e de por fim a essa naturalização da
violência de gênero.
Logo
na primeira estrofe já há uma desconstrução da representação feminina
tradicional, em que a mulher é o sexo frágil, haja vista que a primeira reação,
na hipótese de os abusos continuarem, é a reação física (cortar os testículos),
notabilizando-se, assim, uma resistência contundente à estrutura patriarcal que
nos oprime. Ainda nesta estrofe, o eu lírico dialoga com o leitor, com a
intenção de evidenciar que as agressões são negligenciadas pelos órgãos de
justiça responsáveis, tendo em vista que muitas das denúncias não são
atendidas, gerando a impunidade e contribuindo, desse modo, para o aumento do
número de mulheres mortas “nos quatro cantos da cidade”. Portanto, gera-se um
ciclo vicioso, pois, por as mulheres não terem uma proteção jurídica eficiente
do Estado, prevalece, para os agressores, a impunidade, a qual legitima a
violência. Júlio Waiselfisz (2015), corroborando essa ideia, explica que
se a impunidade é amplamente prevalecente nos
homicídios dolosos em geral, com muito mais razão, pensamos, deve ser norma nos
casos de homicídio de mulheres. A normalidade da violência contra a
mulher no horizonte cultural do patriarcalismo justifica, e mesmo “autoriza”
que o homem pratique essa violência, com a finalidade de punir e corrigir
comportamentos femininos que transgridem o papel esperado de mãe, de esposa e
de dona de casa (WAISELFISZ, 2015, p. 75).
Nesse
contexto, a única solução visualizada pelo eu lírico, explicitada nas estrofes
dois e três, em um tom de indignação crescente, é fazer justiça com as próprias
mãos, quebrando “o estereótipo da mulher restrita ao espaço privado e
doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e dona de casa, que vive em função do
mundo masculino” (RIDENTI, 1990, p. 114), visto que estas mulheres, por ele
referidas, não são frágeis e passivas, ao contrário, elas repudiam a dominação
masculina nas relações de gênero, sendo, até mesmo, capazes de matar, sem
demonstração de arrependimento, já que estão defendendo suas próprias vidas.
Por esta razão, na segunda estrofe, quando o eu lírico dá voz à mulher agredida,
ela diz ao apresentador televisivo: “Matei! E não me arrependo”. Ela não
exprime preocupação pelos seus atos. Neste momento, seu único receio é de não estar
bonita ao ser filmada pela câmera. Além disso, ela está orgulhosa de si mesma,
porque é uma sobrevivente. Essa imagem vai contra a figura da mulher agredida
que geralmente é mostrada pela mídia: de humilhada e vitimizada.
Na
última estrofe, o eu lírico ratifica seu descrédito quanto ao Poder Judiciário,
ao declarar a cegueira da Justiça, não no sentido de sua imparcialidade, e sim
de que esta nada faz para auxiliar as vítimas de violência. Logo, o eu poético
reitera a ideia de a mulher resolver o conflito ao seu modo. Assim, utilizando-se
de palavras e expressões do campo semântico da dúvida (“se”, “pode ser”, “deve
ser”, “talvez”), o aviso vai ficando ainda mais direto ao serem descritas explicitamente
as consequências que os homens agressores podem sofrer. É interessante observar
que os versos desta estrofe, mesmo sendo conjecturas, são ameaças de homicídios
premeditados. De acordo com
Saffioti (1999), diferentemente do feminicídio, o homicídio nas mesmas
circunstâncias exige planejamento pela menor força física da mulher.
Em
última análise, o poema tem início e fim com o verso “Só estou avisando, vai mudar o placar...”, além de que este é repetido mais
três vezes ao longo do texto poético, dando ritmo aos versos e encadeamento às
ideias. Outro aspecto relevante quanto a este verso é que “a
autora parodia o discurso esportivo, tão tipicamente masculino, usando a ideia
do ‘placar’ para referir-se ao ‘jogo de poderes’ entre homens e mulheres”
(TENNINA, 2017, p. 214) com a finalidade de reforçar a mensagem de resistência e luta das mulheres em relação às agressões
sofridas. Dando continuidade a este “jogo”, poderíamos considerar o juiz como o
Estado, o qual nem sempre apita em favor da mulher, já que, muitas vezes, não
protege juridicamente a vítima de violência doméstica, faltando acolhimento a
essa mulher e punição aos agressores. A torcida masculina, vestida com o
uniforme da cultura patriarcal, também não torce a nosso favor, nem vibra
quando fazemos algum gol. Porém, mesmo ainda com um placar não favorável,
marcamos um gol todas as vezes que, de alguma maneira, conseguimos dar
visibilidade à violência de gênero e expor o desequilíbrio
social da nossa sociedade, no que tange às relações de gênero, possibilitando, além de uma reflexão
sobre a temática, novas perspectivas e ponderações que favoreçam as mulheres
vítimas de violência doméstica. Elizandra Souza marcou um golaço ao fazer uma
representação literária da violência de gênero, em que a mulher não é silenciada,
nem vitimizada, ao contrário, ela é empoderada, ela é a própria resistência. Dessa
forma, só estou avisando, vai mudar o placar...
______________________________________
[1] Elizandra Souza nasceu na periferia de São Paulo, mas
cresceu em Nova Soure, interior da Bahia. Aos 13 anos retornou à capital
paulista e iniciou seu diálogo com a cultura hip-hop e, mais tarde, com a
poesia. Desde 2004, declama suas poesias no Sarau da Cooperifa. A escritora é
técnica em Comunicação Visual e graduada em Comunicação Social, com habilitação
em Jornalismo.
Referências
CARVALHO, Ana Cristina. “O experimentalismo em Feliz ano novo”. In: BRANDÃO, Saulo. Literatura de Subversão: três estudos.
Recife: Edições Bagaço, 2008.
NASCIMENTO,
Érica Peçanha do. Vozes marginais na
literatura. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009.
RIDENTI,
Marcelo Siqueira. “As mulheres na política brasileira: os anos de chumbo”. In: Tempo social. São Paulo, v.1, pp. 113-128,
1990
SAFFIOTI,
Heleieth, “Já se mete a colher em briga de marido e mulher”. In: São Paulo em perspectiva, São Paulo, v.
13, n. 4, pp. 82-91, 1999.
SCHRAIBER, Lilia Bilma et al. Violência dói e não é direito: a
violência contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Editora
Unesp, 2005.
SOUZA,
Elizandra. Águas da cabaça. São
Paulo: Edição do Autor, 2012.
TENNINA, Lucía et al. Polifonias marginais. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2006.
___________________.
Cuidado com os poetas! Literatura e
periferia da cidade de São Paulo. Porto Alegre: Zouk, 2017.
WAISELFISZ, Júlio Jacob. Mapa da violência 2015 – homicídios de mulher no Brasil. Flacso
Brasil: Brasília. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br Acesso em 03 de abril de 2019.
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