18 de maio de 2019

Só estou avisando, vai mudar o placar: A violência de gênero no poema “Em legítima defesa”, de Elizandra Souza


Aline Teixeira da Silva Lima

Série models V, de Rosana Paulino


Em 2016, cursei, na UnB, uma disciplina, ministrada pela professora Lucía Tennina, sobre literatura marginal das periferias de São Paulo e sobre campo literário. Na construção do meu conhecimento, ao longo do curso, fui compreendendo que o termo “marginal” está relacionado à “margem”, isto é, beirada, borda, o que, em nível social, significa aquele que não está inserido no centro, trata-se, portanto, de uma posição geográfica, conceito o qual faz referência direta à exclusão, pois remete aos sujeitos os quais, por alguma razão (geralmente pela classe), são deslocados para fora da zona central. Esses indivíduos marginalizados, uma vez que não habitam os centros urbanos, localizam-se na periferia.
À vista disso, ao associar literatura com o adjetivo “marginal”, estamos classificando “as obras literárias produzidas e vinculadas à margem do corredor editorial, que não pertencem ou que se opõe aos cânones estabelecidos, que são de autoria de escritores originários de grupos sociais marginalizados, ou ainda, que tematizam o que é peculiar aos sujeitos e espaços tidos como marginais” (NASCIMENTO, 2009, pp. 20-21). Nessa estética literária, é perceptível, dentre outras características próprias, um nível afetivo, bem como um cunho social e político, haja vista que esses escritores, por meio da literatura, se posicionam, denunciam os problemas do meio onde estão inseridos e firmam suas identidades, porquanto suas obras permitem “resgatar memórias individuais ou coletivas” (FREITAS in CARVALHO, 2008, p. 233). Contudo, à época, não relacionei a literatura marginal da periferia com os estudos de gênero, mesmo já possuindo um interesse em estudar a representação da mulher na literatura.
Porém, ano passado, me deparei com o livro mais recente, até então, da professora Lucía Tennina: Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. A obra como um todo (incrível e necessária) é um estudo aprofundado sobre essa literatura, problematizando as questões em torno do campo literário a partir das produções da literatura marginal da periferia paulista. E, no maravilhoso capítulo 3, “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”, a pesquisadora faz justamente a associação da literatura marginal da periferia com os estudos de gênero, ao dedicar esse capítulo à análise literária de autoria feminina, principalmente a de autoria negra feminina, como as poetas Dina Di, considerada a primeira mulher a alcançar o protagonismo na cena do rap brasileiro, Raquel Almeida, Dinha e Elizandra Souza, cujo poema “Em legítima defesa” me foi apresentado nesta ocasião.  

Em Legítima Defesa
Só estou avisando, vai mudar o placar....
Já estou vendo nos varais os testículos dos homens,
que não sabem se comportar
Lembra da Cabeleireira que mataram, outro dia,
... E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade...
Só estou avisando, vai mudar o placar....

A manchete de amanhã terá uma mulher,
 de cabeça erguida dizendo:
- Matei! E não me arrependo!
Quando o apresentador questioná-la,
ela simplesmente retocará a maquiagem.
Não quer estar feia quando a câmera retornar
e focar em seus olhos, em seus lábios...
Só estou avisando, vai mudar o placar....

Se a justiça é cega, o rasgo na retina pode ser acidental
Afinal, jogar um carro na represa deve ser normal...
Jogar a carne para os cachorros procedimento casual...
Só estou avisando, vai mudar o placar...
Dizem que mulher sabe vingar
Talvez ela não mate com as mãos, mas mande matar...
Talvez ela não atire, mas sabe como envenenar...
Talvez ela não arranque os olhos, mas sabe como cegar...

Só estou avisando, vai mudar o placar...
(SOUZA, 2012, p. 48).

Sabe-se que na literatura, de maneira geral, a voz das mulheres é, muitas vezes, silenciada e/ou sobreposta por vozes que falam por elas. Na literatura marginal da periferia não é diferente, pois Tennina assegura que essa dominação masculina e submissão feminina “pode ser percebida em grande parte dos escritores da literatura marginal” (TENNINA, 2017, p. 179), porém, a teórica reconhece que existem falas plurais na periferia, ou seja, a mulher está presente neste espaço, e não mais de maneira condescendente com a posição a elas relegada, a de segundo plano, em relação ao homem, já que vem reivindicando seu espaço literário. Essa proposição é muito bem exemplificada no poema aqui transcrito, de Elizandra Souza[1].
A poeta, em uma entrevista concedida a Érica Peçanha, declara que a “periferia tem, assim como o mundo tem, uma infinidade de temas para tratar, não é porque sou uma escritora da periferia que vou ter que ficar o tempo todo falando de periferia (...). O meu olhar vai ser de mulher da periferia, mulher negra, mas nem sempre isso vai estar explícito no meu texto” (TENNINA et al, 2015, p. 163). No poema “Em legítima defesa”, suas palavras se concretizam, visto que a história narrada não se restringe à periferia, uma vez que a violência de gênero não escolhe classe social, etnia, ou qualquer outra condição, porque para sofrer tal violência basta ser mulher. E toda mulher, de acordo com Schraiber, compartilha com as demais um estatuto de menor valor social (SCHRAIBER et al., 2005, p. 35), validando, desse modo, de alguma forma, a violência de gênero.
Ao analisar o poema, é perceptível que se trata de um eu lírico feminino, apesar de não haver marcas de gênero no decorrer do texto, mesmo este estando em primeira pessoa. Essa voz feminina visa alertar os homens sobre o que lhes é passível de acontecer, caso continuem a agredir suas companheiras. Ainda sobre o eu poético, não é possível afirmar que ele tenha sofrido algum tipo de violência doméstica, tendo em vista que este, mesmo em primeira pessoa, como relatado anteriormente, não discorre especificamente de si, ele expressa, de forma abrangente, que está cansado dos abusos que as mulheres vêm sofrendo por seus companheiros. Dessa forma, a partir de uma indignação coletiva, um eu lírico representante de um eu plural (TENNINA, 2017, p. 214) transmite este alerta de que se a violência não cessar, a situação irá mudar pela própria atitude das mulheres, as quais irão revidar, “em legítima defesa”. Essa expressão aparece apenas no título do poema, salientando que os atos violentos, retratados no texto, que as mulheres podem vir a cometer, não são gratuitos, são, na verdade, uma maneira de defesa e de por fim a essa naturalização da violência de gênero.
Logo na primeira estrofe já há uma desconstrução da representação feminina tradicional, em que a mulher é o sexo frágil, haja vista que a primeira reação, na hipótese de os abusos continuarem, é a reação física (cortar os testículos), notabilizando-se, assim, uma resistência contundente à estrutura patriarcal que nos oprime. Ainda nesta estrofe, o eu lírico dialoga com o leitor, com a intenção de evidenciar que as agressões são negligenciadas pelos órgãos de justiça responsáveis, tendo em vista que muitas das denúncias não são atendidas, gerando a impunidade e contribuindo, desse modo, para o aumento do número de mulheres mortas “nos quatro cantos da cidade”. Portanto, gera-se um ciclo vicioso, pois, por as mulheres não terem uma proteção jurídica eficiente do Estado, prevalece, para os agressores, a impunidade, a qual legitima a violência. Júlio Waiselfisz (2015), corroborando essa ideia, explica que
se a impunidade é amplamente prevalecente nos homicídios dolosos em geral, com muito mais razão, pensamos, deve ser norma nos casos de homicídio de mulheres. A normalidade da violência contra a mulher no horizonte cultural do patriarcalismo justifica, e mesmo “autoriza” que o homem pratique essa violência, com a finalidade de punir e corrigir comportamentos femininos que transgridem o papel esperado de mãe, de esposa e de dona de casa (WAISELFISZ, 2015, p. 75).

Nesse contexto, a única solução visualizada pelo eu lírico, explicitada nas estrofes dois e três, em um tom de indignação crescente, é fazer justiça com as próprias mãos, quebrando “o estereótipo da mulher restrita ao espaço privado e doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e dona de casa, que vive em função do mundo masculino” (RIDENTI, 1990, p. 114), visto que estas mulheres, por ele referidas, não são frágeis e passivas, ao contrário, elas repudiam a dominação masculina nas relações de gênero, sendo, até mesmo, capazes de matar, sem demonstração de arrependimento, já que estão defendendo suas próprias vidas. Por esta razão, na segunda estrofe, quando o eu lírico dá voz à mulher agredida, ela diz ao apresentador televisivo: “Matei! E não me arrependo”. Ela não exprime preocupação pelos seus atos. Neste momento, seu único receio é de não estar bonita ao ser filmada pela câmera. Além disso, ela está orgulhosa de si mesma, porque é uma sobrevivente. Essa imagem vai contra a figura da mulher agredida que geralmente é mostrada pela mídia: de humilhada e vitimizada.
Na última estrofe, o eu lírico ratifica seu descrédito quanto ao Poder Judiciário, ao declarar a cegueira da Justiça, não no sentido de sua imparcialidade, e sim de que esta nada faz para auxiliar as vítimas de violência. Logo, o eu poético reitera a ideia de a mulher resolver o conflito ao seu modo. Assim, utilizando-se de palavras e expressões do campo semântico da dúvida (“se”, “pode ser”, “deve ser”, “talvez”), o aviso vai ficando ainda mais direto ao serem descritas explicitamente as consequências que os homens agressores podem sofrer. É interessante observar que os versos desta estrofe, mesmo sendo conjecturas, são ameaças de homicídios premeditados. De acordo com Saffioti (1999), diferentemente do feminicídio, o homicídio nas mesmas circunstâncias exige planejamento pela menor força física da mulher.
Em última análise, o poema tem início e fim com o verso “Só estou avisando, vai mudar o placar...”, além de que este é repetido mais três vezes ao longo do texto poético, dando ritmo aos versos e encadeamento às ideias. Outro aspecto relevante quanto a este verso é que “a autora parodia o discurso esportivo, tão tipicamente masculino, usando a ideia do ‘placar’ para referir-se ao ‘jogo de poderes’ entre homens e mulheres” (TENNINA, 2017, p. 214) com a finalidade de reforçar a mensagem de resistência e luta das mulheres em relação às agressões sofridas. Dando continuidade a este “jogo”, poderíamos considerar o juiz como o Estado, o qual nem sempre apita em favor da mulher, já que, muitas vezes, não protege juridicamente a vítima de violência doméstica, faltando acolhimento a essa mulher e punição aos agressores. A torcida masculina, vestida com o uniforme da cultura patriarcal, também não torce a nosso favor, nem vibra quando fazemos algum gol. Porém, mesmo ainda com um placar não favorável, marcamos um gol todas as vezes que, de alguma maneira, conseguimos dar visibilidade à violência de gênero e expor o desequilíbrio social da nossa sociedade, no que tange às relações de gênero, possibilitando, além de uma reflexão sobre a temática, novas perspectivas e ponderações que favoreçam as mulheres vítimas de violência doméstica. Elizandra Souza marcou um golaço ao fazer uma representação literária da violência de gênero, em que a mulher não é silenciada, nem vitimizada, ao contrário, ela é empoderada, ela é a própria resistência. Dessa forma, só estou avisando, vai mudar o placar...
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[1] Elizandra Souza nasceu na periferia de São Paulo, mas cresceu em Nova Soure, interior da Bahia. Aos 13 anos retornou à capital paulista e iniciou seu diálogo com a cultura hip-hop e, mais tarde, com a poesia. Desde 2004, declama suas poesias no Sarau da Cooperifa. A escritora é técnica em Comunicação Visual e graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo.

Referências

CARVALHO, Ana Cristina. “O experimentalismo em Feliz ano novo”. In: BRANDÃO, Saulo. Literatura de Subversão: três estudos. Recife: Edições Bagaço, 2008.
NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009.
RIDENTI, Marcelo Siqueira. “As mulheres na política brasileira: os anos de chumbo”. In: Tempo social. São Paulo, v.1, pp. 113-128, 1990
SAFFIOTI, Heleieth, “Já se mete a colher em briga de marido e mulher”. In: São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 13, n. 4, pp. 82-91, 1999.
SCHRAIBER, Lilia Bilma et al. Violência dói e não é direito: a violência contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
SOUZA, Elizandra. Águas da cabaça. São Paulo: Edição do Autor, 2012.
TENNINA, Lucía et al. Polifonias marginais. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006.
___________________. Cuidado com os poetas! Literatura e periferia da cidade de São Paulo. Porto Alegre: Zouk, 2017.
WAISELFISZ, Júlio Jacob. Mapa da violência 2015 – homicídios de mulher no Brasil. Flacso Brasil: Brasília. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br Acesso em 03 de abril de 2019.

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