4 de maio de 2019

Sobre o crime ambiental de Mariana e as possibilidades do gesto testemunhal da tragédia




Karina Gomes Barbosa


Vestígios de Bento Rodrigues em dezembro de 2016, quando nos aproximamos da catástrofe. Foto: André Luís Carvalho


          Era dezembro de 2015 quando pisei no que já foi Bento Rodrigues pela primeira vez. Nunca havia ido ao subdistrito quando ainda era um lugar; e foi apenas o fato de o território ter sido tornado um não-lugar pela lama da mineração que me levou até lá. Ali pude ver, ao lado de estudantes do curso de Jornalismo e de meu marido, a face da catástrofe (e me arrependo de nunca ter visto o passado irrecuperável de Bento). Desde então, André e eu, professores do curso de Jornalismo do campus de Mariana da Universidade Federal de Ouro Preto, tivemos nossa relação com a cidade, com a mineração, profundamente alterada. Ao lado de sujeitos atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão, temos visto como as possibilidades da narrativa testemunhal também são desestruturadas a partir da cultura predatória da mineração.
            O assunto é tratado no livro Maquinação do mundo, em que José Miguel Wisnik garimpa a obra de Carlos Drummond de Andrade em busca das amargas relações entre o poeta e a atividade minerária. A passagem do livro que mais me assombrou narra, já no primeiro capítulo, a trajetória da Matriz do Rosário, em Itabira, cidade natal de Drummond e da Vale (então do Rio Doce), a maior mineradora brasileira. Em novembro de 1970, conta Wisnik, o telhado e as torres da construção do século XIX desabaram. O que restou da igreja foi então “sumariamente demolido por um grupo em que se confundiam bombeiros com técnicos e dirigentes da Companhia Vale do Rio Doce” (WISNIK, 2018, p. 36). O trabalho das marretas, tratores e guindastes ignorou os impactos sobre o patrimônio histórico e, como lembra o autor, não se considerou a possibilidade de uma restauração ou houve algum laudo sobre o estado das estruturas da igreja.
            A presença dos funcionários da Vale na derrubada do prédio poderia ser fortuita, mas no trecho seguinte Wisnik desvela a malha que cercava toda a cidade natal Drummond, que fez desaparecer uma montanha, o Pico do Cauê, transformado em lingotes de ferro e rejeitos de mineração: “a crônica local chama a atenção para o provável papel desempenhado, no desabamento, pelos ‘reflexos sísmicos causados pelas constantes explosões na mina do Cauê’” (Idem, ibidem).
            Num outro novembro, de 2015, outra igreja, a de São Bento, foi varrida do solo mineiro pela maquinação do mundo. Naquele dia 5, uma tarde de quinta-feira nublada em Mariana, a sirene não tocou – sequer havia sirene. A lama da Barragem de Fundão levou cerca de 15 minutos para chegar e outros poucos para destruir o lugar, povoado desde os 1700 e hoje imobilizado em lama seca. Da igreja sobraram alguns tijolos da fundação de adobe, a pia batismal. Na saída do subdistrito, a onda de rejeito minerário encontrou o rio Gualaxo e forjou um curso contaminado até o oceano. Passados três anos e meio, os escombros da Igreja de São Bento, do início do século XVIII, são mais uma lembrança de tudo o que a mineração tira – e do pouco que devolve ao chão onde escava.
            Hoje, quando os fiéis moradores (ex-moradores?) das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu, em Mariana, e Gesteira, na vizinha Barra Longa, querem rezar a seus santos, vão até um prédio quadrado, adesivado em branco com logomarcas da Fundação Renova, localizado em uma rua central da sede de Mariana. A chamada reserva técnica é uma sala anódina onde, guiados – vigiados? – por assessores da fundação Frankenstein criada pela Samarco e suas controladoras Vale e BHP-Billiton, atingidos e atingidas podem ver as imagens sacras recuperadas da lama e ainda sob restauração. A imagem de São Bento continua soterrada. Os fiéis mantêm esperanças de encontrá-la.
            Em um estado erguido à sombra da mineração e da igreja católica (e das longas sombras que as torres barrocas projetam nas ruas de pedra), as marcas da perda dos lugares de fé são muito tangíveis diante de tragédias socioambientais como o rompimento da Barragem do Fundão, em 2015, e da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, em janeiro deste ano. Mas estão longe de serem as únicas. A máquina minerária altera radicalmente a natureza da matéria e dos patrimônios sobre o qual age, diz Wisnik (2018, p. 40), mas altera também aquilo que não se pode forjar: os afetos e as pontes que se constroem entre sujeitos.
            Nesses três anos e meio, nós que não perdemos nada e acompanhamos esses grupos, temos atestado a natureza predatória da mineração. Não se trata apenas de extrair o minério, de tratar o minério. A mineração arranca tudo dos lugares onde há riqueza. Suas “maquinações sem peias (…) vão convertendo compactas montanhas de minérios em precárias e periclitantes montanhas de rejeitos” (WISNIK, 2018, p. 38). Primeiro, eles arrancam o pico do Cauê. Depois arrancam a igreja. Depois arrancam as comunidades do lugar. Aí tiram as vidas das pessoas. E quando nem todas as pessoas estão mortas, arrancam-lhes a dignidade, tentam arrancar o direito de falar, perseguem a crença no que dizem. A mineração gera renda, gera lucro, constrói um futuro de ferro, aço e nanotecnologia. Mas sua destruição das subjetividades talvez seja o mais cruel legado da indústria extrativista.
            A investida sobre o direito de fala dos e das atingidas de Bento Rodrigues começou muito cedo, pouco depois do rompimento. Dona Cenita precisou de um laudo médico para comprovar que não podia torcer a roupa com as mãos para receber novamente a máquina de lavar que dizia ter perdido[1]. Outra mulher, Priscila Monteiro, grávida de dois meses, perdeu o bebê durante o rompimento. A Samarco nunca reconheceu o feto como a 20o vítima e disse que a catástrofe não seria suficiente para provocar um aborto[2].
            Muitos atingidos e atingidas não tinham documentos para comprovar a posse de terras, passadas por gerações, ou de bens como automóveis. Brigaram até para serem reconhecidos como atingidos – e não impactados, como teima em insistir o aparato jurídico acionado pelas mineradoras. Legitimados, podem ser incluídos nas listas de reparação e reassentamento.
            O colapso da barragem construída a montante – triste herança lexical que as catástrofes nos legaram, hoje dominamos o básico sobre estrutura de barragens – gerou uma cascata de síndromes de estresse pós-traumático nas populações que tiveram seus modos de vida dizimados. Em muitos casos, a mineradora negou acompanhamento psicológico, se negou a fornecer os medicamentos prescritos e não reconheceu o rompimento de Fundão como catalizador para os diversos problemas psiquiátricos e de saúde mental que os afligem até hoje. Em diversos casos, investigaram as vidas pregressas dos sujeitos para acusar as chamadas condições preexistentes. Isso a despeito da avalanche de relatos, e agora estudos, em alguns casos, comprovando o aumento de casos de alcoolismo, consumo de drogas, violência doméstica, gravidez na adolescência, suicídios, estupros, prostituição.
            Bento Rodrigues não era um lugar idílico. Nenhum lugar o é, ainda que alguns sejam mais distópicos que outros. Mas enquanto existia, Bento, ou “o Bento”, como os de lá gostam de dizer, permitia conservar a esperança de futuro, de mudanças, de uma vida melhor; permitia estruturar a vida, e o tempo, com memórias de passado e perspetivas de futuro. Como a matriz que Drummond via da janela de casa, em Itabira, em que as rachaduras do tempo não legitimavam sua demolição sumária. Mas a mineração prefere apontar as culpas daquilo que extrai de nossas comunidades, de cada um de nós, ao tempo, à chuva, a nós mesmos, à fortuna.
            Enquanto se isenta de culpa, sonega direitos e nega verdades subjetivas, essa cultura extrativista consegue destituir os atingidos da premência do testemunho, mas não ao extrair deles a potência da fala, e sim buscando destituir a crença em quem dá testemunho. Os sujeitos que viveram o 5 de novembro e sobreviveram para lembrá-lo ou contá-lo experienciaram um acontecimento catastrófico típico de nossa sociedade do risco, onde tudo está por um fio e as vidas são precificadas em relatórios de gerenciamento de risco. Acontecimentos como esse deixam atrás de si um rastro de sujeitos traumatizados, e a cena traumática se caracteriza, segundo Seligmann-Silva, por uma “perenidade insuperável” (2008, p. 103). Ao estilhaçar a linearidade temporal dos sujeitos, o trauma se apresenta como “uma memória de um passado que não passa (Idem, p. 105).
            Depois do rompimento da Barragem de Fundão, quaisquer futuros possíveis foram usurpados – predados, como o pico do Cauê – do horizonte desses sujeitos, do horizonte de Bento, congelado no tempo. Nesse contexto, o testemunho busca integrar o passado traumático. É condição de sobrevivência (SELIGMANN-SILVA, 2008). Busca restituir ao sobrevivente as condições de se reintegrar à vida, de renascer.
            Ao longo desses três anos, a comunidade de Bento falou. Logo após o rompimento, deram entrevistas, contaram suas histórias. Aos poucos, alguns se retraíram, diante de uma instrumentalização desumanizadora feita por parte da imprensa. Sentiam-se usados e desrespeitados no luto. Um mês depois do acontecimento, em 5 de dezembro, o jornal mineiro Estado de Minas lançou o especial multimídia Vozes de Mariana[3], com testemunhos de sobreviventes e inspiração em Svetlana Alexievitch – uma frase de Vozes de Chernobyl abre o especial. Seis meses depois, atores diversos se reuniram em torno do jornal A Sirene, publicação mensal que circula todo dia 5, um alerta simbólico em substituição àquele que a mineradora nunca instalou, feita em confluência entre atingidos, jornalistas, a universidade[4] (curiosamente, há algum tempo a Renova lançou publicação extremamente similar à Sirene em forma e conteúdo, capitalizando – extraindo – as estratégias comunitárias e a lógica de protagonismo dos e das atingidas).
            Existem muitos outros exemplos, e esses são apenas alguns dos circuitos pelos quais os testemunhos dos sobreviventes têm circulado nesses tempos. A fala dos atingidos e das atingidas não é interditada. Ela é, pior, posta à prova. Os testemunhos são como um burburinho dos vaticínios de Cassandra, nos quais ninguém acredita – ou muitos não acreditam. A mineradora não acredita nos sobreviventes. Não acredita, em alguns casos, sequer que sejam sobreviventes. Não acredita nas perdas, nas dores. Exige provas que atestem sua culpa nos males que o rompimento causou – provas que serão avaliadas por ela mesma na figura de sua equipe jurídica. E as provas nunca são admissíveis[5].
            O testemunho dado pelos atingidos e pelas atingidas é daquilo que não os deixa dormir. Alguns fecham os olhos e ainda escutam o que foi classificado como tsunami de lama. Alguns não conseguem fixar residência na sede de Mariana, tão diferente da comunidade rural em que vivam cerca de 600 pessoas. Se mudam rotineiramente, incomodando os setores da Fundação Renova responsáveis pelos aluguéis.
            Ao longo do tempo, a incredulidade da Samarco/Renova/Vale deixou de ser estrepitosa; parou de sair nos jornais. Hoje é mais sutil, ancorada pelo aparato técnico-burocrático de profissionais de diversas áreas que visitam as famílias nas casas alugadas, sondam sobre as expectativas do reassentamento que nunca ocorre. Mas da máquina minerária nomeada por Wisnik não se pode esperar outra coisa: trata-se da “pulsão devoradora do capital na era do aço” (2018, p. 43), que selou sobre Minas Gerais um destino mineral esculpido, primeiro, a ouro artesanal e escravo e, atualmente, a ferro transnacional que sai das montanhas e subsidia o crescimento acelerado da China, da Índia.
             O que nos surpreende é que esse destino mineral parece ter contaminado as pessoas, a cidade, que viveu um ostracismo do século XVIII até os anos 1970, quando a então Samavi aportou; como diria Wisnik, a cultura do ferro se entranhou nas pessoas, nas coisas. A cultura predatória e extrativista da mineração tenta retirar dos e das atingidas o direito de serem cridos. Pela sede de Mariana, ouve-se à meia voz, desde 5 de novembro de 2015, que os atingidos e as atingidas são aproveitadores. Que estão ganhando mais que merecem. Que deveriam sofrer em silêncio, para não atrapalhar a volta das atividades da Samarco na cidade. Que querem demais. Que atrapalham.
            O véu negacionista que paira em setores de Mariana eventualmente é acompanhado da indiferença e da impaciência – afinal, a cidade cujo PIB era 90% dependente da mineração está em crise econômica, e a cada ano a mineradora faz uma quase promessa de retorno – até agora, não cumprida. É o mesmo véu negacionista que fez a Justiça retirar as ações de homicídio relativas às 19 mortes de Fundão. Todos morreram, mas quem matou?
            Quando um ou uma bento-rodriguense diz que perdeu toda a vida no rompimento da barragem, que não consegue se encontrar desde então, que ainda não consegue dormir[6], é exortado ou exortada a olhar para a frente, como se à frente do trauma houvesse algo além da impossibilidade. É incentivado a esquecer. Mas como não lembrar aquilo que dá forma aterradora a uma vida impermanente e provisória, à espera do “novo Bento”, à espera do renascimento?
            As dores dos atingidos e das atingidas não conseguem, assim, chegar ao outro. O testemunho, essa premência de somar-se de novo à vida, não se completa porque não é acolhido por alguém que receba tal relato – e acredite nele. A mineração extrai de Mariana o ouro, o ferro e a autonomia financeira, mas parece ter extraído também a capacidade de crença no testemunho de quem deveria acolher um sujeito marcado pelo acontecimento-limite de quase morte. Há que se pensar, nesse contexto, se há possibilidade do gesto testemunhal sem um outro que o escute e passe esse relato adiante; sem que outro diga: “Acredito”.

Referências:
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes. Gragoatá, [S.l.], v. 13, n. 24, jun. 2008. ISSN 23584114. Disponível em: http://www.gragoata.uff.br/index.php/gragoata/article/view/250/252. Acesso em: 01 maio 2019.

WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo. Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.





[1]     O caso foi amplamente noticiado, como nesta matéria do Huffington Post Brasil: https://www.huffpostbrasil.com/2015/12/21/para-repor-maquina-de-lavar-samarco-exige-que-idosa-prove-incap_a_21689322/. Acesso em 30 abr. 2019.
[2]     A história de Priscila foi narrada pela BBC Brasil, entre outros veículos. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37829548. Acesso em 30 abr. 2019.
[3]     O especial circulou em versão impressa e a versão completa está disponível no link https://www.em.com.br/vozes-de-mariana/. Acesso em 29 abr. 2019.
[4]     O jornal circula mensalmente impresso, como parte de um Termo de Ajustamento de Conduta referente à catástrofe, e possui um site. Disponível em: http://jornalasirene.com.br/. Acesso em 29 abr. 2019.
[5]     Em muitos casos, o Ministério Público tem forçado a inclusão de atores externos nos processos referentes à reparação – as chamadas assessorias técnicas – ou demandado o reconhecimento mais amplo de atingidos pelo rompimento, a partir da compreensão de que uma cadeia longa social, econômica e cultural se rompeu em 5 de novembro de 2015.
[6]     A jornalista Luísa Campos reuniu relatos de algumas dessas sobreviventes na reportagem Linhas da memória, como Trabalho de Conclusão de Curso orientado por mim. Disponível em: https://catarinas.info/linhas-da-memoria-tres-anos-de-mariana/. Acesso em 2 maio 2019.

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