13 de abril de 2019


A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM LYGIA FAGUNDES TELLES

Andressa Estrela

Entrevidas, de Ana Maria Miolino


            A necessidade de reflexão em torno da sociedade brasileira no que diz respeito à situação das mulheres no âmbito privado e público torna-se cada vez mais necessária devido à problemática relação deste tema com a ordenação social e política. A partir do conto de Lygia Fagundes Telles (1923), A Confissão de Leontina (2010), refletiremos sobre o porquê da constante banalização da violência na conjuntura social brasileira, que trata os eventos violentos ocorridos com as mulheres como algo corriqueiro ou até mesmo tido como “normal”.
O caráter das relações entre homens e mulheres se configura de cima para baixo, isto é, o homem é tido como superior e a mulher inferior em todas as relações possíveis. Diante dessa construção de superioridade masculina, vários comportamentos violentos são “admissíveis” em nossa sociedade, pois são vistos como “corretivos” para mulheres que de alguma forma escapam do imaginário da mulher ideal, uma vez que, entend-se violência como uma força social que estrutura as relações interpessoais, ações coletivas e relações sociais de modo geral, principalmente no contexto da análise das situações da violência contra a mulher e de gênero,  de acordo com Lourdes Maria Bandeira..
Nesse contexto, no conto A confissão de Leontina (2010), apresenta-se a história de Leontina, que desde o começo da vida, a qual é contada em primeira pessoa, mostra o caráter triste e injusto das mulheres em sociedade, seja na própria figura, que foi parar na cadeia por um crime cometido em legítima defesa, seja pela figura das outras mulheres da trama, como por exemplo a sua mãe, que trabalhou incessantemente até a morte para proporcionar educação a Pedro, seu primo, ao passo que Leontina não teve direito a nenhum ensino formal.
            No início da narrativa, já percebemos a aura de desrespeito que ronda nos meios de comunicação que divulgam o crime cometido: “O jornal me chama de assassina ladrona e tem um que até deu o meu retrato dizendo que eu era a Messalina da boca-do-lixo.” (TELLES, 2010, p. 75). Continuadamente, Leontina fala da impossibilidade de se acreditar na justiça, logo uma justiça feita por homens: “Respondi então que confiança podia ter nessa justiça que vem dos homens se nunca nenhum homem foi justo pra mim. Nenhum.” (TELLES, 2010, p. 75).
Além disso, ela expõe as torturas e humilhações que passa na cadeia, mostrando a vulnerabilidade de seu corpo, e, apesar de ter trabalhado excessivamente no âmbito doméstico e público, mesmo assim é chamada de vagabunda, tanto por ter exercido um trabalho dentro de casa, o qual não possui nenhum reconhecimento, quanto por seu trabalho fora de casa ser tido como indigno, como comprova o trecho a seguir: “Sei que trabalhei tanto e aqui me chamam de vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles obrigam a gente a fazer.” (TELLES, 2010, p. 75).
Leontina expressa a dor da lembrança comparando com a dor da tortura na cadeia, e, ao lembrar, constata que a dor maior é em decorrência das lembranças de seu passado: “Engraçado é que agora que estou trancafiada vivo me lembrando daquele tempo e essa lembrança dói mais do que quando me dependuraram de um jeito que fiquei azul de dor”.
As atribuições a ambos os sexos são vistas em todos os aspectos da sociedade, sendo que até as próprias mulheres acabam internalizando tal dominação, e, pela constante difusão desse discurso, não percebem que acabam por reafirmá-lo, a medida que os dominados aplicam à àquilo que os domina esquemas que são produtos da dominação, como nos aponta Pierre Bourdieu, em Dominação Masculina,(2012), pois seus pensamentos e suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhe é imposta, seus atos de conhecimento, abam por ser atos de reconhecimento e submissão.
A internalização do discurso do dominador, que seria a própria mulher internalizar a “superioridade” do homem, ocorre na figura de sua mãe, que nega a educação e o bem estar para a filha, que trabalhava como escrava, para proporcionar tudo a Pedro: “Então me lembrei daquela vez que teve galinha e minha mãe deu o peito pra ele, fiquei com o pescoço. Não me comprava sapato pra que ele pudesse ler livros. E agora ele fugia de mim como se eu tivesse lepra.” (TELLES, 2010, p. 77).
No decorrer do contar da sua história, notamos que todas as desgraças que ocorreram na  vida de Leontina e na vida de sua família foram por causa de Pedro, como a morte da mãe, que trabalhava sem parar para lhe fornecer educação em uma escola particular, seja pela irmã, que ficou com problemas mentais desde o dia que ele a derrubou no chão e ela morreu no dia do discurso dado por ele na escola, porque não queria levá-la por vergonha, seja por Leontina, que ficou desamparada no mundo e dele só recebeu promessas e indiferença.
No desamparo da protagonista, com o sumiço de todos, ela seguiu viagem para a cidade grande que, sem nenhum tipo de instrução, acabou jogada à própria sorte, tendo que trabalhar na prostituição para não morrer de fome. As outras mulheres que, assim como ela, trabalhavam no meretrício, eram totalmente vulneráveis a qualquer ato de violência que os homens pudessem realizar:

Os tipos que transavam pela zona eram todos sem futuro. Agradeça a Deus se algum deles não se lembram de te jogar pela janela ou te enfiar uma faca na barriga. E contou um montão de casos que viu com os próprios olhos de pequenas assassinadas por dá cá aquela palha. (TELLES, 2010, p. 92).


A insegurança que ronda a vida dessas mulheres demostra o quão são esquecidas e ignoradas pelo poder vigente e como a presença da violência se torna um ato naturalizado. De acordo com Bandeira (2017):

A quem se dirige a violência em nossa sociedade? No geral, identifica-se o corpo feminino considerado como ‘espaço preferencial’, não apenas pelo volume de assassinatos de mulheres que vem ocorrendo nas últimas décadas, como também pelo grau de barbárie ao qual tem sido submetido. (BANDEIRA, 2017, p. 21).


Em consonância com esse posicionamento, Leontina estava olhando um vestido na vitrine de uma loja e sem ter dinheiro para pagar ela acaba por aceitar o vestido de um homem que a chama para um passeio de carro e ela, inocentemente aceita, com o intuito de pegar uma carona até sua casa, porém, o homem que dirigia o carro a levou para uma estrada isolada e começou a agarrá-la e a forçá-la a ter relações sexuais, pois o vestido por ela aceito foi como um pagamento dado por ele para ter direito sobre o seu corpo, só que ao passo que ela nega o sexo e diz até que vai pagar o vestido a ele, ele começa a espancá-la fortemente:

Agora estava apanhando que nem a pior das vagabundas. Me deixa ir embora pelo amor de Deus me deixa ir embora pedi me abaixando pra pegar minha bolsa. Foi então que num relâmpago o punho de velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba. Meu miolo estalou de dor e não vi mais nada. De repente me deu um estremecimento porque uma coisa me disse que o velho ia acabar me matando. (TELLES, 2010, p. 97).


Com medo e certeza da morte, ela se move para o banco de trás do carro e localiza uma barra de ferro e bate repetidas vezes no velho, até que sai do carro e consegue ir para casa. Como acreditava que não tinha matado o homem, voltou no outro dia tranquilamente à loja onde o homem havia comprado o vestido, para pegar seus pertences deixados no dia anterior, quando a vendedora a reconheceu e a entregou para o policial, que efetuou sua prisão.
A gravidade dessa situação é perceptível em todas as relações sociais que envolvem mulheres e homens. Os atos sexuais também servem para reafirmar o desejo de supremacia do masculino sobre o feminino, que tem como base o caráter ativo do homem e o caráter passivo da mulher, pois “o ato sexual em si é concebido pelos homens como uma forma de dominação, de apropriação, de ‘posse’”. (BOURDIEU, 2012, p. 29-30). Decorrente dessa ideia, justifica-se todo e qualquer ato sexual consentido ou não pela mulher, desencadeando os assédios e o estupro.
De acordo com o que foi exposto, percebemos a revolta do homem que espancava Leontina por ela ter se negado ao ato sexual e como nos mostra o conceito de dominação masculina sobre o corpo da mulher, essa negação ao ato sexual foi uma afronta para o poder dele, uma vez que o sexo é considerado um componente de poder masculino, já que “são esses ‘componentes’ de controle e de poder que estruturam as dinâmicas relacionais entre homens e mulheres, e quando esse ‘poder’ masculino é abalado ou quebrado, recorre-se à violência.” (BANDEIRA, 2017, p. 22).
A distorção do ato criminoso, colocando a culpa inteiramente na personagem central, mostra que por ela ser pobre e prostituta não tem direito a se retratar para expor o seu lado na história, sem falar que o homem morto era influente e dono de um jornal, ficando a palavra da mídia e do poder masculino contra o testemunho feminino, que permanece nas margens. Além de que a construção das personagens femininas expõe a legitimação da violência para com elas por conta do comportamento transgressor que contrasta com o ideal construído em torno da mulher.
No conto em discussão, compreendemos o quão a mulher é vulnerável e como isso repercute na figura da mulher solteira e pobre, o que propicia ainda mais a invisibilidade da violência. As suas companheiras de trabalho, por se relacionarem com vários homens, perdem direitos e o respeito diante da sociedade machista, tornando-se escórias que os homens podem dominar e fazer o que bem quiserem, consolidando a prática da violência como rotineira, banal e naturalizada.
Trabalhar com narrativas que exploram esse tipo de temática é não deixar que essa ferida aberta seja ignorada, pois inúmeras feridas ainda estão sendo causadas nos tempos atuais, seja fisicamente, psicologicamente ou simbolicamente. A compreensão do que seja essa dominação e a violência que dela decorre é um passo para se compreender e contornar essa realidade, possibilitando a visibilidade da voz dessa maioria silenciada.

Referências
BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. In: STEVENS, Cristina (Org.). Mulheres e Violências: Interseccionalidades. Brasília, DF: Technopolitik, 2017. p. 14-35.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 11ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2012.

TELLES, Lygia Fagundes. A estrutura da bolha de sabão. Editora Companhia das Letras, 2010.

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