Humberto Torres
Fogo ardente, do coletivo cearense Terroristas del amor |
São muitas as histórias de
destruição que nos forjaram, como a dos sertanejos cearenses bombardeados por
aviões da Força Aérea Brasileira a mando do ministro da guerra de Getúlio
Vargas, que, por sua vez, atendia a um pedido da Igreja Católica e do governo
do Ceará. Estive no Sítio Caldeirão, palco desse massacre, há quase quinze
anos. Ainda era um estudante de jornalismo, com uma câmera canon pendurada ao
pescoço, produzindo imagens das ruínas, mas de forma alguma alheio à gravidade
do que registrava. O sol do Cariri me fervia, em meio ao nada. Enquanto, na
verdade, aqueles escombros eram muitos. Sentia todo o contraditório, como uma
febre. Era insuportável estar ali. O calor de explosões vindas do ar, sobre a
cabeça de centenas de pessoas, todas muito pobres, miseravelmente exploradas a
gerações por latifundiários, crepitava em cada rocha daquele caldeirão.
Eram joões e josés e marias em
todas as suas infindáveis combinações, de anunciação a das dores. Era um povo
de fé católica, que encontrou um líder na figura do beato José Lourenço, um
homem negro, pobre como todos ali, que organizou a irmandade do Caldeirão, de
1894 a 1937. O nome caldeirão designa uma fenda geológica no sopé da chapada do
Araripe que parece servir de fonte perene para um lençol freático subterrâneo.
Essa característica garantia condições únicas para a agricultura naquelas
terras, levando o sítio a rapidamente se abastecer de cereais e frutas. O lugar
ganhou fama, atraindo sertanejos maltratados pela fome e pela violência de
donos de terras locais. Calcula-se que a comunidade chefiada por José Lourenço
chegou a receber cerca de 5 mil pessoas. Diversos estudiosos afirmam que o
alcance do Sítio Caldeirão foi tão significativo que desequilibrou o sistema de
produção do latifúndio, tornando-o inimigo do governo.
Em pouco tempo, a comunidade
foi demonizada, devido, vejam só, a um touro, que José Lourenço havia ganhado
de presente de Padre Cícero. Chegou à capital federal a notícia que uma
comunidade, que em tudo lembrava Canudos, adorava um touro como se este fosse um
deus. Em seguida, José Lourenço foi acusado de participar da intentona
comunista em 1930 – como, aliás, não lembrar da peça O pagador de promessas, de Dias Gomes? O governo criava sua
narrativa a fim de sustentar o massacre que estava prestes a realizar. Na
primeira invasão do exército brasileiro, foram incendiados em torno de 400 casebres,
os moradores foram expulsos e toda a produção da comunidade entregue para a
cidade do Crato, que fica a 20km de onde se situava o Caldeirão. Como não
conseguiram prender José Lourenço e os sertanejos logo voltaram a ocupar o
sítio. A solução do governo brasileiro foi explodir o local com quem estivesse
dentro, utilizando dois aviões da FAB e mais 200 homens que atacaram os
sobreviventes por terra. Hoje, 11 de maio, completa-se 82 anos do bombardeio
que deixou em ruínas o Sítio Caldeirão.
São muitas as imagens de
destruição que nos assombram. O fogo, manipulado por poderosos que ocupam
variados papeis em cada contexto e período, tem consumido corpos e culturas
dissidentes por séculos, e assim tem feito por vias muito diversas. Considere
todas as bibliotecas e obras que foram incendiadas ao longo da história, quanto
conhecimento para sempre perdido, histórias que jamais leremos. E teremos um
respectivo atual em meio a essas cinzas, como o museu nacional no Rio de
Janeiro. Avalie todos os povos, que não possuem bibliotecas ou museus, e
guardam em si, em seus corpos e suas mentes, sabedorias milenares. Muitos
milhares deles arderam pela mão destruidora da colonização. Teremos sempre um
respectivo atual, como o líder indígena Galdino dos Santos, incendiado por
jovens de classe média alta, enquanto dormia num ponto de ônibus em Brasília
nos anos 90, após participar de reuniões que vararam a noite, a propósito do
Dia do Índio. O fogo não tem cansado de avançar.
A arte e a história, como
todas as outras categorias, também estão em disputa. Por isso, não as entendo
aqui banhadas em passividade, como vítimas de uma sucessão de desastres, pois
elas mesmas também provocam incêndios. Estes, de outra ordem certamente. Ecoa
nessas linhas a concepção de Rainer Maria Rilke sobre arte, quando este afirma
que se arde, é porque é verdadeira. Não me interessa aqui os fogos de
artifícios. Quero as chamas do insubmisso. Nesse sentido, penso a partir do
ponto de vista benjaminiano, que encontra uma aproximação entre artista e
historiador, condensada em sua proposta de estudar a história a contrapelo. Trata-se
de um movimento dialético que se propõe apontar a tragédia que há na cultura,
para não desconectá-la de sua história, e a cultura que há na tragédia, para
não apartá-la de sua memória, conforme nos explica Didi-Huberman.
Apenas assim, seria possível
ouvir os avisos de incêndio, a que se refere Benjamin em Rua de mão única. É uma imagem que faz referência a uma espécie de
premonição histórica das ameaças do progresso, apoiada em um pessimismo
revolucionário que marca toda sua obra. O pessimismo benjaminiano não tem a ver
com a resignação ou alguma noção de conservadorismo, mas está a serviço da
emancipação das classes oprimidas. Para ele, é preciso manter desconfiança
diante de tudo.
Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Desconfiança
quanto ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade,
desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo desconfiança
tripla diante de qualquer acomodação: entre as classes, entre os povos, entre
os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento
pacífico da Luftwaffe.
Chamo
a atenção para a ironia sobre a confiança ilimitada apenas na Luftwaffe, a
força armada aérea alemã que atuou durante a Segunda Guerra bombardeando
diversas cidades europeias, e na I. G. Farben, responsável por fabricar o gás
Ziklon B e que ainda adotou a mão de obra de prisioneiros do campo de
concentração. Benjamin escreve essas linhas anos antes do início da Segunda
Guerra, revelando que sua visão crítica lhe garantiu uma percepção de incrível
acuidade. No entanto, como pontua Michel Löwy, nem mesmo Benjamin, o mais
pessimista de todos, seria capaz de prever a magnitude da destruição que a
Luftwaffe e a I. G. Farben produziriam. Os avisos de incêndio seriam
os sinais desse retorno do desastre. Nos termos de Benjamin, que não sobreviveu
ao nazismo, embora tenha conseguido antecipá-lo graças a sua visão pessimista
que lhe permitiu perceber os avisos de incêndio, é preciso ter confiança ilimitada
naqueles dispostos a nos incendiar, pois logo que tiverem oportunidade, não nos
enganemos, que assim o farão.
Quando uso o ‘nós’, penso aqui
tanto nas mulheres, nos negros, nos indígenas, nos LGBTIs, nos nordestinos, nos
pobres, como naqueles que incomodam por suas atuações e o que representam na
sociedade, como professores, estudantes, pesquisadores e, sobretudo, artistas.
O ‘nós’, de forma alguma, entra aqui para apagar as diferenças, inclusive no
que diz respeito aos níveis de vulnerabilidade, e marcas singulares de cada
identidade, mas guarda a compreensão de uma inevitável aproximação entre as
várias populações consideradas, por um motivo ou por outro, descartáveis. Para
falar com Judith Butler: “a precariedade da vida pode operar, ou está operando,
como um lugar de aliança entre grupos de pessoas que de outro modo não teriam
muito em comum e entre os quais algumas vezes existe até mesmo desconfiança e
antagonismo” (2018, p. 34).
Benjamin era ele mesmo um
melancólico, categoria sobre a qual se debruçou em diversos estudos, sobretudo
naquele dedicado ao barroco alemão. Sob o signo de saturno, o astro frio e
distante, porém sábio, regente do tempo, Benjamin considerou um movimento de
apatia e preguiça na melancolia, assim como pensava no seu poder de
inteligência e contemplação. Para ele, o sentido destrutivo de saturno, mais
vulgar, ligado à inercia e à depressão, escondia a potência crítica do olhar
cuidadoso para a realidade do mundo, um exercício não apenas meditativo mas
poderoso de explorar com singular profundidade o âmago das coisas. Sendo eu
mesmo filho de saturno, encontro com muita facilidade a força da proposta
benjaminiana. Principalmente quando consideramos que vivemos um momento de
pouca reflexão, meias verdades, diálogos truncados e apaixonada ignorância.
No entanto, vejo que um
movimento complementar a esse é preciso. Pois, além de conhecer o fogo, saber
que ele será, como de fato tem sido, infligido contra nós na primeira
oportunidade, temos que acessar o que em nós incendeia. Unir à poderosa
observação saturnina, em seu mergulho corajoso naquilo que não se mostra
facilmente, todo o conhecimento que temos do fogo: o deles e, sobretudo, o
nosso. Trago a seguir as palavras de Jota Mombaça, uma jovem voz negra, LGBTI,
nordestina, em ensaio intitulado “rumo a uma redistribuição desobediente de
gênero e anticolonial da violência”.
Somos ensinadas a não
reagir à violência que nos interpela ao mesmo tempo em que somos bombardeadas
por ameaças e narrativas de brutalidade contra nós. Nesse sentido, o projeto de
redistribuição da violência depende de que acreditemos na nossa capacidade de
autodefesa e, a partir disso, mudemos nossa postura perante o mundo. É
fundamental que abandonemos a posição de vítima – mesmo quando o estado, a
polícia, o branco e o homem cis tem historicamente demonstrado a sua
incapacidade de abandonar a posição de agressor. Não há saída senão aceitar de
uma vez por todas que fomos inscritas numa guerra aberta contra a nossa
existência e que a única forma de sobreviver a ela é lutar ativamente pela vida
(1994, p. 312).
A partir dessa compreensão, de
que estamos inseridos numa guerra aberta contra nós e que atravessa os séculos,
alternando apenas os disfarces e os métodos, não podemos considerar a
passividade como ação política, ofertar a outra face como gesto educativo. Já
estamos a quantas gerações na esperança de que aprendam a nossas custas?
Estamos pondo em prova nossa saúde mental e a segurança de nossos corpos
realmente esperando que um dia possam nos olhar como gente? Até aqui, pelo
menos, essa tática não tem funcionado. Em grande medida, precisamos cuidar de
nós mesmos. Lembro de Jean Wyllys e sua acertada decisão de deixar o país. Não
precisamos de mais mártires, a lista se atualiza quase diariamente.
Larissa Luz, artista baiana,
em sua música “Violenta”, canta “Minha voz vai te ferir/ Meu sorriso vai fazer
você sangrar”. E complementa no refrão: “Minha violência é voz! / Minha
violência é arma de construção em massa”. Não se trata, portanto, de uma
proposta de violência nos termos que os opressores configuram contra nós, com
armas de fogo em punho. Mas de uma mobilização, que em última instância abraça
também o autocuidado. É preciso nos transmutar nessa arena, trazer o que
aprendemos com o calor das chamas, com o qual fomos obrigados a conviver, em
todo seu poder de criatividade, ação, energia.
A arte não é uma arma de fogo,
jamais vai tirar uma vida ou sequelar um corpo. Respiramos melhor quando
cantamos ou lemos um poema. Não sei se a arte salvaria um afogado, como sugere
Quintana em um de seus poemas. Não dimensiono assim seu alcance. Mas mesmo assim,
observem, como eles têm medo da arte. Que bom. Ataquemos a fobia deles com a
arte mais incendiária a que temos acesso ou que podemos produzir. Porque a
arte, se não nos salva, com certeza ajuda um bocado e como é poderosa contra
aqueles que se movem contra nós. Deixo por fim, os versos de deboche e
provocação da música “Bate mais”, do coletivo paulistano Teto Preto.
quanto
a mim,
quero
mais é apanhar
porque
todo o resto foi pouco
e o
que quero não é desculpa, nem retratação.
quero
toda a vingança que nos cabe:
a
vitória dos feridos,
a
orgia da semântica,
o
desacato a semiótica,
a
juventude insubmissa
no
cataclismo último do capital.
Bate mais!
Referências
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam
o real. Revista Pós. Belo Horizonte,
v. 2, n. 4, p. 204-219, 2012.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da
violência. On line: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi
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