11 de maio de 2019

Sobre o fogo e toda a vingança que nos cabe


Humberto Torres

Fogo ardente, do coletivo cearense Terroristas del amor


São muitas as histórias de destruição que nos forjaram, como a dos sertanejos cearenses bombardeados por aviões da Força Aérea Brasileira a mando do ministro da guerra de Getúlio Vargas, que, por sua vez, atendia a um pedido da Igreja Católica e do governo do Ceará. Estive no Sítio Caldeirão, palco desse massacre, há quase quinze anos. Ainda era um estudante de jornalismo, com uma câmera canon pendurada ao pescoço, produzindo imagens das ruínas, mas de forma alguma alheio à gravidade do que registrava. O sol do Cariri me fervia, em meio ao nada. Enquanto, na verdade, aqueles escombros eram muitos. Sentia todo o contraditório, como uma febre. Era insuportável estar ali. O calor de explosões vindas do ar, sobre a cabeça de centenas de pessoas, todas muito pobres, miseravelmente exploradas a gerações por latifundiários, crepitava em cada rocha daquele caldeirão.
Eram joões e josés e marias em todas as suas infindáveis combinações, de anunciação a das dores. Era um povo de fé católica, que encontrou um líder na figura do beato José Lourenço, um homem negro, pobre como todos ali, que organizou a irmandade do Caldeirão, de 1894 a 1937. O nome caldeirão designa uma fenda geológica no sopé da chapada do Araripe que parece servir de fonte perene para um lençol freático subterrâneo. Essa característica garantia condições únicas para a agricultura naquelas terras, levando o sítio a rapidamente se abastecer de cereais e frutas. O lugar ganhou fama, atraindo sertanejos maltratados pela fome e pela violência de donos de terras locais. Calcula-se que a comunidade chefiada por José Lourenço chegou a receber cerca de 5 mil pessoas. Diversos estudiosos afirmam que o alcance do Sítio Caldeirão foi tão significativo que desequilibrou o sistema de produção do latifúndio, tornando-o inimigo do governo.
Em pouco tempo, a comunidade foi demonizada, devido, vejam só, a um touro, que José Lourenço havia ganhado de presente de Padre Cícero. Chegou à capital federal a notícia que uma comunidade, que em tudo lembrava Canudos, adorava um touro como se este fosse um deus. Em seguida, José Lourenço foi acusado de participar da intentona comunista em 1930 – como, aliás, não lembrar da peça O pagador de promessas, de Dias Gomes? O governo criava sua narrativa a fim de sustentar o massacre que estava prestes a realizar. Na primeira invasão do exército brasileiro, foram incendiados em torno de 400 casebres, os moradores foram expulsos e toda a produção da comunidade entregue para a cidade do Crato, que fica a 20km de onde se situava o Caldeirão. Como não conseguiram prender José Lourenço e os sertanejos logo voltaram a ocupar o sítio. A solução do governo brasileiro foi explodir o local com quem estivesse dentro, utilizando dois aviões da FAB e mais 200 homens que atacaram os sobreviventes por terra. Hoje, 11 de maio, completa-se 82 anos do bombardeio que deixou em ruínas o Sítio Caldeirão.
São muitas as imagens de destruição que nos assombram. O fogo, manipulado por poderosos que ocupam variados papeis em cada contexto e período, tem consumido corpos e culturas dissidentes por séculos, e assim tem feito por vias muito diversas. Considere todas as bibliotecas e obras que foram incendiadas ao longo da história, quanto conhecimento para sempre perdido, histórias que jamais leremos. E teremos um respectivo atual em meio a essas cinzas, como o museu nacional no Rio de Janeiro. Avalie todos os povos, que não possuem bibliotecas ou museus, e guardam em si, em seus corpos e suas mentes, sabedorias milenares. Muitos milhares deles arderam pela mão destruidora da colonização. Teremos sempre um respectivo atual, como o líder indígena Galdino dos Santos, incendiado por jovens de classe média alta, enquanto dormia num ponto de ônibus em Brasília nos anos 90, após participar de reuniões que vararam a noite, a propósito do Dia do Índio. O fogo não tem cansado de avançar.
A arte e a história, como todas as outras categorias, também estão em disputa. Por isso, não as entendo aqui banhadas em passividade, como vítimas de uma sucessão de desastres, pois elas mesmas também provocam incêndios. Estes, de outra ordem certamente. Ecoa nessas linhas a concepção de Rainer Maria Rilke sobre arte, quando este afirma que se arde, é porque é verdadeira. Não me interessa aqui os fogos de artifícios. Quero as chamas do insubmisso. Nesse sentido, penso a partir do ponto de vista benjaminiano, que encontra uma aproximação entre artista e historiador, condensada em sua proposta de estudar a história a contrapelo. Trata-se de um movimento dialético que se propõe apontar a tragédia que há na cultura, para não desconectá-la de sua história, e a cultura que há na tragédia, para não apartá-la de sua memória, conforme nos explica Didi-Huberman.
Apenas assim, seria possível ouvir os avisos de incêndio, a que se refere Benjamin em Rua de mão única. É uma imagem que faz referência a uma espécie de premonição histórica das ameaças do progresso, apoiada em um pessimismo revolucionário que marca toda sua obra. O pessimismo benjaminiano não tem a ver com a resignação ou alguma noção de conservadorismo, mas está a serviço da emancipação das classes oprimidas. Para ele, é preciso manter desconfiança diante de tudo.

Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Desconfiança quanto ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer acomodação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe.

Chamo a atenção para a ironia sobre a confiança ilimitada apenas na Luftwaffe, a força armada aérea alemã que atuou durante a Segunda Guerra bombardeando diversas cidades europeias, e na I. G. Farben, responsável por fabricar o gás Ziklon B e que ainda adotou a mão de obra de prisioneiros do campo de concentração. Benjamin escreve essas linhas anos antes do início da Segunda Guerra, revelando que sua visão crítica lhe garantiu uma percepção de incrível acuidade. No entanto, como pontua Michel Löwy, nem mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, seria capaz de prever a magnitude da destruição que a Luftwaffe e a I. G. Farben produziriam. Os avisos de incêndio seriam os sinais desse retorno do desastre. Nos termos de Benjamin, que não sobreviveu ao nazismo, embora tenha conseguido antecipá-lo graças a sua visão pessimista que lhe permitiu perceber os avisos de incêndio, é preciso ter confiança ilimitada naqueles dispostos a nos incendiar, pois logo que tiverem oportunidade, não nos enganemos, que assim o farão.
Quando uso o ‘nós’, penso aqui tanto nas mulheres, nos negros, nos indígenas, nos LGBTIs, nos nordestinos, nos pobres, como naqueles que incomodam por suas atuações e o que representam na sociedade, como professores, estudantes, pesquisadores e, sobretudo, artistas. O ‘nós’, de forma alguma, entra aqui para apagar as diferenças, inclusive no que diz respeito aos níveis de vulnerabilidade, e marcas singulares de cada identidade, mas guarda a compreensão de uma inevitável aproximação entre as várias populações consideradas, por um motivo ou por outro, descartáveis. Para falar com Judith Butler: “a precariedade da vida pode operar, ou está operando, como um lugar de aliança entre grupos de pessoas que de outro modo não teriam muito em comum e entre os quais algumas vezes existe até mesmo desconfiança e antagonismo” (2018, p. 34).
Benjamin era ele mesmo um melancólico, categoria sobre a qual se debruçou em diversos estudos, sobretudo naquele dedicado ao barroco alemão. Sob o signo de saturno, o astro frio e distante, porém sábio, regente do tempo, Benjamin considerou um movimento de apatia e preguiça na melancolia, assim como pensava no seu poder de inteligência e contemplação. Para ele, o sentido destrutivo de saturno, mais vulgar, ligado à inercia e à depressão, escondia a potência crítica do olhar cuidadoso para a realidade do mundo, um exercício não apenas meditativo mas poderoso de explorar com singular profundidade o âmago das coisas. Sendo eu mesmo filho de saturno, encontro com muita facilidade a força da proposta benjaminiana. Principalmente quando consideramos que vivemos um momento de pouca reflexão, meias verdades, diálogos truncados e apaixonada ignorância.
No entanto, vejo que um movimento complementar a esse é preciso. Pois, além de conhecer o fogo, saber que ele será, como de fato tem sido, infligido contra nós na primeira oportunidade, temos que acessar o que em nós incendeia. Unir à poderosa observação saturnina, em seu mergulho corajoso naquilo que não se mostra facilmente, todo o conhecimento que temos do fogo: o deles e, sobretudo, o nosso. Trago a seguir as palavras de Jota Mombaça, uma jovem voz negra, LGBTI, nordestina, em ensaio intitulado “rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência”.

Somos ensinadas a não reagir à violência que nos interpela ao mesmo tempo em que somos bombardeadas por ameaças e narrativas de brutalidade contra nós. Nesse sentido, o projeto de redistribuição da violência depende de que acreditemos na nossa capacidade de autodefesa e, a partir disso, mudemos nossa postura perante o mundo. É fundamental que abandonemos a posição de vítima – mesmo quando o estado, a polícia, o branco e o homem cis tem historicamente demonstrado a sua incapacidade de abandonar a posição de agressor. Não há saída senão aceitar de uma vez por todas que fomos inscritas numa guerra aberta contra a nossa existência e que a única forma de sobreviver a ela é lutar ativamente pela vida (1994, p. 312).


A partir dessa compreensão, de que estamos inseridos numa guerra aberta contra nós e que atravessa os séculos, alternando apenas os disfarces e os métodos, não podemos considerar a passividade como ação política, ofertar a outra face como gesto educativo. Já estamos a quantas gerações na esperança de que aprendam a nossas custas? Estamos pondo em prova nossa saúde mental e a segurança de nossos corpos realmente esperando que um dia possam nos olhar como gente? Até aqui, pelo menos, essa tática não tem funcionado. Em grande medida, precisamos cuidar de nós mesmos. Lembro de Jean Wyllys e sua acertada decisão de deixar o país. Não precisamos de mais mártires, a lista se atualiza quase diariamente.
Larissa Luz, artista baiana, em sua música “Violenta”, canta “Minha voz vai te ferir/ Meu sorriso vai fazer você sangrar”. E complementa no refrão: “Minha violência é voz! / Minha violência é arma de construção em massa”. Não se trata, portanto, de uma proposta de violência nos termos que os opressores configuram contra nós, com armas de fogo em punho. Mas de uma mobilização, que em última instância abraça também o autocuidado. É preciso nos transmutar nessa arena, trazer o que aprendemos com o calor das chamas, com o qual fomos obrigados a conviver, em todo seu poder de criatividade, ação, energia.
A arte não é uma arma de fogo, jamais vai tirar uma vida ou sequelar um corpo. Respiramos melhor quando cantamos ou lemos um poema. Não sei se a arte salvaria um afogado, como sugere Quintana em um de seus poemas. Não dimensiono assim seu alcance. Mas mesmo assim, observem, como eles têm medo da arte. Que bom. Ataquemos a fobia deles com a arte mais incendiária a que temos acesso ou que podemos produzir. Porque a arte, se não nos salva, com certeza ajuda um bocado e como é poderosa contra aqueles que se movem contra nós. Deixo por fim, os versos de deboche e provocação da música “Bate mais”, do coletivo paulistano Teto Preto.

quanto a mim,
quero mais é apanhar
porque todo o resto foi pouco
e o que quero não é desculpa, nem retratação.
quero toda a vingança que nos cabe:
a vitória dos feridos,
a orgia da semântica,
o desacato a semiótica,
a juventude insubmissa
no cataclismo último do capital.

Bate mais!

Referências
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Revista Pós. Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204-219, 2012.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. On line: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi

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