8 de setembro de 2017

Literatura e Formação de Professores

Rosilene Silva da Costa

Imagem: André Kertesz 

Os últimos anos têm se caracterizado como um período de múltiplas transformações no campo social e na educação. Essas transformações se dão porque houve uma real abertura de espaço para que grupos marginalizados pudessem não apenas estar nos espaços formais de ensino, mas também para se fazerem vistos e ouvidos neles. Dizer que a escola e a universidade brasileira não recebiam pobres, negros, indígenas, ciganos, itinerantes, homossexuais, pessoas com deficiência e outros grupos marginalizados não seria verdadeiro, pois, mesmo que invisibilizados e em número muito pequeno, esses grupos estavam, de alguma forma, nos bancos escolares. No entanto, nos últimos anos, as lutas dos movimentos sociais fizeram com que estes grupos tivessem a garantia de espaço na educação, seja pela adoção de políticas públicas reparatórias, seja por terem forjado espaço para que pudessem se fazer presentes e terem suas identidades reconhecidas e respeitadas. 

Esse respeito à identidade dos sujeitos foi “construído” ao longo dos anos de 1990, período de muita discussão sobre o processo de formação de educação. Essa foi uma década muito importante para a educação brasileira, pois foi nela que se intensificaram os movimentos em prol de uma educação de maior qualidade. Na década anterior, os movimentos de educação estavam muito atuantes, no entanto, o foco era o retorno da democracia no Brasil e, posteriormente, a nova Constituição Federal. Essa movimentação da década 80 também foi muito positiva, pois a Constituição Federal de 1988 apresenta a educação como primeiro direito social dos cidadãos: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (CF, II, art. 6º, caput - grifo meu). A Carta Magna de 1988 também garante a igualdade de direitos entre todos os cidadãos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, assim no artigo 3.º, a CF estabelece a “não-discriminação” como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, a qual se reflete na construção de uma sociedade justa e solidária, na garantia do desenvolvimento do país; na erradicação da pobreza e marginalização; na redução das desigualdades sociais e na promoção do bem de todos, independentemente da origem, raça, sexo, cor, orientação sexual etc. 

Além disso, o artigo mais conhecido da Constituição Federal, o artigo 5.º, diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (CF, II, art 5º, caput). Assim, o Brasil, país extremamente desigual em termos de raça, gênero e classe, se viu diante de um documento que trata a todos de igual forma. A igualdade prevista na Constituição Federal é, segundo autores da área do Direito Constitucional, material, o que quer dizer que se almeja que as pessoas tenham igualdade em acesso aos diferentes bens da nação: saúde, educação, cultura, moradia etc. (MELO, 1999; MORAES, 2000). Esta constituição progressista de 1988 vai além, em termos de promoção da educação e da igualdade, dedicando, no Capítulo III, uma sessão de dez artigos para a educação. Esta ênfase dada pela Constituição Federal à educação trouxe a necessidade de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que ainda no ano de 1988, logo após a promulgação da Carta Magna, passou a ser discutida. A discussão e elaboração da atual LDB foram feitas ao longo de oito anos, a participação de professores, políticos e sociedade civil como um todo foi ampla e de suma importância para a garantia de que todo o povo brasileiro se fizesse representado neste texto legal. A LDB foi promulgada no dia 20 de dezembro de 1996, sob o número de Lei nº 9.394/96 e sob o nome de Lei Darcy Ribeiro.

Apesar do tempo destinado à elaboração da LDB, o texto legal ainda necessita passar por constantes mudanças e adaptações, as quais são decorrências das mudanças em nossa sociedade. Aqui cabe destacar a alteração ocorrida nos primeiros dias do ano de 2003 com a inclusão de dois artigos: o 26-A que preconiza o ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo, especialmente nas disciplinas de Artes, História e Literatura; e o 79-B que institui o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra no Calendário escolar. Essas mudanças são frutos da luta do Movimento Negro no Brasil e foram feitas através da Lei nº 10.639/03. Em 2008, a luta dos povos indígenas acrescentou o ensino da história e cultura dos povos indígenas nestes mesmos artigos, através da Lei nº 11.645/08. Em 2013, o texto foi mais uma vez modificado, desta vez sendo acrescida aos princípios do ensino no país a “consideração com a diversidade étnico-racial” (LDB, II, art. 2º, XII). Percebe-se, assim, que o texto legal está imbuído de abordar a diversidade étnico-racial brasileira. 

Além desses dispositivos legais que aludem a necessidade de educação para as relações étnico-raciais, ao longo dos últimos anos, se tem percebido a necessidade de discutir aspectos ligados ao gênero e à sexualidade, pois não podemos mais admitir uma educação calcada no binarismo homem/mulher. É necessário pensar os papéis dos sujeitos femininos e dos sujeitos masculinos, bem como refletir sobre a orientação sexual. O Brasil expressa na Constituição Federal e na LDB que a educação e a sociedade se pautarão em princípios de igualdade, no entanto, pouco fala a respeito da igualdade de gênero. A igualdade de gênero é vista como lei pelo fato do Brasil ser signatário de acordos internacionais que trazem esta previsão, como a “Declaração de Jomtien”, elaborada no ano de 1990 na Conferência Mundial de Educação para Todos (Tailândia) e ratificada no ano 2000 na Cúpula Mundial Educação para Todos (Senegal). Nesse documento, um dos princípios é a garantia de educação básica igual para todos, considerando a urgência de garantir o acesso e de atender com qualidade meninas e mulheres na educação básica. Além disso, há um compromisso com o rompimento dos estereótipos de gênero, ou seja, aquilo que é coisa de homem e aquilo que é coisa de mulher. 

Gênero e raça estão especificados nos documentos legais que norteiam a educação brasileira, no entanto, percebe-se que, mesmo que tenha aparecido em outros momentos, a discussão sobre orientação sexual é deixada de lado nesses textos. Se essa discussão não aparece nos documentos legais, ela surge nas salas de aulas, pois pessoas de diferentes raças e gêneros estão ali com suas orientações sexuais, tornando necessário um trabalho pedagógico que as represente. Essa representação é prevista na Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012 que estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Nessas diretrizes do Conselho Nacional de Educação está previsto que um dos princípios da educação em direitos humanos é o “reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades” (DCNEDH, p. 14). Assim, cabe à escola realizar este trabalho de reconhecimento e valorização da diversidade, seja ela racial, de gênero, de orientação sexual, ou outra.

Dentre as possibilidades de diversidade, uma de grande importância nos dias atuais é a classe social. Vivemos em um país que apresenta uma enorme desigualdade social, a qual determina os espaços e acessos das pessoas à materialidade de que todos são iguais. Assim, hoje a educação formal, tanto a básica como a superior, faz com que sujeitos de diferentes classes sociais estejam na sala de aula, visto que programas de governo como o Bolsa Família, o Prouni e a política de cotas deram acesso e, de alguma forma, garantiram a permanência de sujeitos de classes sociais mais baixas nas escolas e universidades. Temos então uma “diversidade” muito grande em nossas salas de aula: de gênero, de raça e de classe. Essas três categorias da “diversidade” podem ser imensamente subdividas, pois elas envolvem questões de orientação sexual, questões de pertencimento étnico e questões culturais, fazendo com que o sujeito professor precise dar conta de ministrar aulas que atendam a todos estes estudantes. 

Essas transformações que levaram esses sujeitos em maior número à sala de aula e que fizeram com que eles exigissem serem vistos e ouvidos nestes espaços, impactam em outras instâncias da educação, como nos exames para entrada no Ensino Superior. A título de exemplificação podemos citar a prova do ENEM, aplicada no final de 2015, cujo tema da redação foi “A persistência da violência contra a mulher” e que dentre os autores citados nas questões objetivas estava Simone de Beauvoir. Essa prova gerou ampla discussão da sociedade sobre a violência sofrida pelas mulheres e sobre a questão de gênero suscitada pela citação de um trecho de uma das obras da filósofa feminista, o qual fala sobre a formação do sujeito mulher[1]. Vale ressaltar que esse exame cria uma expectativa imensa na sociedade como um todo, pois para além da avaliação do ensino médio e classificação para entrada na universidade, ele reflete a forma como a educação vem sendo pensada. 

Se há mudanças na educação básica e nos certames de seleção para entrada no ensino superior é importante que os docentes que atuam nesses dois níveis de ensino estejam preparados para receber e educar os estudantes a partir de uma perspectiva da “diversidade”. Neste ponto chegamos na formação de professores entendida como “a preparação e emancipação profissional do docente para realizar crítica, reflexiva e eficazmente um estilo de ensino que promova uma aprendizagem significativa nos alunos” (MEDINA E DOMINGUES, 1989 apud GARCÍA, 1999, p. 23). Como vimos até aqui, muita coisa mudou em termos legais na educação e hoje a diversidade se faz presente nas salas de aula, de forma que a formação dos professores precisa considerar isso.

E o que a Literatura tem a ver com todas essas mudanças na Educação e com a Formação dos Professores? Segundo Antônio Cândido:

A literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa – o Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço de sua concepção de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (esta apoteose matreira do óbvio, novamente em grande voga), ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela – com altos e baixos, luzes e sombras (CANDIDO, 2002, p. 83).

Antônio Candido nos dá resposta apontando que a Literatura educa como a vida, ou seja, ela nos permite, através da linguagem, entrar em contato com concepções de mundo diferentes da nossa. Esse contato com diferentes concepções de mundo e formas de viver nos faz ver, perceber e reconhecer o outro e contribuirá para que o respeitemos em sua individualidade. Em outras palavras, a literatura pode contribuir para o desenvolvimento de nossa humanidade, pois ela “nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muitos e diversos e que seus valores se distanciam dos nossos” (COMPAGNON, 2009, p. 47).

Poderíamos continuar discutindo o potencial humanizador da Literatura, o qual é apontado por diversos teóricos de diferentes áreas, todavia, nossa proposta aqui envolve discutir esse papel humanizador e a necessidade de formação dos professores. Se analisarmos os textos legais que envolvem a educação brasileira, perceberemos que as diretrizes mais atuais apontam para a necessidade de sensibilização dos professores para o trabalho com a alteridade em sala de aula. Os professores brasileiros, mesmo sendo também muito diversos em termos de classe, raça, orientação sexual, etc foram educados e formados considerando apenas a existência do sujeito homem, branco, de classe média e heterossexual. Nós, professores, não fomos ensinados a trabalhar com a diversidade e nossa educação humanitária, na maior parte das vezes, também foi precária neste sentido. Assim, muitas vezes falhamos em sala de aula por não termos tido nem uma formação de vida voltada ao respeito da dignidade da pessoa humana (seja ela quem for), nem mesmo uma formação pedagógica, considerando as nossas profissões.

Se a formação do professor foi deficitária em diferentes momentos e ela faz falta para a garantia de uma educação mais igualitária, porque não usarmos a Literatura como ferramenta para suprir as duas necessidades? A Literatura, especialmente a contemporânea é estratégica para que se discuta raça, gênero e classe a partir da representação dos sujeitos, além de tornar os professores mais sensíveis e preparados para lidar com a alteridade na sala de aula. O estudo da Literatura possibilitará que os professores possam acessar obras contemporâneas que instrumentalizarão seus alunos para a realização das provas de entrada no ensino superior, mas também permitirão que os professores cumpram o previsto nas diretrizes educacionais brasileiras, no que tange ao respeito à diversidade e aos direitos humanos. O conhecimento do que acontece com sujeitos diferentes de sua realidade e distintos daqueles que lhe foram apresentados durante a formação inicial permitirá que os professores passem pelo processo de humanização, o que os tornarão mais aptos a entender e colocar em prática o previsto nas diretrizes educacionais.

Por fim, vale dizer que, na maior parte das vezes, os textos literários contemporâneos estão disponíveis apenas em alguns espaços acadêmicos. Democratizar o acesso a eles fará com que os saberes produzidos pelos autores e pelas universidades sejam aliados aos saberes produzidos pelos professores da educação básica para que se complementem e colaborem mutuamente. Com isso, teremos uma sociedade que sabe conviver com a diversidade, pensada no sentido de diferença/alteridade e não apenas tolerá-la, deixando os sujeitos diversos sempre à margem, alijados de real participação nos espaços da escola e da sociedade.




[1] Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino. (BEAUVOIR, 1980, p. 9)

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